Por Erahsto Felício
Dia 12 de maio de 2023 a Reaja ou Será Mort@ completou sua maioridade. São 18 anos de atuação política com autonomia, independência e enfrentamento real ao genocídio do povo preto. Num evento na Ladeira de Nanã, no Engenho Velho de Brotas (Salvador-BA), a organização comunitária panafricanista lembrou que desde de 2005 tem insistido em sair às ruas para enfrentar uma pauta esquecida pelas esquerdas institucionais: a politização da vida das pessoas pretas. Logo de início é preciso dizer que foi a Reaja quem colocou o debate sobre o genocídio preto dentro do vocabulário política brasileiro. Só isso já bastaria para sintetizar a contribuição dessa às nossas lutas contemporâneas. Mas nesse breve elogio eu quero retomar lições dessa organização que são muito caras às nossas esquerdas e que fariam bem se aprendidas para os tempos em que vivemos.
Num início de fevereiro de 2020 fui ao memorial aos jovens chacinados pela polícia na Vila Moisés no Cabula. Acompanhei de perto o exercício anual de memória que a Reaja realiza junto à comunidade para impedir que além das vidas pretas o sistema também eliminasse a dignidade e a capacidade de se revoltar de nossa gente. A polícia militar da Bahia passava com suas viaturas, helicópteros e seus soldados próximos de nós como forma de intimidação. Lembro bem de um repórter de uma TV pedindo que a gente aproveitasse para ir embora junto com os carros das emissoras, pois seria uma forma de se proteger da polícia. Sim, os próprios jornalistas reconheciam o perigo que era lembrar daquela chacina diante a PM da Bahia. Quando fomos embora, Hamilton Borges pediu para os moradores que fossemos juntos pois nós não podíamos proteger ninguém. Palavras mais, palavras menos disse que éramos impotentes diante do poder de fogo dos botas pretas, que saímos para as ruas perder sempre, mas que era o que tínhamos por fazer, e que se os policiais fossem atacar, ficaríamos para perder junto do povo. Aquelas palavras me cortaram por dentro. Era um misto de impotência com dignidade. Naquele quinto ano da chacina que executou 12 jovens ninguém recuou diante da polícia.
Foi naquele mesmo ano de 2020 que fui pela primeira vez dentro da penitenciária Lemos de Brito fazer o trabalho de base junto com a Reaja. Quando o frente do módulo dois viu a galera de camisa preta foi perguntado se tava suave, ao que respondeu “o pátio é nosso”. Bastou a Reaja pisar dentro do pavilhão e o frente gritava “é Reaja ou não é” ao que um coro em uníssono de todo o pavilhão respondia “é Reaja”… “é Reaja ou não é / é Reaja”… Aquele coro, uma multidão de detentos organizando o pátio para atividades culturais, esportivas e de formação política é uma das imagens que nunca sairá da minha memória. Os prisioneiros separaram a melhor comida que seus familiares lhes trouxeram para servir num almoço para nós. Respeitaram profundamente cada um de nós, cada companheiro, cada companheira que estava lá para fazer o trabalho. Discutimos a luta do MST e até a história rebelde do movimento zapatista, falamos da Teia dos Povos e do sonho de uma libertação que acabasse com o racismo e o capitalismo. Ali onde só as organizações religiosas vão fazer doutrinação e levar algum tipo de suporte, tinha uma organização revolucionária respeitadíssima atuando. Isso não é para qualquer um.
Isso é para quem tem coragem de reconhecer corpo, amparar mães de filhos executados extrajudicialmente pelo Estado brasileiro, impedir que a justiça lave as mãos diante da violência policial, ocupar todos os lugares possíveis não para emergência política individual ou da organização, mas para que vítimas do genocídio preto possam ter sua voz reconhecida e seus direitos reconhecidos. Os partidos de esquerda não têm política para os familiares dos chacinados, não peitam a polícia fascista que dizima nosso povo. Seguem fazendo análises da relação das forças armadas com os políticos fascistas, seguem se dizendo antifascistas, mas onde estão na hora que os homens armados executam nossa juventude preta? Querem audiências, querem protestos simbólicos, mas qual a relação que possuem com os familiares, quantos enterros acompanham, quantas vezes foram reconhecer os corpos? É nesse lugar, onde quase ninguém quer ir que atua a Reaja. Em meio às memórias dos 18 anos da Reaja uma companheira perguntou: “como elas conseguem? É muito doloroso cumprir esse papel? Como permanecem fazendo isso?”. Foram as próprias lideranças mulheres da Reaja que responderam que de fato adoecem, que a violência racial machuca muito elas, que é extenuante, cansativo, mas que escolheram seguir lutando, porque – nas palavras de Liu Bittencourt – “militância é uma escolha, ninguém nasce militando”. Elas seguiram escolhendo lutar mesmo diante dessa adversidade, mesmo com a mira da arma pairando sobre suas cabeças. E essa coragem falta às esquerdas institucionais.
