Por: Rádio Zapatista
Munidos/as/es de pás e enxadas, homens e mulheres vão até a terra onde será plantado o novo cafezal com técnicas agroecológicas. Outro grupo se reúne no viveiro, onde as mudas são preparadas e as sementes são semeadas coletivamente. Um terceiro grupo percorre o caminho em direção à nascente que alimenta a terra com o líquido vital, para aprender sobre a gestão responsável da água neste território do semiárido baiano. Em todos esses espaços, as palestras combinam explicações técnicas com análises sistêmicas que revelam o profundo significado de criar alternativas reais à destruição causada pelo atual sistema-mundo.
Estamos na Fazenda Flor de Café, que a partir deste momento se torna território dos povos: um novo núcleo da Teia dos Povos, uma grande articulação de povos indígenas, negros/as/es e urbanos/as/es em constante crescimento e que até o momento atua em dez estados do Brasil. E, este evento, originalmente concebido como um tequio / trabalho coletivo torna-se o primeiro curso vivencial da incipiente Escola das Águas Nascentes.
A Teia Dos Povos nasceu em 2012. Na época, o foco era a transição agroecológica ocorrida no Assentamento Terra Vista: mais de 900 hectares de um antigo casarão ocupado em 1992 por 360 famílias do Movimento dos/das/des Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Desde então, o Terra Vista se tornou um grande experimento agroflorestal em constante expansão e um exemplo de que é possível produzir e viver da terra com consciência ecológica e política.
Mas, em 2012, os/as/es que participaram do processo entenderam que para conseguir uma mudança substancial e sistêmica – ou seja, enfrentar o sistema de morte em que vivemos – seria preciso criar uma grande articulação entre indígenas, negros e pobres, tanto de campo como da cidade, numa perspectiva de autonomia e recuperação dos territórios.
Durante o evento na Escola das Águas Nascentes, conversamos com Joelson Ferreira, um dos idealizadores da Teia dos Povos. Mestre Joelson, como é carinhosamente conhecido, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única de Trabalhadores (CUT) e foi dirigente estadual e nacional do MST.
Joelson conta que em 2012 eles organizaram a 1ª Jornada de Agroecologia da Bahia, juntamente com os povos indígenas Tupinambá e Pataxó Hã Hã Hãe, grupos quilombolas e movimentos camponeses. Foi nesse dia que decidiram criar a Teia dos Povos.
“Entendemos que quem deveria organizar essa grande articulação era o MST, um movimento nacional e internacional de grande alcance e muito respeitado. Mas até agora me parece que o MST não entendeu a importância dessa grande aliança.” Perante esta ausência, a Teia dos Povos decidiu assumir a tarefa.
“Entendemos que estamos vivendo um momento histórico muito difícil, que o mundo está passando por uma grande transição em grande velocidade, e que temos a responsabilidade de assumir essa aliança. Porque temos muita clareza de que nem os povos originários, nem os/as/es sem terra, nem os/as/es pequenos/as/es proprietários/as/es, nem os/as/es quilombolas, seja do campo ou da cidade, podem enfrentar essa luta sozinhos/as/es.”
A Teia dos povos concebe a luta como “jornada”, “caminhadas” e “passos”. A jornada é a visão de longo alcance: A luta contra o racismo, o capitalismo, e o patriarcado. As caminhadas são as várias etapas mais tangíveis dessa grande jornada: Soberania hídrica, alimentação, educação, energia, economia, autodefesa, por exemplo. E os passos são as tarefas específicas necessárias em cada caminhada.
Ao mesmo tempo, a construção dessa grande jornada é concebida de forma a encontrar fortes ressonâncias com as propostas da Sexta Declaração da Selva Lacandona (2005). De um lado, a construção, manutenção e crescimento de núcleos de base: territórios organizados onde se pratica a autonomia, como o Assentamento Terra Vista e tantos outros pelo país. Por outro lado, os elos do tecido (Elos da Teia): organizações, coletivos e indivíduos sem território próprio, mas que servem de suporte e vinculação entre os diferentes núcleos de base, respeitando sempre a autonomia e os modos de cada núcleo. De muitas maneiras, poderíamos dizer que a Teia dos Povos é uma prática de zapatismo em terras brasileiras.
