Texto escrito por Comuna Internacinalista de Rojava.
Muitas vezes ouvimos “no Brasil, já temos tantos problemas, por que ir para outra geografia para lutar?”. Esse questionamento se baseia, primeiramente, em um sentimento de responsabilidade nacionalista, que está diretamente ligado à mentalidade que os Estados-Nação desenvolveram e usaram contra nós. Por que devemos basear nossas lutas em uma visão que não reflete a realidade histórica dos povos originários e da natureza humana?
O internacionalismo é mais do que uma teoria que pode ser lida em alguns livros, é um sentimento que supera as barreiras dos Estados-Nação. O amor pela humanidade não pode ficar preso às correntes do nacionalismo. O internacionalismo é nada mais do que assumir a responsabilidade por todas as lutas democráticas no mundo para superar o capitalismo, e nos unirmos com base em objetivos e inimigos comuns. Compreender libertação ou até mesmo revolução limitando a uma determinada região acabará, cedo ou tarde, trazendo o fracasso. A necessidade da luta continuar e se espalhar por todas as geografias por meios de conexões e intercâmbios é condição essencial para a vitória dos povos contra o capitalismo.
A Abya Yala tem solo fértil para o internacionalismo. Em sua história, diversos povos, etnias, culturas coexistiram e coexistem, o que se trata de um fator essencial para a história de nossa resistência compartilhada. A luta contra os colonizadores, contra o imperialismo e contra as ditaduras financiadas pelos EUA estão presentes em todas as geografias. No Oriente Médio, a situação não é diferente. Diversas línguas, culturas e religiões coexistem, e também com uma história de repressão, colonialismo, apagamento e assimilação cultural.
Entender a realidade do Curdistão é essencial para compreender a situação do Oriente Médio. Após a Primeira Guerra Mundial, houve a divisão do Império Otomano entre as potências europeias em que, por meio do Tratado de Lausanne (1923), o território do Curdistão foi dividido em quatro partes – Turquia, Iraque, Síria e Irã. Em todas as quatro partes, a opressão contra os Curdos foi realizada de maneira calculada pelos quatro Estados. Em todas as quatro partes, a cultura foi perseguida, a língua foi proibida e massacres ocorreram, como em Halabja (1988) – onde, sob o comando de Saddam Hussein, quase cinco mil civis foram mortos com o uso armas químicas. No Estado Turco, os massacres aconteciam com ainda mais frequência e intensidade, como no massacre de Dersim, Tunceli (1937), onde mais de trinta mil civis foram mortos pelos turcos.
Nessa realidade, surgiu o PKK (Partiya Karkerên Kurdistan – Partido dos Trabalhadores do Curdistão), em uma realidade de opressão pós-golpe militar na Turquia (1971), quando um grupo de estudantes liderados por Abdullah Öcalan se organizou para se aprofundar na história, aprender a língua e entender a realidade curda, além de compreender as próprias raízes, dificuldades, realidades e assim construir a base da luta de libertação. Muito influenciado pelas lutas de libertação na Angola, Vietnã, Cuba e Argélia, e também nos estudos de diversas personalidades que não aceitaram a ordem imposta e buscaram outros caminhos – como Mani (profeta do Oriente Médio) e Giordano Bruno – o grupo naturalmente foi construindo uma base de conhecimento internacionalista.
Após o aprofundamento do grupo, em 1978, finalmente um passo histórico foi dado: a fundação do PKK, com o membro fundador, Kemal Pîr, e também Haki Karer, martirizado antes da formação oficial do partido, ambos não eram curdos, mas sim turcos. Eles entenderam, desde o começo, que a luta do partido não tinha como objetivo apenas a libertação dos curdos, mas uma luta pela humanidade. No mesmo ano em que o partido foi fundado, outro passo foi dado: o apoio político pela luta palestina que, em 1982, resultou no apoio militar lutando lado a lado com a PLO (Organização para a Libertação da Palestina) no Líbano.
Alina Sanchez, também conhecida como Legêrîn Çiya. Nascida e criada na Argentina, Şehîd Legêrîn aspirava se tornar médica, bem como uma lutadora e defensora dos pobres e oprimidos. Depois de entrar em contato com o movimento curdo, ela decidiu deixar sua terra natal para dedicar sua vida a ajudar o povo do Curdistão.
