Posted on: 22 de outubro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

por Reginaldo Costa (Professor da UFF e educador popular)

A educação popular tem uma importância histórica nas lutas sociais no Brasil. Mas o que entendemos por educação popular? Quais mudanças e disputas ocorreram ao longo das últimas décadas? Como a Teologia da Libertação se relaciona com a educação popular? E o que se passa com a educação popular crítica no contexto atual, marcado pelo crescimento do neofascismo entre as classes populares? Discutir essas questões e refletir sobre os caminhos e descaminhos da educação popular pode nos oferecer pistas valiosas para reorganizar as lutas sociais diante de um cenário tão grave.

Há um processo de conservadorismo crescente na sociedade civil no Brasil e no mundo. O recente resultado das eleições municipais nos dá mais um recado assustador: o neofascismo continua a crescer. O PL, partido de Bolsonaro, cresceu 52% em número de prefeituras, enquanto o Centrão cresceu 12%, dominando 64% dos municípios do país1. Sendo que ainda há 23 bolsonaristas disputando o segundo turno em 52 cidades.2 Além disso, Pablo Marçal, o coach neofascista, é derrotado no primeiro turno, mas se consolida como uma figura pública nacional depois de um crescimento eleitoral meteórico.

 O crescimento do conservadorismo é expresso na relevância eleitoral de partidos identificados com a ultradireita, mas, acima de tudo, no aumento de organizações civis, das mais diversas ordens, propagandeando os ideais do neofascismo: ódio, violência, xenofobia, misoginia, lgbtfobia, negacionismo científico, racismo, o fundamentalismo religioso e anticomunismo. Houve, por exemplo, um crescimento de células neonazistas de 270,6% entre 2019 e 2021, segundo a antropóloga Adriana Dias. Em 2022, seriam 530 núcleos de ultradireita no Brasil. Pelo levantamento da agência Fiquem Sabendo, nos anos de 2019-2020 seriam 159 inquéritos pela Polícia Federal tratando de apologia ao nazismo. Mais do que o período entre 2003 e 2018, que reuniu 143 investigações. Segundo a Central Nacional de Crimes Cibernéticos, no ano de 2021, foram realizadas 14.476 denúncias anônimas sobre o tema.3 Os casos de racismo religioso também reforçam tal tendência. Em 2023, cresceu 140,3% o número de denúncias e 240,3% o número de violações desta ordem, se comparados ao ano de 2018.4 Os ataques de violência contra as escolas é outro indício. Segundo o relatório do governo federal, “Ataques às Escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental”, foram 164 ataques entre 2002 e 2023, 100% dos agressores são do sexo masculino e estavam sob influência de discursos de ultra direita na internet.5

A ascensão do bolsonarismo expressou tal tendência mesclando fundamentalismo religioso cristão e as mais variadas formas de conservadorismo, encarnando a forma mais atual do neofascismo brasileiro. Uma militância violenta que ganha setores das forças armadas, policias, milicianos, agronegócio, fiéis de diversas denominações religiosas neopentecostais, pentecostais e católicas, justamente mobilizando os extratos mais baixos da pirâmide social com o discurso de antissistema.

“(…) há elementos para afirmar uma vinculação orgânica entre os movimentos de massa, com composição dominante dos setores médios, que serviram de justificativa para o Golpe de 2016 e a base eleitoral de Bolsonaro em 2018. O cimento ideológico dessa base social do bolsonarismo foi justamente uma combinação, como demonstram as interações nas redes sociais, entre discursos anticorrupção/antipetismo, conservadorismo moral de fundo religioso, misógino e LGBTfóbico; liberalismo econômico; militarismo e pregação do tipo “bandido bom é bandido morto”. (MATTOS, 2020, P. 272).  

A neofascistização brasileira ultrapassa, portanto, a figura de Bolsonaro, pois encarna uma movimento ético-político que se torna cada vez mais orgânico às camadas populares. Mas como chegamos até aqui? O que aconteceu com a mobilização de base, a educação popular, a Teologia da Libertação, movimentos tão importantes na história das lutas sociais do país? 

Apresentarei um breve histórico sobre a educação popular crítica e sua relação com a Teologia da Libertação para discutir os seus caminhos e descaminhos. A partir daí, teço algumas provocações sobre a nossa situação atual.  

