A pandemia não acabou. E a luta pela saúde e por melhores condições de vida também não. Aos Diários da Pandemia continuam sendo acrescentadas páginas de coragem, determinação, solidariedade e criatividade.
Somente a organização popular autônoma de base é capaz de enfrentar a pandemia. É nós por nós. E todos nós por nosotros.
Junto ao Povo da Rua no Rio de Janeiro – III
Foi a primeira vez que, na Ciranda dos Braços Tortos, realizamos uma ação deste tipo, fixa em um ponto, em vez de circular para a entrega. Isso exigiu um planejamento bem maior, inclusive com os cuidados extras em relação à pandemia.
Inicialmente, pensamos na data de 27 de setembro, Cosme e Damião. Uma celebração para 150 pessoas, com doces, caruru e brinquedos que evocassem a infância. Impossibilitados de realizá-la na data prevista, transferimos para o dia 12 de outubro.
Desta vez, foi preciso um envolvimento muito maior de nossos braços tortos, tanto nos preparativos como no dia da ação. E, desde que compartilhamos a ideia, a adesão foi enorme. Muitas pessoas querendo ajudar. Foram várias as vezes que ouvimos: “Do que vocês precisam?”, quase sempre acompanhado de: “Se precisarem de algo mais, digam”. A gente vai guardar sempre no coração tanto carinho recebido.
O caruru ficou aos cuidados de um amigo querido, homem de Oxossi, chef de cozinha e organizador da ação Isolamento Sem Fome. Também do Grande Caçador, foram as mãos encarregadas do transporte das quentinhas para o local da ação. Mais simbólico do que isso, impossível. O Rei de Ketu provendo alimento para os que tem fome.
Outra pessoa queridíssima, com alegria e empolgação, colaborou com canjica, arroz de carreteiro e quibes, um reforço extra nos alimentos de sal. E teve bolo de fubá com coco, docinhos, bolo recheado, bala de coco, amendoim caseiro, maria-mole, jujuba batom, bala, bombom, cocada, pé-de-moleque, paçoca… Uma festa caprichada e farta, feita para iguais, como deve ser.
O espaço escolhido, no Largo da Glória, contava com quatro mesas de alvenaria e dois bancos. Assim, pudemos criar seis estações: bebidas, doces, comida salgada, brinquedos, kit higiene e máscaras e, por fim, a canjica. Com isso, forçamos a circulação, diminuindo as chances de haver aglomeração. No início do circuito, uma pessoa ficou com um pulverizador com álcool, para a higiene das mãos. Tudo foi pré-embalado em porções individuais e fornecemos um saco grande, de papel, para que pudessem acomodar o que recebiam. Tudo funcionou muito bem.
Pulverizamos mesas e bancos com água sanitária diluída e, só então, cobrimos com as toalhas de TNT. Para a higiene das nossas mãos, utilizamos lenços umedecidos com álcool 70, além do próprio álcool líquido. Também tínhamos disponíveis luvas de látex.
Faço estas notas porque podem ser úteis a quem queira se inspirar e realizar ações semelhantes.
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Na noite da véspera, enquanto eu embalava o amendoim, vi a quantidade de alimentos e, por um momento, pensei que era um exagero (tão meu!), que poderia sobrar, que seria um desperdício, cheguei a perguntar ao Lucio de onde tiramos a ideia de fazer para 150 pessoas. “De você.”, ele respondeu. “E você foi atrás?”, não me lembro se cheguei a dizer ou só pensei.
Nas ações habituais, sempre vem pessoas correndo no fim. Ter que dizer que acabou tudo e lidar com as caras de decepção é uma parte muito ruim do que fazemos. Você vê a fome estampada no rosto e o desespero de não conseguir o alimento. Com o tempo, a gente aprende a administrar na cabeça que fizemos o possível, mas a sensação não é boa. E daí que o número quase duas vezes maior do que fazemos sempre surgiu porque, ao menos desta vez, não queríamos que ninguém ficasse sem comer.
A gente fala 150, mas esse número foi o mínimo. Caruru foram 170, amendoim, 180 e assim com vários itens. Brinquedos: 60 bolas, 90 saquinhos de bolas de gude, 24 piões e 36 petecas. Enfim, a gente queria que, desta vez, não faltasse.
Quando já me preparava para dormir, entra pelo Whatsapp os vídeos da preparação do caruru. Cebola e alho refogando no dendê, camarão e o quiabo… Quase dava pra sentir o cheiro de tão lindo. Coisa mais linda. A festa seria linda também.
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Chegado o dia e a hora, a gente vai pro local com uma ansiedade normal, pedindo que tudo corra bem e que não haja aglomeração. O feriado ajudou bastante, e a rua estava mais vazia, com menos movimento de carros.
Os amigos que foram colaborar começaram a chegar. Eles foram fundamentais para o sucesso do evento. Ao todo, somamos vinte pessoas na organização, o que possibilitou ao menos duas em cada estação, uma ficou com o álcool e o restante, no apoio. Também foi possível fazer uma transmissão ao vivo, para que todos que colaboram com a ciranda, pudessem ver um pouco da ação.
