Texto por João do Vale da Comissão Pastoral da Terra | Arte por 1Dinelli
A indústria da seca vai se adaptando à modernidade e a modernidade vai se adaptando à indústria da seca. O discurso de que a natureza é a culpada pelas desigualdades sociais no sertão continua inspirando grandes e pequenas obras que não dão conta de resolver o problema da desigualdade. A indústria da seca é atemporal. Está sempre a postos para fragilizar as comunidades camponesas e, ao mesmo tempo, servir de fio condutor para apresentar o pacote da modernidade como alternativa. O mesmo sertão, até bem pouco tempo tido como um lugar sem água, vem sendo transformado em polo do desenvolvimento capitalista. A abundância convivendo a com a escassez. De um lado do arame empresas com milhares de hectares plantados com frutas destinadas à exportação e centenas de poços jorrando água durante todo o dia. Do outro lado do arame, comunidades camponesas que nos períodos de estiagem dependem de carros pipa fornecidos pelo exército e poços com água salobra.
Das questões que levam o sertão a ainda apresentar os piores índices de pobreza e analfabetismo no Brasil nenhuma delas se refere à falta de água – no sentido de água potencialmente disponível. Com uma estrutura de captação das águas da chuva adequada e com a distribuição da água concentrada os efeitos sociopolíticos das estiagens seriam outros. Apesar de previsível e de fácil solução, a estiagem prolongada continua sendo um imenso problema para as populações camponesas, já que o Estado, mesmo prevendo os danos, não aponta soluções a nível estrutural e transforma isso na indústria da seca.
Durante a gestão do PT viu-se um leve desvio de percurso. Entre 2012 e 2017 vivemos a maior estiagem dos últimos 100 anos, porém os danos sofridos pelos camponeses foram bem menores do que todas as anteriores. A explicação pra isso é que algumas experiências de convivência com o semiárido – práticas que misturam conhecimentos ancestrais com métodos tecnológicos a baixo custo e em harmonia com a natureza – foram transformadas, depois da pressão dos movimentos sociais, em políticas públicas. Isso somado às políticas assistenciais diminuiu consideravelmente o desastre político da seca e ajudou no combate à fome.
Porém o PT optou por conciliar o inconciliável. Manteve aberta a fábrica de obras faraônicas e de investimentos atendendo às demandas do capital. Não realizou a tão necessária reforma agrária, nem tampouco investiu na diminuição da desigualdade no acesso à água. Resolveu não demarcar e titular os territórios tradicionais, já que isso frearia o avanço da modernidade – assim deixou os povos e comunidades profundamente fragilizados, como é o caso dos povos e comunidades de Itacuruba, ameaçados pela Central Nuclear. As obras hídricas de grande porte não foram – como a transposição do Rio São Francisco e as estruturas para a agricultura irrigada – realizadas para saciar a sede das pessoas e dar sustento à agricultura camponesa, mas para possibilitar o avanço do agronegócio. É como se a fábrica continuasse existindo, só que com outro gerente, que fechou alguns departamentos e abriu outros. Passou a ser menos violenta, mas manteve-se enquanto fábrica, beneficiando os já grandes, prejudicando os violentamente feito pequenos e impedindo a conquista da autonomia.
As políticas de convivência com o semiárido, como o incentivo à construção de cisternas para captação da água da chuva, possibilitaram ao povo do sertão a redução dos prejuízos nas secas prolongadas e evitaram mortes e migrações. Mas continuamos dependentes das águas da chuva e com uma quantidade de água que não permite a produção camponesa. Já ao agronegócio foi dado o presente da água em abundância. Foi como se ao camponês fosse concedido o direito de permanecer onde estava, porém ao agronegócio foi concedido o direito e o incentivo à produção a apropriação da terra e da água. Ao não implementar as duas principais políticas de convivência com o semiárido – regularização fundiária e democratização do acesso à água – transformou o sonho sertanejo em política de convivência com o latifúndio. O camponês não migra, mas também não tem água para produção. Resta a ele olhar do outro lado da cerca.
O Estado brasileiro é essencialmente violento e tem funcionado como o organizador de uma tentativa continuada de extermínio de uma maneira de habitar o mundo. Existe uma guerra de 500 anos, que não é metafórica, é real e cheira a sangue. Comumente ela é chamada de modernidade, progresso. Os benefícios dela ficam entre os que tem dinheiro nas cidades. Os prejuízos ficam entre os que vivem no campo e os que não tem dinheiro nas cidades. Por isso a articulação entre campo e cidade pede muito mais do que palavras de apoio, mas sobretudo gestos concretos no repúdio a todo projeto que para levar benefícios aos centros urbanos necessite causar violência no campo.