Dentro do PKK, se desenvolveu uma cultura internacionalista em que mártires desempenharam papéis essenciais na construção do partido, como Ronahi (Andrea Wolf) da Alemanha, que, em 1996, se juntou à luta armada nas montanhas do Curdistão e, posteriormente, em Rojava; Legerin (Alina Sanchez) da Argentina que, seguindo os passos de Che Guevara, estudou medicina em Cuba e se juntou à luta nas montanhas do Curdistão, entre outros exemplos que mostram a forma em que o movimento revolucionário abraça internacionalistas do mundo todo, seja nos trabalhos civis seja nos trabalhos militares. Com essa troca de experiências e conhecimentos, para cada internacionalista é uma oportunidade de se desenvolver dentro da luta e de encontrar seu próprio papel no movimento.
Campo de treinamento do Partido Curdo PKK – Soldados do PKK no campo de treinamento militar da Academia Mahsun Korkmaz. | Localização: Líbano.
Assim como a Palestina foi uma casa para os movimentos revolucionários se educarem e se prepararem, Öcalan afirma que Rojava precisa desempenhar o mesmo papel histórico. Rojava (Norte e Leste da Síria) talvez seja mais conhecida mundialmente pela luta e resistência histórica contra o movimento extremista do Estado Islâmico, porém a Revolução de Rojava tem um papel histórico ainda mais profundo e significativo na construção de um futuro revolucionário. Baseada na filosofia de Rêber Apo, a evolução aos poucos vem colocando em prática o Confederalismo Democrático, desenvolvendo uma sociedade democrática e ecológica. O paradigma desenvolvido por Öcalan tem como princípio básico a libertação das mulheres, pois o patriarcado como método de opressão é o mais desenvolvido em todo o mundo e, por isso, qualquer luta de autodeterminação das mulheres é uma luta internacionalista. Essa luta de libertação vem sendo travada em Rojava, com educação, forças de autodefesa e cooperativas autônomas, além de diversas outras iniciativas que aos poucos garantem a autonomia das mulheres na região. Esses pensamentos, desde o início da Revolução em 2012, atraiu internacionalistas, especialmente mulheres, do mundo todo, que viram no processo revolucionário uma resposta profunda para os problemas que enfrentavam em suas geografias e nos seus próprios grupos políticos.
Abdullah Öcalan – Um dos membros fundadores do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, Partiya Karkêren Kurdistan) e o criador do confederalismo democrático.[Com base em um programa político que reivindica um Curdistão unificado, independente e socialista.
A filosofia do Confederalismo Democrático, desenvolvida por Rêber Apo, abrange diversos pensamentos, culturas com respeito e amor pela humanidade. A luta que ele iniciou é uma luta universal, para que todas as tentativas históricas por uma vida livre e igual consigam se encontrar representadas, para que os sonhos de todos aqueles que lutaram por libertação venham a se tornar realidade. O Confederalismo Democrático não foi desenvolvido de maneira estrita para os curdos, e sim para todas as geografias. Nos pensamentos de Rêber Apo, não há espaço para manipulação, opressão e domínio, pois é uma filosofia baseada na vida comum, na complementação e nas relações simbióticas. Não é uma abordagem estritamente política, mas holística, existencial, em que o entendimento deve passar a barreira da teoria. Para compreender esse paradigma, não devemos nos perguntar “mas isso é possível?” e sim “até onde chegamos, por que não tivemos sucesso e como vamos trazer uma solução?”.
O modelo do Confederalismo Democrático apresenta soluções para os problemas sociais que foram criados pela modernidade capitalista na era do capital financeiro global imperialista. É necessária uma resposta democrática global às necessidades históricas dos povos, uma resposta que garanta valores democráticos e comunitários da sociedade e também que garanta a autodeterminação e expressão de todas as culturas. Dentro da filosofia de Rêber Apo, as diferentes partes não perdem autonomia e oportunidades, suas relações são flexíveis e baseadas na participação popular. Outro passo importante para entender o Confederalismo Democrático é a recuperação da palavra democracia como a autodeterminação e organização do povo, democracia e sociedade como contrárias ao Estado e modo de vida histórico dos povos originários. Só assim poderemos libertar a sinergia de todo o potencial e criatividade da nossa sociedade.