A formação da educação popular na experiência da classe trabalhadora: hegemonia e contra-hegemonia

Segundo Victor Vicent Valla, a educação popular, enquanto preceito de cidadania do capitalismo, nasce da necessidade disciplinar trabalhadores para o padrão de sociabilidade urbano-industrial (1986). A organização da vida, no seu processo produtivo urbano-industrial, nos seus mais diversos aspectos culturais, morais, econômicos e políticos (ENGELS, 2010) deveriam ser subsumidos à reprodução do capital, deste modo, sob a urgência de educar os trabalhadores para a divisão social do trabalho, o individualismo, o consumismo, a obediência civil, a naturalização da forma alienada do trabalho (MARX, 2008). Educar-se, urbanizar-se, civilizar-se conferia a relação contraditória de cidadania enquanto acesso a um léxico de direitos e, contraditoriamente, a uma rede de sujeição às formas de controle do capital sobre a vida (COSTA, 2015).

Quando Adam Smith prescreve educação pública aos operários, ainda no século XVIII, não o fez por filantropia ou apreço ao desenvolvimento humano. Há uma preocupação dele sobre uma dita estupidez que acompanha o processo de acentuada divisão social do trabalho nas fábricas de então (FERRARO, 2009). Em resumo, se preocupa com o disciplinamento ao modo de produzir da Revolução Industrial, que expropriava os meios de produção, e, mais que isso, ao plano urbano e fabril, enquanto forma de sociabilidade que ainda engatinhava e enfrentava resistências luditas e diversos motins urbanos. E eis que surgem as escolas para aprendizes artífices, os cursos de alfabetização, as escolas fabris nas vilas operárias e as primeiras políticas públicas educação aos trabalhadores e a questão social. Ciavatta mostra como o surgimento das escolas de aprendizes artífices, em 1909, buscava atender a demanda industrial no Brasil. O Centro Ferroviário de Seleção Profissional de São Paulo seria uma iniciativa dos empresários paulistas anos 1920 que influenciaria a formação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI – 1942) (2009, p. 176).

No entanto, o processo de consolidação da Revolução Industrial não se realiza sem resistências. As lutas sociais explodem pelo mundo, no centro do capitalismo, nas cidades operárias, assim como nos países periféricos, nas lutas de anticoloniais se amalgamando à resistência dos povos oprimidos, de escravizados a livres, se combinando à metamorfose no modo de reprodução da vida. Do ataque ao maquinário do movimento ludita, passando pela formação de sindicatos, de levantes de escravizados, motins urbanos e rurais, é possível observar, em contraposição à consolidação do capitalismo, a ação contra-hegemônica na formação de iniciativas de educação popular, que nascem da experiência da luta de classes. Experiência no sentindo thompsoniano, enquanto a específica forma de experimentar o antagonismo de classes e os seus enfrentamentos no plano cultural, político, econômico, territorial, psicológico, individual, coletivo, religioso e afetivo. Ou seja, grupos de letramento, cursos técnicos e bibliotecas populares foram construídos nas mobilizações de grupos de ajuda mútua, nos primeiros quilombos, nas lutas por terra e território, nos sindicatos, partidos operários e diversas modalidades de movimentos sociais (MATTOS, 2008). As associações de ajuda mútua, além da defesa de questões trabalhistas também se dedicavam a “(…) instrução dos associados, quase sempre profissional, além da organização de bibliotecas (…)” (Ibidem, p. 95).

Significa que a educação popular é expressão da força de manutenção da ordem social dominante, assim como da sua força reversa, a da contra-hegemonia, enquanto processo de luta dos oprimidos e explorados, experiência de antagonização de formas de vida, classes sociais em disputa. Quando experimentamos a industrialização no final do século XIX, nossa formação histórica de um país dependente (FERNANDES, 1975), de tradição escravista, assentado na monocultura agroexportadora, ensejaram-se as peculiaridades do nosso processo de desenvolvimento capitalista desigual e combinado. O processo de constituição de um Brasil dedicado a “modernização conservadora”, em que a urbanização, industrialização, desenvolvimento nacional, expunha os dilemas de um país que sofria as pressões imperialistas, da burguesia nacional entreguista e da classe trabalhadora que erguia suas formas de organização política. Dos anos 1930 aos 1950, ocorre o acirramento das lutas camponesas por terra, o fortalecimento do movimento estudantil, sindical e de associações de moradores nas favelas, uma das disputas postas naquele momento era a possibilidade de educar-se.