Qual o lugar que o nosso projeto de esquerda reserva para os povos dos campos, das águas e florestas? Continuarão sendo a matéria-prima para o avanço do capitalismo brasileiro? Continuarão tendo teus territórios destruídos e suas vidas roubadas em nome da modernidade?
E agora, José?
Mesmo que a curto prazo precisemos de um projeto eleitoral que nos livre do pesadelo de um governo fascista e necro-miliciano, seria ingênuo achar que isso resolverá a violência histórica contra os povos do campo no Brasil. É fato que pouca coisa consegue ser pior do que esse governo e por isso sair dele é de uma urgência extrema, mas nossos principais problemas têm 500 anos e nenhum governo quis resolvê-los.
Que tal colocarmos no nosso vocabulário utópico a palavra AUTONOMIA?
Uma experiência pré-colonial que ainda é semeada nas periferias do mundo e que enquanto esquerda falamos pouquíssimo.
Sei que todo divórcio diante de um amor platônico é difícil. Com o Estado não seria diferente. Por isso não é necessário ficar intrigado ou esquecer que existe, mas apenas romper os laços de dependência dessa relação abusiva. Autonomia é não ser escravo nem do capital, nem do Estado. Não estou defendendo que se ignore o Estado – nem que se deixe de exigir políticas públicas – mas tão somente uma desconfiança perpétua e a aceitação da possibilidade da felicidade para além dele. A natureza do Estado na América Latina é genocida – e nunca deixou de ser – mesmo nos governos progressistas.
O capitalismo propõe uma dependência total ao dinheiro e uma autonomia (falsa) da natureza.
Propomos uma dependência total da natureza (e da lógica comunitária) e uma autonomia (verdadeira) do dinheiro e do Estado.
Fato curioso: as experiências de libertação sertaneja foram todas construídas por meio do rompimento com o Estado.
Que tal revisitarmos a memória dos 25 mil camponeses sertanejos de Canudos que por quase três anos viveram a que foi talvez a mais bem-sucedida experiência comunitária de autonomia pós início da invasão colonial? Quem lembra da experiência do Caldeirão do Beato José Lourenço onde milhares de camponeses cearenses viviam cotidianamente a festa da fatura e que por isso foram destroçados pelo Estado que lançou até granadas de aviões?
Quantas vezes por dia estamos parando para imaginar o que seria o sertão liberto do capitalismo?
Ver pelo avesso…
Beatriz Nascimento, historiadora e poeta negra, diz que é um erro pensar a questão negra no Brasil a partir da escravidão, já que a escravidão é uma instituição branca, colonial. Para Beatriz, a questão negra deve ser pensada a partir do quilombo – não enquanto lugar de fuga, mas de resistência e construção de autonomia – já que primeira organização social essencialmente negra das Américas. Creio que essa metodologia também serve ao sertão, ou – quem sabe – a todos os territórios em estado de opressão.
Esses dias… (no dia 02 de novembro de 2017) no distrito de Rosário, município de Correntina, cerca de 1.000 pessoas, na sua maioria agricultores, ocuparam duas fazendas do grupo Igarashi e destruiram pivôs de irrigação, equipamentos de transmissão de energia, galpões, bombas hidráulicas, tratores e tubulações. Correntina fica no Oeste da Bahia, região alimentada pelo Rio Arrojado, afluente do Rio São Francisco. Desde a década de 1970 que empresas do agronegócio, apoiadas em um discurso de modernização do campo e incentivadas pelo Estado, chegam à região em busca de terras férteis e água em abundância. O resultado é a expulsão de comunidades camponesas de seus territórios – entre elas Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto – e o uso irresponsável das águas da bacia hidrográfica.
Nos últimos anos, com o crescimento do agronegócio no país e a instalação do MATOPIBA na Bahia, os conflitos se tornaram mais intensos, principalmente em razão da perfuração de poços profundos, que contribuem para diminuir a capacidade de recarga da bacia do rio. Para se ter uma ideia da quantidade de água consumida pela Igarashi, o volume retirado pela empresa é cerca de 106 milhões de litros diários, o que daria para abastecer, por dia, mais de 6,6 mil cisternas de 16.000 litros. A água consumida pela população de Correntina é de aproximadamente 3 milhões de litros por dia.