Algumas vezes, a gente recebe críticas (abertas ou veladas) de que a caridade deve ser anônima. No começo, a gente tinha dúvidas se deveríamos compartilhar fotos. Porém, o que fazemos não é caridade, é algo muito diferente e além. A gente entende que é uma troca, porque também somos alimentados. No fundo, a gente acha que se alimenta bem mais. Se eles estão com fome e a gente consegue, ao menos naquela hora, alimentá-los, isso faz com que nossos fragmentos virem anticorpos e isso causa uma satisfação indescritível dentro de nós (apesar de todos os pesares…).
É muito impressionante ver como essa sensação foi vivenciada por todas as pessoas que estiveram junto conosco. Muitas delas também estavam vencendo barreiras e medos naquela situação. Algumas nunca tinham participado de uma ação do tipo, além do medo natural da covid. Houve quem não tivesse saído de casa desde março e estava pondo o pé na rua naquela hora. E, também, quem chegou dizendo que só ficaria alguns minutos e, no entanto, ficou até o final. Ninguém foi embora antes. Emocionante demais.
***
Desde que chegamos no local, começaram a vir um e outro, perguntando o que vai acontecer ali. Explicamos. Vão chegando alguns já conhecidos. A gente fala pra chamar os outros. Muitos pedem água. A gente tinha algumas garrafas extras e distribuímos. Perguntam o horário. “Umas onze e meia”.
Internamente, a gente se pergunta como eles vão saber as horas. Aí, ouve o sino da Igreja da Glória bater. “Taí um jeito”. Conforme vai dando o horário, eles começam a chegar.
Chegam e, pacientemente, se sentam longe. Não se aglomeram, não pedem, não ficam em cima, só assistem. Chega o caruru. As quentinhas são arrumadas em cima da mesa. Só falta o arroz de carreteiro. A gente explica e eles continuam lá, aguardando. Não reclamam.
A gente sabe que eles estão com muita fome, mas eles não avançam. É um comportamento tão diferente de algumas situações onde pessoas bem alimentadas se digladiam em volta de uma mesa. A fome dói, a comida está lá, mas eles esperam.
Enfim, quando, tudo está pronto, eles formam uma fila. Então, vem o mais surpreendente. Todos, sem exceção, estendem as mãos para receber o álcool. Muitos pedem máscara. “Estão junto com o kit de higiene, pode pegar”. É impossível não comparar com os inúmeros casos de gente que briga pelo direito de não usar máscara e outras ignorâncias do tipo.
Eles passam por todas as estações e, então, muitos vão se sentando ao redor, debaixo das árvores, para almoçar. Algumas crianças também chegam, pegam doce, brinquedos. Uma mãe com duas gêmeas em um carrinho, uma menina carequinha, em tratamento, um menino que pede a bola.
E, de barriga cheia, os adultos começam a brincar. Um senhor de chapéu, Paulo, é fera no pião. Outros riscam um triângulo no chão de terra e começa o jogo de bolinhas de gude. Se divertem, riem, se desafiam como se ainda fossem garotos.
E os piões giraram junto com a ciranda. A gira da vida. Nessa gira, os fragmentos se reúnem e o amor se materializa. Mais um momento mágico e inesquecível da Ciranda dos Braços Tortos.
E a gente cantou pra Nossa Senhora Aparecida e pra Seu Tranca Rua das Almas, ali, aos pés do Outeiro da Glória.
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Quando já estávamos nos preparando para ir embora, a amiga pergunta: “Essas pessoas de hoje… elas tem casa?” “Não, elas dormem nas ruas.” “Mas elas são diferentes. Elas são limpas. Não tem aquele fedor…” “Pois é. Por isso, material de higiene é tão importante pra elas.”
Foi a primeira vez que ela participou da Ciranda. Atendeu a uma orientação que recebeu de Seu Tranca Rua das Almas.
*
Fragmentos
Assim como somos formados por fragmentos microscópicos, também somos pedacinhos minúsculos de algo muito maior que não conseguimos compreender ou sequer distinguir bem.
A vida e o universo são ainda um grande mistério, mas, neste enigma, a gente tem pistas e algumas setas apontando a direção.
Talvez, a mais fundamental seja a força de algo que é feito quando muitos desses fragmentos se reúnem em torno de algo em comum. Tanto para o bem quanto para o mal, pois, como partes de um organismo, podemos ser os vírus que causam a doença ou os anticorpos da cura. E temos a vantagem de, muitas vezes, poder escolher o que queremos ser.
Quando muitas pessoas decidem ser anticorpos, o poder de cada um somado ao coletivo cresce em progressão geométrica. É aquela história do um mais um é sempre mais que dois. E o resultado é sempre algo de uma potência espantosa e distinguir as setas que indicam o caminho.
E assim, foi mais um giro da Ciranda dos Braços Tortos.
Até a próxima!
ver também:
Diários da Pandemia #5: junto ao Povo da Rua no Rio de Janeiro – II
vídeo:
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