O Estado Novo (1930-1945), se por um lado prometeu a universalização da educação aos pobres mediante as reformas de Estado, o escolanovismo administrado pelo varguismo, não mudou sensivelmente a situação de uma baixa escolarização do povo. É durante o período 1946-1964 que ocorrem as campanhas de alfabetização e ampliação da rede de escolas públicas (SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020). A disputa pela alfabetização dos pobres se ligava a política nacional, afinal, o voto era proibido aos analfabetos e se estabelece uma franca disputa pela alfabetização, a conscientização, os votos e a militância dos trabalhadores. O crescimento dos PCB, por meio dos Comitês Populares Democráticos, com seus cursos de alfabetização nas favelas, incomodava a elite brasileira, que via no trabalho de base educacional comunista uma ameaça aos seus interesses. Logo, em 1947, o PCB é colocado na ilegalidade e entidades católicas anticomunistas surgiam: Fundação Leão XIII (1947) e depois a Cruzada São Sebastião (1955) com a disposição de educar, pesquisar, civilizar os trabalhadores pobres das favelas (COSTA, 2019).

A Educação Popular e a Teologia da Libertação: o caminho da libertação dos pobres

É nesse contexto de disputa sobre a alfabetização dos trabalhadores que ocorrem os Encontros Nacionais de Educação de Adultos (1958), tendo como relator Paulo Freire. “(…) 74 desses grupos se reuniram em Recife, I Encontro Nacional de Cultura e Educação Popular, sendo que dois terços deles trabalhavam com educação de adultos” (SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 10). O chamado “Método Paulo Freire” surge sintetizando os ânimos acirrados das lutas sociais, a busca pela agência histórica da classe trabalhadora era traduzida para a educação. O presidente João Goulart, tensionando pelas Reformas de Base, assumiu a prioridade pública de alfabetização dos trabalhadores quando criou o Plano Nacional de Alfabetização (PNA), que tinha como meta “alfabetizar seis milhões de pessoas no ano de 1964” (SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 10). O que significaria aumentar em 50% o número de votantes. A Campanha de Educação Popular (CEPLAR), de 1962, foi pioneira na utilização do “Método Paulo Freire” (Ibidem, p. 21). Alfabetizar significava disputar consciências pelos temas das Reformas de Base, tais como reforma agrária, reforma urbana, educação e saúde pública, habitação, controle sobre a industrialização nacional.

Nesse processo, os tensionamentos também se intensificam na Igreja Católica. Setores progressistas iniciam uma tomada de posição cada vez mais pública e organizada sobre os dilemas postos naquele momento, em que a filantropia, a questão social, o reformismo e a revolução eram realidades no cenário internacional, tendo em vista, principalmente as revoluções da China (1949) e Cuba (1959). No âmbito da hierarquia eclesiástica pode-se observar aos seguintes movimentos, segundo Scocuglia e Pereira, as “(…) encíclicas do Papa João XXII (1959-1963) e a continuidade com o papado de Paulo VI como os enclaves de Medellín e Puebla que influenciaram decisivamente setores da Igreja na América Latina como um todo” (2020, p. 20).

O golpe empresarial-militar interrompe, contudo, o amplo movimento pelas Reformas de Base e a ampliação da educação popular freireana. No entanto, uma série de movimentos sociais mantiveram a educação popular como um meio de resistência à ditadura, principalmente a partir da Igreja Viva, que seriam os “(…) embriões das Comunidades Eclesiais de Base” (SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 12). Quando o movimento de massas já impõe um processo de abertura política contra a ditadura a

“(…) “educação popular” passou a significar o trabalho político-educativo junto aos movimentos sociais organizados, aos sindicatos “progressistas”, aos municípios conquistados pelos partidos de “esquerda”. E, continuou a significar o trabalho dos jovens e adultos, em suas várias modalidades” (ibidem).

Ainda nos anos 1960, crescia a mobilização popular católica por meio das diversas agremiações católicas JUC/JOC/JEC e surgia a organização revolucionária Ação Popular. Junto ao legado freireano da educação popular se dava o franco crescimento das Comunidades Eclesiais de Base, que seguiam as teses do Concílio Vaticano II de aproximação da realidade dos trabalhadores. Segundo Scocuglia e Pereira, “(…) o Cristo dos “esfarrapados”, o Marx do “socialismo concreto” e o Paulo Freire da educação popular, muito contribuíram para as reflexões que fundamentaram as ações das comunidades eclesiais de base (…)” (2020, p. 23).