Após a ação de destruição do maquinário da empresa, correram dias de repressão e tentativa de criminalização, contando com o envio pelo governo do estado de centenas de policiais, tropa de choque, um helicóptero, e de uma campanha em massa dos meios de comunicação contra os camponeses. Em 11 de novembro de 2017, 12 mil pessoas, cerca de um terço da população da cidade, tomou as ruas de Correntina em apoio aos agricultores. No dia 01 de dezembro de 2017, um mês após a ação, é convocada uma audiência pública e cerca de 3.000 pessoas participam em solidariedade. Qual são as principais características dessa luta? Luta comunitária, em mutirão; defesa da natureza; articulação campo cidade; desconfiança de resoluções vindas do Estado.
Como não há saída individual, acredito na pedagogia do mutirão. Aqui no sertão o mutirão é conhecido também por adjunto ou batalhão. É um fenômeno extremamente interessante: o trabalho não acontece para a produção de lucro por meio da exploração do trabalho, mas para a reprodução da vida; o trabalho também não é mobilizado através do poder – financeiro ou político – mas justamente por causa da ausência dele. O mutirão começa com um pedido de ajuda que é impulsionado por uma carência ou limitação. O camponês percebe que não consegue executar aquela determinada tarefa sozinho, então ele pede ajuda, mas já com uma comprida certeza que seu pedido vai ser aceito pelos companheiros. É como que uma afronta à ideia da compra e venda do tempo por meio do trabalho. O mutirão parte de pessoas minimamente iguais economicamente, no geral, empobrecidos/as. No mutirão cada um leva o instrumento de trabalho que possui: quem tem enxada leva enxada, quem tem facão leva facão, quem não tem nada vai e lá consegue com quem tem. No mutirão não existe pagamento. É uma troca, um compromisso. Quando convoco um mutirão em minha roça assumo um compromisso com a comunidade, de ter que aceitar também a convocação quando for chamado. Caso dez pessoas me ajudem, assumo o compromisso com dez roçados diferentes. Quem convoca, no geral, oferece comida e às vezes bebida alcoólica. Os cantos também são comuns nos mutirões. É um jeito de demonstrar gratidão e também de transformar algo que poderia ser penoso em festa.
A festa, a alegria, são elementos que nos tentam roubar.
Mas que sem eles a luta é quase inviável.
A história da brincadeira do Boi ajuda a ilustrar: um latifundiário, dono de imensas terras e gigantes rebanhos, tinha, dentre tantos, um boi preferido. Era o animal mais forte, mais bonito, mais bem cuidado e mais caro. Dele cuidava um homem negro escravizado chamado Chico. Acontece que Catirina, esposa de Chico, engravida e passa a ter um desejo muito forte: comer língua de boi. Mas não era de qualquer boi, era de um boi específico, Catirina queria comer a língua do boi mais querido do latifundiário. Chico, pra que o seu filho não nascesse com cara de língua, decide arrancar a língua do animal, mesmo sabendo do perigo que corria. Chico arranca e o boi morre. O latifundiário, sem saber o que estava acontecendo, achando que o boi tinha somente fugido, exige que Chico encontre o animal. Sabendo que sua morte era certa caso o coronel soubesse do que tinha acontecido, Chico decide encontrar um pajé, pra que ele ressuscite o animal. O pajé vai até o boi, examina com todo o cuidado e dá um diagnóstico: não pode fazer nada. Chico se desespera já que as forças cósmicas eram sua última esperança. O pajé então intervém: não posso fazer nada, mas vocês podem. Continua: a única forma de ressuscitar o boi é através da união, da festa e da fé. É preciso que não só você, mas todo o seu povo tenha fé e celebre, assim o animal vai ressuscitar. Pai Chico mobiliza o povo que, em solidariedade, começa a dançar, rezar e cantar em volta do boi. O boi levanta a vai dançar com o povo.
O boi, mais do que um brinquedo, é um ser encantado. A tarefa do povo é reencantar o animal. Mas como seres mortais vão conseguir reencantar um ser espiritual? Como acreditar se a morte já é algo presente? Através do mutirão, da esperança e da festa, da capacidade de sonhar, mesmo em meio ao caos.
O caos já temos.
Resta-nos despertar o sonho.
Recado final: Um desastre nuclear não é problema apenas do sertão de Pernambuco, mas de todo o país. Existem articulações que envolvem povos e comunidades tradicionais, pastorais sociais, movimentos sociais, ONGs e universidades, como é o caso da Articulação Sertão Antinuclear e da articulação Xô Nuclear. Aproxime-se dessa luta.
Uau!! Muito inquietante e rico