Posted on: 30 de agosto de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

 Entrevista de Raul Zibbechi com a Teia dos Povos

“Nestes tempos, o importante é que não haja mais ilusões e a pedagogia da insurgência esteja formando uma nova geração de jovens indígenas guiados pelos rezadores e rezadoras”, afirmam membros da Teia dos Povos que acompanham a recuperação de terras (retomadas) dos Kaiowá e Guarani, na região de Douradina, Mato Grosso do Sul, onde o agronegócio está em guerra com os povos originários.

A Teia dos Povos se define como uma articulação de comunidades, territórios, povos e organizações políticas, rurais e urbanas, integrada por povos ribeirinhos, povos originários, quilombolas, sem-terra, sem-teto e pequenos agricultores em núcleos de base com o objetivo de formular caminhos de emancipação coletiva. Assim, trata-se uma Aliança Negra, Indígena e Popular.

“Estamos na fronteira oeste, no Mato Grosso do Sul, perto do umbigo do mundo, como dizem os Kaiowá. Nascemos no coração das casas de rezo; nas retomadas de territórios ancestrais, os Tekoha; no fogo das lutas dos povos que habitam o cone sul do estado e erguem seus mbaraka e takuapu, instrumentos sagrados”, acrescentam os interlocutores que não dão seus nomes por questões de segurança, pois vivem em uma região onde os fazendeiros e a polícia atacam sistematicamente aqueles que apoiam as comunidades.

Por que as comunidades Kaiowá e Guarani estão realizando as retomadas da terrra em Douradina, próximo a Dourados? O que o levou a essa decisão?

As retomadas ocorrem de forma mais sistemática a partir do final da década de 70 e início dos 80, após a conformação da Aty Guasu, a Grande Assembleia do Povo, organização de conselhos de base que é o principal organismo de decisão coletiva. Nós vivemos a ditadura empresarial-militar (1964-1985), responsável pelo assassinato de mais de oito mil indígenas, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV).

A ditadura aprofundou a destruição de grandes porções da selva e do bioma em Mato Grosso do Sul, especialmente no Cone Sul – onde está localizado parte do território ancestral Kaiowá e Guarani – para abrir caminho para monocultivos de soja e milho transgênicos. Porém, o processo de desterritorialização é mais antigo e vem da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, através da concessão de 5 milhões de hectares de terras à Companhia Matte Larangeira, que escravizou os indígenas nas plantações de erva-mate.

Nas décadas de 1910 e 1920, oito Reservas Indígenas foram criadas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI) para confinar aos Kaiowá e Guarani e permitir o avanço da colonização. Isto se intensificou na década de 1940 com a política migratória dos colonos do sul do país para a região, onde se estabeleceram em fazendas de gado. Somente em 1988, com a Constituição Federal, foram reconhecidos os direitos indígenas em seu território.

A promessa de demarcação das terras indígenas nunca foi cumprida e elas foram utilizadas como moeda de troca por diferentes governos de acordo com seus interesses ligados ao extrativismo. O neodesenvolvimentismo do governo do Partido dos Trabalhadores é uma farsa porque aprofundou a repressão e o paramilitarismo alinhado aos megaprojetos e à expansão dos monocultivos, da pecuária, da mineração e de outras formas de extrativismo nas terras indígenas. No Mato Grosso do Sul, a década de 2000 foi o boom da cana-de-açúcar, seguido pela soja e pelo milho transgênico. É um dos estados com os maiores índices de intoxicação por agrotóxicos e violência contra os povos indígenas.

Muitos povos intensificaram as retomadas e autodemarcações, como os Pataxó e os Tupinambá na Bahia, os Munduruku no Pará, os Kaingang e os Mbya Guarani no Sul e São Paulo, os Anacé no Ceará, os Kaiowá e os Guarani no Mato Grosso do Sul. Porque a paralisia total das demarcações rompe com promessas do governo federal e mantém o povo refém de uma espera interminável, enquanto a exacerbação da violência latifundiária aprofunda a concentração de terras. Os povos se deparam com a necessidade de fortalecer ações e organizações autônomas para recuperação das terras.