A sistematização do que veio a ser reconhecido como a base da Teologia da Libertação vem da obra seminal de Gustavo Gutierrez (1971), “Teologia da Libertação – perspectivas”. Nela, Gutierrez propõe uma união entre a fé e a análise das condições concretas da vida numa perspectiva que tinha no marxismo um referencial fundamental (SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 149). Apresenta uma crítica ao dualismo filosófico-teológico corpo-espírito, ou seja, se contrapõe a “(…) separação entre fé e vida, cotidiano e esfera religiosa, clérigos e povo” (Ibidem, p. 151).  Para Gutierrez a “(…) a teologia como crítica da práxis histórica é assim uma teologia libertadora, uma teologia da transformação libertadora da história da humanidade (…)” (GUTIERREZ, 1971, p. 73 apud SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 153). A concepção totalizante sobre espírito e razão problematiza, inclusive, a visão que se tinha sobre o desenvolvimento e subdesenvolvimento no campo liberal, compreendendo que havia uma relação dialética entre os países que se desenvolvem e os que são vítimas deste desenvolvimento. A libertação vem, portanto, da possibilidade de superar os pressupostos do desenvolvimento do capital, da sua modernização enquanto força destruidora.  

Isso leva a uma situação mais conflituosa do processo. O desenvolvimento deve atacar as causas da situação, das quais a mais profunda é a dependência econômica, social, política e cultural de alguns povos em relação a outros, expressão de dominação de algumas classes sociais sobre outras.  Buscar melhorias dentro de   uma situação, no plano de certa racionalidade científica. Apenas uma quebra radical do presente estado de coisas, uma transformação profunda do sistema de propriedade, o acesso   ao poder da classe   explorada, uma revolução social que rompa com tal de pendência podem permitir a passagem a uma sociedade diferente, a uma sociedade socialista. Ou, pelo menos, torná-la possível (GUTIERREZ, 1971, p. 82 apud SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 159).

A libertação vem de uma crítica totalizante sobre o capitalismo, que reconhece os âmbitos econômicos, culturais, políticos e psicológicos. Uma verdadeira revolução social, que ele denomina como uma “revolução cultural permanente” (GUTIERREZ , 1971, p. 90 apud apud COCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 159).

A resposta do Vaticano e do Conselho dos Bispos da Igreja Latino-americana (CELAM) foi de severa crítica desta tendência no seio da Igreja Católica. A concepção teológico-política de reorganização católica a partir de um corte classista era considerada um perigo aos governos e à própria Igreja, já que conformava uma concepção religiosa que unificava a moral, a espiritualidade e a análise da realidade concreta nos âmbitos político, econômico e cultural ameaçavam. “(…) Pobres e oprimidos são os grandes agentes de sua própria libertação e considerados como sujeitos de sua própria história” (SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 146).

Quando Freire afirma seu cristianismo é possível observar suas proximidades com esta Teologia da Libertação que compreende uma dialética entre a vida de Cristo e os seus ensinamentos. O autor formula sua compreensão pedagógica a partir de uma dialética entre o viver e o ensinar:

Costumo dizer que, independente da posição cristã na qual tratei de sempre estar, Cristo será para mim, como o é, um exemplo de pedagogo… o que me fascina dos Evangelhos é a indivisibilidade entre seu conteúdo e o método com que Cristo os comunicava…Verdade. Ele mesmo. Verdade que se fez carne, história viva, sua pedagogia era a do testemunho de uma presença que contradizia, que denunciava e anunciava. Verbo encarnado (FREIRE, 1979, p. 7 apud SCOCUGLIA, PEREIRA, 2020, p. 177).

O processo de enfraquecimento da ditadura empresarial-militar teve um protagonismo desta articulação entre as lutas sociais de resistência no campo e cidade, o desenvolvimento da educação popular e da Teologia da Libertação. Surgia uma nova onda de movimentos sociais ligados ao “novo sindicalismo”, movimento campesino, movimento estudantil, associações de moradores nas favelas e coletivos de educação popular em locais de trabalho, moradia e nas igrejas. Nos anos 1980 as primeiras prefeituras do PT retomam tais experiências acumuladas e passam a formular políticas públicas nas áreas de educação e saúde.