O que sabemos das esquerdas institucionais é que elas dizem que as PM’s são ingovernáveis. Que os governadores progressistas do PT não podem fazer mais do que fazem. Legitimam sua omissão culposa como se as polícias tivessem com a arma apontada para o governo, mas não, não é para lá que estão apontadas as armas, é para a periferia. As esquerdas decidiram dizer que o fim do genocídio preto deve esperar o desenvolvimento social, o combate a fome, o reestabelecimento dos programas sociais, o barateamento do carro popular, o fim das queimadas da Amazônia, a decisão sobre o fim do novo ensino médio, a escolha do novo presidente do Banco Central e tanta coisa mais que pensamos que talvez estejamos sós nessa luta, mas não estamos. Em 2019 em sua fala na Jornada de Agroecologia da Bahia, principal evento da Teia dos Povos, o comando vital da Reaja, Dr. Andreia Beatriz, disse que “o corpo negro é o território que continuamos ter que defender diariamente”. E pensamos que essa defesa se faz de muitas formas. Em meio à pandemia, num momento de fome dentro do sistema prisional e nas periferias, o MST da Brigada Ojefferson, através de sua liderança à época, Neto Onirê Sankara, doou mais de duas toneladas de alimento para que a Reaja defendesse o corpo negro da fome. Assim, embora, parece que as esquerdas institucionais abandonaram a defesa do território que é o corpo preto, nosso povo não esquece, nunca esqueceu de seu compromisso verdadeiro com essa causa.
E essa é uma lição muito cara que penso que a Reaja pode ensinar nas nossas lutas. O Estado, os políticos, os governos não estarão por nós. Eu lembro do desespero que foi saber que faltava sabão para lavar as mãos no meio da pandemia de covid-19 no complexo penitenciário da Bahia. Sim, não dava para esperar um governo que tem ódio a preto explicar porquê não comprou sabão. A Reaja teve de ir lá, fazer campanha, arrecadar sabão e entregar. A autonomia política é o verdadeiro nós por nós. Alguns anos antes, em 2013, no pior momento das violências envolvendo a comunidade Quilombola Rio dos Macacos, os prisioneiros, articulados pela Reaja, tinham deixado de comer para arrecadar meia tonelada de comida para ajudar na Campanha Somos Todos Rio dos Macacos. Essas histórias reais provam que a independência política de partidos e do Estado constrói relações verdadeiras de solidariedade apenas vistas em grandes rebeliões populares da história do Brasil. Para além de um princípio, autonomia é uma tarefa cotidiana.
Sim, a verdade é que essa organização que surgiu de uma campanha com marchas poderosas enfrentando o sistema policial brasileiro entendeu que precisaria acumular para além dos protestos e das ações de apoio às vítimas. Foi aí que a autonomia passou de princípio para ação concreta quando decidiram converter toda aquela potência rebelde em marcha numa ação comunitária, territorial, que organizava a base política do povo preto periférico de Salvador a partir de um conjunto de ações instituintes. Hoje a Reja tem uma escola de reforço, uma biblioteca, uma livraria, uma escola de boxe, uma editora, um programa de formação política e, a partir desse ano, um instituto para potencializar tais ações. O Instituto Quilombo Xis é a última criação da Reaja no sentido de dar materialidade aos sonhos emancipatórios do povo preto. A amplitude da ação radical lembra Malcom X: “por todos os meios necessários”.
“Mas não é de qualquer jeito”, certamente completaria Hamilton Borges. E o jeito certo, a forma de fazer não tem sido outra que fazer com o povo, através do povo e não para o povo. Essa é uma das lições mais difíceis das esquerdas. Abandonar qualquer perspectiva salvacionista e paternalista com nossa gente. A dor do ódio racial é compreendida por nossa gente, não temos que lecionar nada, mas precisamos seguir presentes para apoiar e fazer convergir a raiva digna para emancipação do povo preto. E isso não se faz sem as mulheres e sem a juventude.
E talvez essa seja a lição mais cara da Reaja. Enquanto nós estamos vendo o maior partido de esquerda do país bater palma para a incapacidade de renovação de uma liderança perpétua, aqui embaixo o Comando Vital da Reaja é de mulheres e composto também por jovens mulheres, algumas que entraram na organização com menos de 18 anos. Ninguém nasce sabendo lutar, é preciso espaço para atuação e o apoio dos mais velhos para que as novas gerações atualizem a agenda e as formas de luta política. A sabedoria ancestral africana dava à juventude o papel de liderança para as batalhas e aos mais velhos o lugar do aconselhamento. Impedir os mais novos de ocuparem o espaço político que lhes cabe tem sido um erro sistemático de uma esquerda apegada a esses pequenos poderes. Por outro lado, o Comando da organização ser totalmente de mulheres também revela a natureza própria do lugar em que a Reja está indo fazer política. Na quebrada quando a polícia executa as crianças e jovens negros, são as mães que vão recolher os corpos, são as mulheres pretas que vão dar apoio àquela família destruída, são mulheres que precisam extrair forças de onde não têm para seguir cuidando dos filhos que ficaram. No presídio quando olham as filas das visitas, são mulheres pretas a levar uma comida decente para o prisioneiro abandonado pelo Estado, são elas que não abandonam o marido quando esses são enjaulados como bicho. Mas também são elas quando estão presas que recebem menos visitas, que são abandonadas pelos maridos, que são visitadas por outras mulheres pretas que nem elas que não esquecem, que não abandonam. Não podia ser diferente o comando vital de uma organização decidida a acabar com esse estado de coisas ou morrer tentando!
Vida longa às Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta! Onde essa organização atua a esquerda não entra nem com escolta, colete a prova de balas ou máscara. Ali onde para muitos coletivos e organizações políticas morreu a capacidade de atuação por medo, por fraqueza, por racismo, é ali que começa a ação comunitária de gente preta decidida a parar o genocídio com marchas, livros, educação e com seu próprio corpo se necessário. Eu sei que as mulheres de lá me ensinaram que ninguém precisa ser militante, que se escolhe ser militante. Porém enquanto politizar a vida preta for um desafio, a militância da Reaja será sempre necessária!