A Terra Indígena de Rio das Cobras está localizada no Paraná, no município de Nova Laranjeiras, com cerca de 19 mil ha, somos em torno de 3.200 habitantes, a maioria Kaingang e também Guaranis, sendo a maior reserva do Estado.
Estamos aqui desde 1902, antes da área ser demarcada. A última demarcação homologada foi em 1991.
Até o momento não temos muitos casos de COVID confirmados. Por enquanto, está tranquilo aqui.
Grande parte aqui sobrevive com a renda de artesanatos, vendidos nas cidades aqui perto. Com a pandemia as pessoas não tem saído, com medo de se contaminarem. A renda diminuiu muito.
A questão mais complicada recente foi o acidente na BR-277, que passa dentro da Terra Indígena. Foi um fato bastante complicado e nós todos indígenas, residentes em Rio das Cobras, temos pagado o preço até o presente momento.
O acidente ocorreu em 11/11, numa quarta-feira. Um caminhão e uma van se acidentaram. O motorista da van acabou entrando em óbito.
A partir desse momento chegaram vários indígenas. E temos um problema com alcoolismo, aqui dentro da terra indígena.
Então vieram os indígenas alcoolizados, que acabaram abrindo o caminhão, acabaram saqueando. Foi na verdade um minoria, um grupinho de indígenas alcoolizados
Quando a PRF chegou, ela removeu o corpo do motorista da van. E colocaram embaixo dos indígenas alcoolizados, fazendo o saque daquele caminhão.
Então, nós não defendemos a atitude dos indígenas. Mas ambas as partes estavam erradas.
E desse momento até então, nós temos recebido vários ataques, várias ameaças de todas as partes, aqui das cidades vizinhas, principalmente das pessoas do nosso município. Ataques racistas, nos xingando, chamando todos nós de selvagens, lixos humanos, entre outros xingamentos.
O fato do acidente percorreu o Brasil inteiro. E nós estamos sendo bem generalizados, por conta do ato ilícito de um grupinho. Desde o começo nós tivemos as mídias criminalizando a todos nós indígenas como um todo.
A gente tem passado por momentos bem complicados. Pessoas fazendo ameaças de que vão atropelar qualquer indígena que estiver na BR. Muitos indígenas também já foram impedidos de entrar em mercados, em estabelecimentos das cidades próximas, exatamente por causa dessa repercussão do fato.
A gente praticamente perdeu o nosso direito de ir e vir. Como a maioria dos indígenas aqui sobrevivem com a renda de artesanatos, agora estão com medo, de ir vender esses artesanatos nas cidades.
No dia 16/11 tivemos um atropelamento, cometido pela PRF. Ela estava fazendo uma blitz. E perseguiu um dos nossos indígenas e o atropelou. E não prestaram nenhum tipo de socorro. Quando viram que era indígena, simplesmente foram embora sem socorrer a pessoa.
Então, alguns dos nossos “tomaram” a viatura daqueles policiais, para que eles pudessem ter consciência e socorrer aquela pessoa.
Houve um pequeno conflito. E a mídia voltou a distorcer tudo. Falou que nós indígenas estávamos nos manifestando por causa dos indígenas presos por fazerem o saque.
Só que não era por causa disso, os indígenas “tomaram” a viatura da PRF para que se conscientizassem e socorressem o indígena que eles mesmos atropelaram.
A mídia outra vez distorceu, afirmando que os indígenas haviam “roubado” a viatura. Mas todos sabemos que em sã consciência ninguém nunca vai roubar uma viatura da PRF…
No dia 17/11, que foi terça-feira, os indígenas, a juventude, tanto profissionais da educação indígenas quanto profissionais da educação não indígenas, todos fomos nos manifestar na BR contra o Edital 47, da PSS.
Iria ser bastante prejudicial para os educadores, mas também para os indígenas. Porque esse Edital violava as leis que determinam uma educação diferenciada para os povos indígenas.
Mas não chegamos a fechar a BR, apenas ficamos na beira fazendo o nosso manifesto.
Depois de tudo isso, no dia 20/11 tivemos mais um acontecimento. A PRF parou um indígena que fora pegar gasolina na cidade. Ele estava de bicicleta.
Num ato bem covarde da PRF, pararam ele e despejaram no chão toda a gasolina que o indígena havia comprado com o dinheirinho dele.
Após todos esses acontecimentos temos sofrido ataques, e até mesmo perseguição, pela PRF.
Desde o momento do acidente, a PRF se concentrou em três municípios. Em Nova Laranjeiras, em Guaraniaçu e Quedas do Iguaçú. Mas a rodovia que vai para Quedas do Iguaçú é Estadual! Não tem porque a PRF se concentrar naquela área.
Muitas vezes a PRF adentra em nossas aldeias, às vezes com sete, oito carros. Muitas vezes passam com helicóptero em cima de nossas aldeias. Eles estão generalizando, como se todos indígenas fossemos bandidos, o que não somos.
Nossos caciques, nossas lideranças, já tiveram reunião com o Ministério Público. Conseguiram três advogados. Agora nós vamos processar a PRF por esses atos racistas e de perseguição.
Então, nós temos aí uma luta bem grande que nós estamos travando.
Além disso, também estamos nos defendendo nas mídias, nas redes sociais, o máximo que a gente pode.
E também temos feitos importantes aqui dentro da Terra Indígena. Temos uma organização bem forte da nossa juventude indígena. Projetos como hortas orgânicas, que serão ampliadas para todas as comunidades. Temos projetos de apicultura.
Tanto na comunidade Kaingang como nos Guaranis, temos vários feitos importantes dentro da Terra Indígena.
Graças a luta de nossas lideranças, de nossos caciques e da comunidade, conseguimos a implantação de um curso de pedagogia na aldeia sede da TI Rio das Cobras, em parceria com a UNICENTRO.
É um curso diferenciado, próprio para os indígenas. Temos participantes de outras etnias do Paraná: Xetá, Guarani, Kaingang.E o curso conta com professores indígenas lecionando essas línguas nativas para os acadêmicos.
Kellen Kaingang
Moradora e professora na Terra Indígena de Rio das Cobras (PR)
sobre os Diários da Pandemia:
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