As teologias conservadoras e a adaptação da educação popular à ordem burguesa

Nos anos 1990 o signo das lutas sociais se inverte e uma árdua caminhada de derrotas se configuram no plano internacional e nacional. O bloco soviético sucumbe e os partidos comunistas, trabalhistas e de esquerda em geral são pressionados à direita pela máxima de que a História havia sido sepultada. A revolução nicaraguense é derrotada. As taxas de sindicalização caem vertiginosamente no Brasil e os instrumentos da classe trabalhadora, erguidos nos anos 1980, paulatinamente, vão se adaptando à ordem burguesa. O neoliberalismo consolida sua agenda de privatizações e reformas de Estado no mundo e no Brasil. Nos anos 1990, durante o governo Fernando Henrique, entramos num cenário de refluxo, de desmonte dos avanços da Constituição de 1988, em que os movimentos sociais e partidos de esquerda passam a uma correlação de forças defensiva.

A Igreja Católica manteve a sua ofensiva conservadora nos anos 1990, segundo Michel Löwy, na medida em que o Vaticano manteve a orientação de centralização autoritária na América Latina durante o pontificado de João Paulo II. A indicação de bispos conservadores, a exclusão de teólogos de suas ordens religiosas, fechamento de seminários progressistas e sucessivas intervenções contra a CLAR (Confederação dos Religiosos da América Latina). Nesse artigo, de 1996, Löwy observa o movimento autoritário, mas ainda não lhe parece muito claro o nível da desmobilização das esquerdas católicas que então se encaminhavam. 6

Neste mesmo período os evangélicos cresciam nos territórios mais pobres do Brasil em uma série de denominações pentecostais e neopentecostais. Segundo Christian Dunker, teríamos realizado a (…)invenção à brasileira de uma religiosidade neoliberal.”7 A ética protestante teria se desenvolvido vorazmente, simbioticamente à ideologia do trabalho flexível, ao empreendedorismo. A Teologia do Domínio encarnou no mundo as dualidades da moralidade cristã, oferecendo a guerra da política como caminho para o reerguimento contra as mazelas da vida, tão abalada pelo desemprego, a fome, a desesperança no futuro, o individualismo, a instabilidade empregatícia, o cansaço do trabalho etc. E a Teologia da Prosperidade assumiu o individualismo empresarial como mantra, tal qual um alento psicológico para suportar o fracasso da promessa neoliberal. Não são, portanto, promessas metafísicas apenas, mas a realização no plano terreno da ascensão social. Orientação que passa ao largo da perspectiva de um amor cristão como princípio de vivência. Na verdade, o que os evangélicos conservadores organizam no plano da política é o ódio do bem contra o mal.

Creio que foram estes afetos que tomaram o lugar da educação popular que chegava aos trabalhadores pobres pelo viés da Teologia da Libertação. O que impulsionava era a fé no amor e no perdão, aliada a compreensão das exigências da luta de classes. Majoritariamente, a esquerda abriu mão do seu movimento de base, da sua educação popular, da sua relação com a perspectiva da Teologia da Libertação para uma perspectiva denominada por Lúcia Neves como uma dialética entre uma esquerda para o capital e uma direita para o social (2010). As eleições, a moderação pela governabilidade, a militância por editais de fomento, a desagregação das pautas de luta na perspectiva de crítica radical antissistêmica, tornaram toda uma tradição da educação popular e da Teologia da Libertação um atributo de museu na história do PT e muitos movimentos sociais.

Frei Betto, em entrevista ao Opera Mundi, explicou sobre como o governo Lula abriu mão do Programa Fome Zero, que era ancorado na relação com movimentos sociais, mobilizados pela perspectiva da educação popular, para optar pelo Bolsa Família, em que realiza um lobby pela governabilidade nacional junto aos prefeitos. Seu depoimento é exemplar e nos faz pensar que o PT, que havia se nutrido da Teologia da Libertação e da educação popular freireana, preferiu abrir mão de disputar o poder para administrar o capital. A aposta seria na conciliação supostamente possível com a habilidade de Lula. Mas a realidade mostrou que um contingente crescente da classe trabalhadora abandonou tal projeto e embarcou no bolsonarismo, que lhes pareceu mais antissistêmico que o PT. 8

Nesse sentido, o neofascismo se nutre da fraqueza da esquerda, da sua incapacidade de mobilização programática, organizada e permanente, e do enfraquecimento do trabalho de base junto aos povos e classes populares. Nesse processo, a educação popular é um instrumento que foi capturado por entidades empresariais que deslocaram a perspectiva de libertação na sua caracterização mais profunda, para se propor a administrar soluções localizadas de programas de governo de alívio à pobreza focalizadas, tal qual as orientações do Banco Mundial.

