Por Henrique Andrade – Professor de Geografia do Instituto Federal da Bahia-IFBA, Doutorando em Geografia pela UFS e militante da Teia dos Povos
Não é novidade constatar que os remédios para as crises sempre são amargos e dolorosos para muitos, ao mesmo tempo que doces e filantrópicos para uma minoria encastelada no poder e viventes das benesses sociais do sistema vigente. Dito isso, é inegável observar e compreender as diversas contradições e problemáticas ambientais e, das questões humanitárias atuais acerca das mudanças climáticas e seus rebatimentos já comprovados cientificamente por diversos estudiosos. Com base nessas premissas, apresento uma questão central – A transição energética é o remédio para a tragédia climática ou mais um veneno capitalista para protelar nossa exploração até o fim do mundo?
O poeta Paulinho Mosca eternizou uma canção nos anos 90 questionando “se o mundo fosse acabar, me diz o que você faria”. Interrogo-me no bojo da construção desta reflexão sobre os limites e alcances dos processos socioeconômicos, culturais e ambientais em pleno século XXI no qual a alienação, a ideologia e o discurso hegemônico escondem as tomadas de decisão que de forma direta conduz a escravização das mentes e a colonização dos corações para construírem um outro mundo a partir dos escombros deste que nos grita em socorro e penitência humanitária.
Se de um lado a saída proposta pelo Capital-Imperialismo está centrado nas benesses relacionadas com o apogeu discursivo das energias renováveis principalmente com a exploração eólica e solar, já está provado que esse processo amplo de expansão territorial no Brasil, mais precisamente no Nordeste Brasileiro, expropria e desterritorializa territórios de comunidades tradicionais e determina o adoecimento de amplos contingentes populacionais derivados da gramática dos megaprojetos energéticos por meio da exploração da natureza e do trabalho.
Nesse sentido, é importante pontuar que as energias renováveis e todo seu aparato discursivo se consolida como uma alternativa de democratização da energia, ao mesmo tempo que representa mais uma estratégia do capital na transformação das energias em mercadoria e, nas fissuras da mudança climática e da crise ambiental construir uma saída para apocalíptico fim do mundo.
De outro lado, a descarbonização do planeta é central para possibilitar uma saída honrosa para a destruição ambiental e social executada pela emissão atmosférica a partir dos derivados do petróleo causando a imensa e estratosférica contaminação do ar, das águas, das florestas e da vida relacionadas com a hegemonia do petróleo no mundo, principalmente no pós 2ª guerra mundial, mas diretamente associado com a crise do capital pós anos 70 do século passado. Aqui pontuamos – Crise para os poderosos é utilizada para aumentar a exploração dos trabalhadores e acentuar a destruição da natureza.
Dito isso, a transição energética nesse momento emerge como a mola propulsora discursiva de alterações substanciais na forma de converter natureza em energia, ou seja, alterar drasticamente a produção energética com tecnologias verdes, sustentáveis e responsáveis por menor impacto da poluição e contaminação ambiental, ao mesmo tempo que é urgente reduzir a utilização dos combustíveis fósseis para uma transformação socioambiental. Contudo, é necessário estarmos atentos para que a Transição Energética não se torne mais um discurso dos donos do poder para protelar e aumentar a exploração da sociedade por meio das energias renováveis.
É urgente debater com profundidade as dimensões sociais e culturais referentes à expansão da pobreza, dos refugiados ambientais, das migrações internacionais em massa que contraditoriamente são elencadas como processos apartados das desigualdades sociais latentes num mundo em frangalhos que concentra e extrai riqueza. Em lado oposto, as comunidades e povos tradicionais produzem conhecimento e práticas socioculturais de respeito à natureza e à vida com a irradiação de riqueza e potencialidades em lidar com o natural e cultural de forma harmoniosa e conciliadora visando a produção de alimentos, guarda das águas, das florestas e da vida como um todo. Porém, tal dimensão é ameaçada pela expansão capitalista com as queimadas, desmatamento, grilagem de terras, poluição e contaminação dos mananciais hídricos, ou seja, uma destruição socioambiental condicionada diretamente pela ganância do capital que potencializada as mudanças climáticas, com suas faces naturais/planetárias que principalmente destroem vidas.
As saídas que os poderosos, suas megaempresas e a mídia produzem como saídas para o caos climático e ambiental tem por exemplo no mercado de crédito de carbono, o reflorestamento com eucalipto, a mineração (irmã siamesa da transição energética) dentre outras tantas estratégias despolitizadas e hegemônicas para não colocar o dedo na ferida. Ou seja, os caminhos propostos para salvar esse mundo em frangalhos é a saída baseada nos interesses da burguesia e de seus poderosos.
Nossa tarefa é construir uma linguagem com ações concretas de autonomia energética, de produção comunitária de energia para e com a vida que valorize os povos e comunidades tradicionais, assentamentos de reforma agrária e trabalhadores em geral, tanto no campo como na cidade. Assim, questionamos em que medida a transição energética coabita pobreza, exploração da natureza e perpetuação do capitalismo como um remédio amargo, para disseminar uma outra destruição social e ambiental por meio de doses homeopáticas de capitalismo verde com espigões eólicos em território tradicionais e tapetes solares no bioma caatinga.
O debate central não é negar o avanço tecnológico, pelo contrário, é defendê-lo num viés popular, apontando as questões contraditórias que impedem de enxergar os reais problemas da sociedade do capital no século XXI, visando a compreensão das potencialidades da questão energética, ensejando a energia como força produtiva capturada pelo capital, pavimentando travessias para as transformações desde baixo com a produção de conhecimento científico que vise a redução da dependência das grandes empresas multinacionais numa mirada comunal com a energia das sementes crioulas, das florestas bioculturais, da autonomia energética comunitária, no caminho da soberania energética popular e não uma segurança energética para o capital. Nessa esteira, a autonomia energética necessita ser baseada na produção local, na força das águas numa mirada comunal, dos biodigestores, no desenvolvimento de sistemas solares e eólicos comunitários dentre outras tantas possibilidades transformadoras para a vida com dignidade.
Os remédios amargos, aparentemente doces, são parte desta estrutura ideológica e discursiva para perpetuação das prisões do individualismo, do coach-zação da vida, da bet-ficação da miséria, do racismo, do patriarcalismo e da violência estrutural que nos conduzem tragicamente ao futuro sustentável, pobre, desigual e verde. A Teia dos Povos tem a missão de construir saídas reais e transformadoras mediadas pelo trabalho, ancestralidade, festa e pão visando comuneirizar a energia nos territórios para os povos, comunidades e trabalhadores no campo, nas cidades e nas periferias!
Por uma soberania/autonomia energética popular!!!
Ainda que o discurso político e midiático atual negue qualquer debate relativo a um eventual colapso do sistema em que vivemos, essa possibilidade existe e é cada vez mais certa. Nesta coluna de Autonomia Energética iremos analisar, de forma pedagógica, as possíveis causas, consequências e soluções para uma transição energética popular que de autonomia e soberania dos povos.
Professor de Geografia do Instituto Federal da Bahia-IFBA, Doutorando em Geografia pela UFS e militante da Teia dos Povos, Henrique Andrade fica a frente e inicia a coluna com essa matéria que problematiza as atuais alternativas “verdes” de transição energética.