Posted on: 9 de maio de 2021 Posted by: Teia dos Povos Comments: 2

Foto de Alfredo Molano Jimeno

Texto de Raúl Zibechi | Publicado originalmente em Sputnik | Traduzido pela Coletiva Língua

A greve convocada para 28 de abril contra a reforma tributária do presidente Iván Duque (de ultradireita, aliado de Álvaro Uribe) foi o estopim para as ondas de indignação por toda a Colômbia, nas grandes e pequenas cidades, nas áreas rurais e urbanas, entre os setores populares e as classes médias.

Nesse mesmo dia 28, as marchas foram gigantes, mas o que ninguém esperava é que continuassem e crescessem nos quatro dias seguintes, para completar cinco dias de mobilizações massivas, protagonizadas por jovens que não passaram pela guerra de cinco décadas e transcendem a polarização social.

Mas a repressão desencadeada pelo Escuadrón Móvil Anti Disturbios (ESMAD) foi brutal, o que transformou a indignação em raiva e fúria incontíveis. Se a reforma impositiva é impopular, os mortos, as centenas de feridos e golpeados pela polícia encheram a paciência da população colombiana.

Finalmente, domingo, 2 de maio, por volta das 15:00, o presidente teve que voltar atrás e retirar a reforma do Parlamento, ainda que esteja negociando retoques que não alterem o central.

O que o presidente Duque quer é recolher 6,4 bilhões de dólares, aumentando impostos que, inevitavelmente, afetam os bolsos das camadas trabalhadoras e médias. As medidas mais criticadas são taxar com IVA de 19% os serviços públicos, funerários e pensões, implementar pedágios dentro das cidades e levar a 43% a porcentagem sobre os produtos da cesta básica familiar que pagam IVA.

Nos dias anteriores à greve e no seu desenrolar, o Governo foi retrocedendo ao retirar alguns artigos da reforma impositiva e não tocar nos produtos da cesta básica. Foram pequenas concessões diante da magnitude de um levante popular que começava a acurralar o Governo, apesar de uma repressão que provocou pelo menos 10 mortos e centenas de feridos, com especial dureza na cidade de Cali.

Os organismos de direitos humanos denunciaram torturas policiais e a violação de uma jovem detida. Por vezes, a repressão representou uma onda de terror contra a juventude, que em nenhum momento se desesperara nem retrocedeu. Como costuma acontecer, a polícia infiltrou delinquentes nas marchas para saquear e incendiar, e justificar a repressão.

O povo colombiano mostrou nestas jornadas os muitos repúdios acumulados nos anos transcorridos desde os acordos de paz firmados em 2016, entre o Governo e a guerrilha das FARC, que foram recebidos com esperança por uma sociedade cansada de guerra.

Contudo, o Instituto de Estudios para el Desarrollo y la Paz (Indepaz – Inst. de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz) reportou em fevereiro deste ano o assassinato de 1.140 líderes sociais desde 2016 por grupos armados ilegais que, para muitos observadores, contam com a proteção do Governo e das forças armadas e policiais. A violência erodiu a governabilidade, quando todos os setores da sociedade podem contemplar a impunidade dos assassinos que sempre atacam as organizações sociais.

A reforma tributária se une a outras ofensas que a sociedade vem sofrendo. Um comunicado do Consejo Regional Indígena del Cauca (CRIC), a organização social com maior legitimidade e capacidade de mobilização, celebra a retirada da reforma tributária, porém destaca que “ainda falta a reforma na saúde, a reforma na aposentadoria/previdência, as adiadas medidas que deviam dar continuidade aos acordos de paz, e o respeito à consulta prévia”, como estabelece a Convenção 169 da OIT.

Com efeito, o Governo tem um conjunto de reformas regressivas engatilhadas que agridem as economias populares, fortemente degradadas depois de um ano de pandemia mal manejada. Além de ser um dos países mais afetados pelo COVID-19, ainda não conseguiu vacinar 10% da população colombiana, enquanto a ocupação das unidades de cuidados intensivos das principais cidades supera 90%.

Horas antes de Duque anunciar a mobilização das forças armadas, o ex-presidente Álvaro Uribe havia tuitado: “Apoiemos o direito de soldados e policiais de utilizar suas armas para defender sua integridade e para defender as pessoas e bens da ação criminal do terrorismo vândalo”. O escândalo foi maior, o que levou o Twitter a eliminar a mensagem de Uribe por “glorificação da violência”.

Quando, em 1 de maio, o presidente Duque anunciou a “assistência militar” das forças armadas em apoio à polícia, muitas vezes desbordada durante o levante popular, não se sabia o que aconteceria no dia seguinte, já que haviam sido decretados estados de exceção desde as 13:00 em várias cidades. Contudo, os jovens desobedeceram e retornaram em massa às ruas.

Também foi muito significativo que os prefeitos de Bogotá, Cali e Medellín rejeitassem a decisão de Duque de militarizar as ruas. “Não se requer, nem foi solicitada nenhuma militarização”, disse a bogotana Claudia López. “Hoje, mais que militarizar a sociedade, necessitamos retirar a reforma tributária”, disse o prefeito de Cali, Daniel Quintero.

As três cidades que foram o epicentro de um protesto que chegou aos lugares mais remotos, somam 20 milhões de habitantes, quase 40% da população do país. A rejeição tem sido tão maciça, que o presidente teve que voltar atrás.

Um dos jornais de esquerda explica que não tinha outra saída, já que “apesar da onda de terror, a ira popular seguia aumentando, encabeçada por um mar de juventude, uma geração relevante que desconfia profundamente de uma institucionalidade que cria e apoia o paramilitarismo. Seu sonho é de uma outra Colômbia e aqui têm seu primeiro triunfo, que não é pequeno”.

Ainda que a crise esteja longe de acabar, e tudo dependerá da atitude que a juventude tomar, seguindo nas ruas ou recolhendo-se momentaneamente, há poucas dúvidas de que o uribismo – corrente política em torno a Uribe que rejeita os acordos de paz e faz parte da ultradireita regional – deixou uma má impressão. Pode se recompor, mas não será nada simples.

A Colômbia está diante de um momento histórico que pode mudar seu futuro e a vida das maiorias populares. Há 73 anos se viveu uma situação similar, quando o líder liberal Jorge Eliécer Gaitán tinha sérias possibilidades de assumir a presidência. Foi assassinado em 9 de abril de 1948, dando início a uma guerra civil denominada La Violencia, cujas consequências se arrastam até hoje.

Do que se trata é de mudanças profundas, algo que as elites não estão dispostas a aceitar. Como diz o movimento indígena: “Temos que apontar a uma mudança estrutural do país”. Um tipo de mudança como nunca existiu na Colômbia. Aí reside o núcleo do problema e a enorme dificuldade a superar.


Segue um breve podcast para complementar a reflexão acerca da situação nas terras ocupadas pelo estado colombiano.


A Coletiva Língua é uma coletividade de profissionais da língua que busca resgatar a utopia da comunicação emancipada, entendendo que o acesso e o reconhecimento à multiplicidade de línguas e ideias construídas por meio delas é uma das chaves para uma vida rebelde e livre.

Línguas só podem ser instrumento de dominação quando se pretende unificá-las, calando pluralidades.  Mas, ao contrário, acreditamos que as línguas, seus encontros e suas vidas ingovernáveis são fonte de autonomia e liberdade e devem permanecer insubmissas.

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