Para Recaminhar

Como demonstrado acima, quando Paulo Freire afirmou sobre a verdade da própria vida de Cristo ser uma construção propositiva de ensinamentos, uma eloquente ação pedagógica, reafirmou o quanto a transformação histórica só é possível enquanto produto de nossas mãos. Há aí uma perspectiva que se fundamenta na luta de classes, como experiência de realização da vida. O processo de se reconhecer no mundo é doloroso e libertador, pois passa por assumir a sua agência histórica, o rumo dos nossos destinos. Assim, superar o neofascismo não pode ser fruto de uma esperança abstrata, de um imobilismo terceirizado a um governante. O legado da educação popular e da Teologia da Libertação merecem ser revisitados para que reacendamos a chama de uma resistência efetiva, que não cabe em urnas, em promessas de governo, em programas sociais focalizados que administram o caos do capital. Talvez esse exercício de memória nos ajude a projetar futuros, estabelecer reencontros entre os povos, os que são oprimidos, potencializar os nexos do trabalho coletivo, da disciplina revolucionária, da organização programática dos nossos sonhos e colorir a nossa coragem de realizar os nossos planos de mudança com a devida ousadia que as condições atuais exigem.

Relembrar nossos caminhos para trilhar outros… Encarnar a libertação com a vida dos povos!

Bibliografia

CIAVATTA, Maria. Mediações Históricas de Trabalho e Educação: gênese e disputas na formação dos trabalhadores (Rio de Janeiro), 1930-1960). Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

COSTA, Reginaldo. A Fundação Leão XIII Educando os Favelados (1947-1964). Tese (Doutorado em Educação) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2015.

___. A Educação Popular Dos Comitês Populares Democráticos nas Favelas do Rio De Janeiro nos Anos 1940 in Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, nº 11, pp. 16-43, Jan./Jun. 2019.

ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.

FERNANDES, Florestan. Capitalismo Dependente: classes sociais na América Latina. 2. Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

FERRARO, Alceu Ravanello. Liberalismos e educação. Ou por que o Brasil não podia ir além de Mandeville in Revista Brasileira de Educação v. 14 n. 41 maio/ago. 2009.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008.

MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo. Usina Editora, 2020.

___. Escravizados e Livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008.

NEVES, Lúcia Maria Wanderley. A direita para o social e a esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Editora Xamã, 2010.

RELATÓRIO FINAL ATAQUES ÀS ESCOLAS NO BRASIL: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental. Grupo de Trabalho de Especialistas em Violência nas Escolas Estabelecido pela Portaria 1.089, de 12 de junho de 2023. Relator: Daniel Cara (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo).

SCOCUGLIA, Afonso Celso; PEREIRA, Vanderlan Paulo de Oliveira. Educação Popular e Teologia da Libertação na Ditadura Militar (1964).  João Pessoa: Editora UFPB, 2020.

VALLA, V. Vicent. Educação e Favela. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

  1. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c70wl927l60o (Acessado em 16/10/2024). ↩︎
  2. https://operamundi.uol.com.br/opiniao/eleicoes-municipais-dez-hipoteses-exploratorias/ (Acessado em 16/10/2024).
    ↩︎
  3. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-04/conselho-leva-onu-alerta-sobre-avanco-do-neonazismo-no-brasil (Acessado em 16/10/2024).
    ↩︎
  4. https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/01/21/brasil-tem-aumento-de-denuncias-de-intolerancia-religiosa-veja-avancos-e-desafios-no-combate-ao-crime.ghtml (Acessado em 16/10/2024). ↩︎
  5. https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/Base_RelGTEspecialistasMEC_FormatoGTI_2.pdf (Acessado em 16/10/2024). ↩︎
  6. https://teoriaedebate.org.br/1996/04/01/a-teologia-da-libertacao-acabou/ . Acessado em 1/10/2024. ↩︎
  7. https://apublica.org/2024/01/brasil-parece-ter-inventado-uma-religiosidade-neoliberal-diz-christian-dunker/ Acessado em 1/10/2024. ↩︎
  8. https://www.youtube.com/watch?v=zZbTPn1eQ10 Acessado em 1/10/2024. ↩︎

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