Sabemos que a luta é longa e devemos ter paciência histórica. Devemos avançar pouco a pouco na luta pela terra e território, pela soberania alimentar, pela transição agroecológica. E devemos preparar militantes, especialmente jovens e mulheres. Ao mesmo tempo, não devemos querer assumir a luta total, mas preparar e somar alianças, para unir os povos não nas pequenas coisas, mas nas grandes: a luta contra a mineração, os parques eólicos, em defesa da água, pela democratização dos créditos, que agora são entregues ao agronegócio. E acreditamos que só a mobilização popular poderá vencer nessa guerra profunda. “Mas para isso os povos devem assumir essa responsabilidade”. Em tudo isso, a luta urbana é essencial. “Acho que as mudanças vão depender da nossa capacidade de convencer as pessoas urbanas a reagir”. “Se não conseguirmos, vamos continuar resistindo no campo, mas sabemos que a resistência no campo não chega”. Até o momento, a Teia dos Povos possui núcleos de base, alianças e articulações nos estados da Bahia, Maranhão, Rio Grande Do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Sergipe, Ceará e Rondônia.
Soberania pedagógica
Um dos principais entraves à construção de outros mundos possíveis é o desencanto dos/das/des jovens com os territórios e a ambição de inserção individualista no mundo do capital. Assim, uma outra formação autônoma é essencial para a Teia dos Povos. A proposta de soberania pedagógica passa pela construção de escolas onde a finalidade da formação seja a construção e fortalecimento de territórios autônomos, o pensamento crítico, uma visão política ampla e complexa, a preservação dos saberes e das práticas do povo, sem deixar de lado o conhecimento científico.
A Escola das Águas Nascentes faz parte dessa visão. Brígida Salgado, proprietária da Fazenda Flor de Café, hoje Território dos Povos, e residente no território de Malhada de Areia há 25 anos, conta que o sonho de uma escola naquele território nasceu há mais de 20 anos, quando ela conheceu João Pedro Stédile e Joelson Ferreira, então coordenador do MST na Bahia. Na última Jornada da Agroecologia, em fevereiro deste ano, a assembleia decidiu pela criação da Escola, que foi batizada de “das Águas Nascentes” em homenagem à deusa africana das águas Iemanjá, cujo dia é 2 de fevereiro.
A escola faz parte de um projeto maior de educação autônoma da Teia dos Povos. Um de seus fundamentos é que os/as/es professores são pessoas comuns com saberes ancestrais, juntamente com outras pessoas que aportam conhecimentos científicos e acadêmicos. Mas a formação não é apenas técnica, mas também política. Assim, o processo envolve um despertar no sentido de uma compreensão sistêmica do nosso mundo e a urgência de criar novos sistemas baseados na harmonia com a natureza e demais relações sociais. Finalmente, a autonomia pedagógica assenta na prática, não só ou sobretudo na reflexão teórica.
Combater o individualismo destrutivo da lógica capitalista com a construção de uma outra vida possível: esse é o objetivo dessa outra educação, estabelecida na prática. “Precisamos voltar a ser beija-flores” para construir o paraíso na terra que queremos, disse o professor Rosalvo, de 86 anos, na abertura do evento. Não é à toa que os beija-flores, para os povos maias, são o que nos conecta com nossos ancestrais.
Uma aliança internacional
Para o mestre Joelson, é extremamente urgente construir uma aliança internacional baseada nos princípios da solidariedade e da pluralidade, respeitando os jeitos e formas de cada território. Uma aliança que une povos originários, africanos e afrodescendentes, trabalhadores do campo e da cidade. Uma aliança de povos, não de Estados; uma aliança de baixo e não de cima.
Para que essa aliança não seja vazia, ela deve trabalhar também pela autonomia econômica por meio de redes solidárias de produção e consumo. É, portanto, uma troca de saberes, experiências, construções e resistências, mas também uma troca de bens materiais que permitem avançar rumo a uma autonomia cada vez mais plena.
Ao mesmo tempo, Joelson alerta sobre a importância de proteger os segredos do povo da ambição do capital. “Não me refiro apenas aos minerais, mas à biodiversidade, aos alimentos, a uma série de riquezas e conhecimentos que devemos proteger mantendo o segredo. Essa aliança de povos depende de um segredo muito forte”, conclui Joelson.
Nesse dia, o coletivo Urucum Artes colaborativas oferece uma palestra sobre a construção da educação zapatista autônoma e as diversas iniciativas voltadas para o despertar da consciência crítica, dentro e fora das comunidades zapatistas.
Animados/as/es pelas coincidências de olhares, pelo compartilhamento de experiências e pelos longos caminhos ainda a serem percorridos, os/as/es participantes se dirigiram naquela tarde ao território indígena Tapuya, para continuar construindo o despertar coletivo nesta nascente Escola das Águas Nascentes.