No Mato Grosso do Sul, as novas retomadas começaram em julho. Foram cinco retomadas coordenadas e os latifundiários articularam ataques imediatos, também coordenados que causaram feridos. A situação de violência piorou com o passar dos dias porque os latifundiários montaram um acampamento a 50 metros da retomada e a partir daí há assédio constante.

As retomadas reivindicam um território ancestral de 12.196 hectares, já reconhecido pelo Estado brasileiro, mas paralisado pelo ritual burocrático há mais de dez anos.

As resistências foram ampliadas por um posicionamento digno dos Kaiowá e dos Guarani contra qualquer forma de negociação de terras, e permanecem firmes, embora dentro dum clima de guerra permanente. As mulheres são uma força muito importante neste processo de retomada, principalmente as nhandesas, rezadeiras e guardiãs dos saberes ancestrais, que mantêm viva a chama e a força do povo para esta grande revolta indígena. É importante dizer que as retomadas não recuperam apenas a terra, mas todo um conjunto de modos de viver e de relações que se estabelecem no território entre diferentes seres. As retomadas são uma forma de recuperar a vida em toda a sua complexidade, de acordo com os modos de existir orientados pelos antigos no Ava Reko, no modo ser Kaiowá e Guarani.

Entendo que os latifundiários estão atacando os indígenas com apoio direto ou indireto da polícia. Você poderia explicar quem continua apoiando os povos indígenas?

A ação repressiva conjunta entre latifundiários, pistoleiros, segurança privada e policiais é um modus operandi desde as primeiras retomadas, que responde às demandas da acumulação capitalista para os territórios, que são alvo de investidores e das grandes empresas que operam as cadeias extrativistas e de saque.

Nas recentes retomadas em Douradina acontece algo semelhante, com a participação direta da Força Nacional – polícia especial criada no primeiro governo Lula -, que na realidade cumpre uma clara função de contra insurgência. Eles foram enviados para Mato Grosso do Sul pelo governo federal para supostamente mediar o “conflito” durante 90 dias. As denúncias dos indígenas demonstraram alianças entre latifundiários e a Força Nacional minutos antes dos ataques de 3 de agosto, que resultaram até na mudança de comando na região.

O Ministério dos Povos Indígenas aderiu ao pedido de aumento do efetivo da Força Nacional, resultando na militarização total do território de Dourados e Douradina, provocando um estado de exceção não declarado e diversas perseguições contra os povos indígenas e seus apoiadores. O Movimento Invasão Zero, ligado à Frente Parlamentar Invasão Zero, e políticos bolsonaristas que atuam como agro-milícias e financiam acampamentos armados também marcam presença na região.

Em apoio aos indígenas estão os grupos e lideranças dos territórios Kaiowá e Guarani que uniram forças com os retomados de Douradina. A assembleia das mulheres Kaiowá e Guarani e a assembleia de jovens tiveram um rol imprescindível. Também encontraram solidariedade de movimentos sociais por exemplo, o MST (que também sofreu ataques em um acampamento em Dourados dias depois dos indígenas), de coletivos autônomos, de mídia independente, de sindicatos, do movimento estudantil, do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), de grupos da agroecologia, antropólogos, advogados populares, psicólogos e médicos populares, professores, organizações de direitos humanos e outros.

Como observam a atitude do Ministério dos Povos Indígenas (Sonia Guajajara), ou seja, do governo Lula? Por que as pessoas se opõem à negociação?

Assumiu um papel de conciliação e mediação entre os interesses do governo – portanto dos latifundiários – e os interesses do povo; não tem intenção de garantir o cumprimento nem dos direitos indígenas nem das suas reivindicações políticas. Portanto, atuam por meio de pequenas concessões sem alterar ou impor limites reais à configuração dos latifúndios e do extrativismo. O próprio ministério, no caso das retomadas de Douradina, focou sua proposta dos “gabinetes de crise” na militarização do território com a Guarda Nacional como medida emergencial

O ministério quase não tem autoridade específica para a principal reivindicação dos povos indígenas, ou seja, a demarcação de suas terras ancestrais. De modo geral, o que percebemos é que o ministério tenta fazer articulações interministeriais e institucionais, assim como diálogos entre unidades federativas, inclusive no Mato Grosso do Sul com o governo do estado que é representante do agronegócio, eleito em coligação com o PT. Os integrantes do grupo oriundos do movimento indígena nacional – a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – têm que cumprir uma extensa agenda burocrática sem vínculos com o território e suas necessidades cotidianas. Por isso acabam se perdendo na política de cima, ficam deslumbrados com os caminhos de cima e aí se perde muita coisa.

Então, o que temos efetivamente é um ministério e um governo que buscam negociações entre indígenas e latifundiários com o objetivo de pacificação, o que para nós e para os povos não é bom. Eles estão tentando negociar com a mãe terra, e nossa mãe e nossa dignidade não estão à venda. O governo Lula tentou propor a venda de terras para compensar a falta de demarcação, e o movimento indígena em nível regional e nacional já disse não.

O presidente fez esta proposta num grande evento com grandes políticos imobiliários numa das maiores fábricas de processamento de carne (frigoríficos) da América Latina, ao mesmo tempo que prometia aumentar as exportações de carne para a China. Ao mesmo tempo que os latifundiários querem a “paz no campo” – e a procuram através das armas –, o governo e as suas instituições também falam desta paz ilusória. Mas o povo já decidiu e não vai negociar o território ancestral. Estas ilusões são exemplos da lógica centrada no Estado que acredita em algum tipo de conciliação possível entre dois mundos que estão em guerra.

Parece que a maior parte do movimento indígena (APIB) está perto de romper abertamente com o governo. É assim mesmo?

A APIB já anunciou a sua ruptura com o governo e este processo está agora a aprofundar-se no contexto do novo julgamento da lei do Marco Temporal[1], denominado “audiência de conciliação”. Essa ameaça jurídico-política foi implementada através de uma lei no Congresso Nacional, dominado pelos latifundiários. O governo propôs vetos parciais, mas permitindo o extrativismo em terras indígenas. Nem mesmo o veto parcial foi aceito e por isso voltou ao Supremo.

O movimento indígena anunciou sua retirada da mesa, caso que o governo não anule imediatamente os efeitos da lei do Marco Temporário, o que não está acontecendo. Desta forma, pode ser que, quando as negociações retornarem, não haja mais presença indígena no julgamento que deliberará sobre o futuro de todas as terras indígenas do país.

Ainda é cedo para dizer o que vai acontecer, mas não se trata de concessões, mas de um processo político estratégico dos povos indígenas que o fazem sem ilusões e sem esperar nada do Estado, como reafirmam constantemente nas retomadas. Não é mais possível manter tensões e contradições sob a pasta. As novas retomadas demonstram na prática o significado profundo desta ruptura.

O que acontecerá após a dissolução ou saída do governo?

A luta continua. O movimento indígena não vai recuar. É um momento de avanço geral de retomadas em todo o país e com força especial nos rezos e caminhos dos Kaiowá e Guarani. Mas pensamos também que a luta pelo território, pela terra e pela autonomia nunca cessou, com ou sem ruptura formal: a APIB, na verdade, não é um governo nem é responsável por uma relação formalmente estabelecida com o Estado.

As retomadas existem desde que o primeiro colonizador expulsou as pessoas de suas terras. Nestes tempos, o importante é que não haja mais ilusões e a pedagogia da insurgência esteja formando uma nova geração de jovens indígenas guiados pelas lideranças. Em tempos de catástrofes, recuperar a terra da destruição desenfreada dos monocultivos abre espaço para que os surtos de rebelião, de milho branco e de selvas queimadas voltem, enquanto as vias institucionais se esgotam. O povo abre os caminhos na encruzilhada para a inevitável primavera anticolonial que já começa a desabrochar os primeiros botões de libertação.

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