Posted on: 3 de novembro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

por Monalisa Lustosa Nascimento

Estamos presenciando o caos climático piorar cada dia mais. Nos jornais, na tv, nos desastres ambientais cheios de culpados, que soam como imprevisíveis, quando na verdade são consequências de um mundo cujo modo de vida é predatório e violento em sua maior parte. Ninguém pode ignorar ou fingir que o futuro não está cercado de incertezas e de medo. O presente já é uma emergência climática e ambiental. Já agoniza. Entretanto, essas incertezas e medos se agigantam para os povos tradicionais do Brasil, que se veem cercados de projetos para “salvar o mundo”, cujo preço é o sacrifício e a morte de territórios tradicionais. As rutas de saqueo ou zonas de sacríficio de povos e territórios tradicionais são a prova que a corrida pela descarbonização e menos poluição do mundo, é na verdade uma busca desesperada do capitalismo para salvar-se, salvar o modo predatório e violento de produção, e perpetuar as suas formas de apropriação da natureza e de tudo que nela vivem: homens, bichos, terras e mares.

A Transição Energética é a nova bandeira do Desenvolvimento Sustentável. Bastante propagandeado, este conceito de desenvolvimento (assim como todos os que vieram antes) se impõe violento e cínico sobre pescadores e pescadoras, marisqueiras, agricultores, homens e mulheres do campo, povos tradicionais de todas as diversidades e reconhecidos pela OIT, toda a gente que vive da sua e para a sua terra, que dela retira o sustento e o significado de ser. Não coincidentemente, são exatos estes territórios tão já sustentáveis que chegam gigantes torres eólicas sombreando as casas e os sonhos, fazendo ruídos infinitos e piscando luzes de alerta noite adentro. São nestes territórios que chegam homens representando empresas cujo nome nunca se ouviu falar, que trazem em papéis cujas letras não se reconhecem, argumentos de que aquele chão do pescador e do agricultor, é agora o território do Desenvolvimento Sustentável, por 25, 50 anos. 

Grandes ilusões e tristezas assolam o Nordeste do litoral ao semiárido. As tristezas já se ouvem das serras, agonizam alto ao redor de placas solares no sertão. Das praias podemos ver as lágrimas. A vista é um deserto de produção energética que vai transformando de pouquinho em pouquinho, as esperanças em angustias. 

Esperanças…ainda é possível falar em esperanças quando a transição energética corporativa já cavou tantos buracos em territórios e famílias? Como ter esperança quando a noite, os sonhos são atravessados pelo som de uma turbina?

a gente viu o povo, as dores do povo, a angústia do povo, o sofrimento do povo. Porque na minha opinião a gente até aceita que uma coisa grandiosa dessa venha e a comunidade, o território melhore de vida. Se fosse pra melhorar de vida, ótimo, seria uma beleza. Mas numa situação como essa, por exemplo, que o Rio Grande do Norte vive, é um dos maiores produtores de energia eólica do Brasil e o povo tá pedindo esmola?! pessoal não tem o que comer?! não tem onde plantar?! não tem como circular?! pessoal tá quase todo mundo doente! (Seu Valyres, pescador tradicional de Caetanos, em Amontada – CE).

Esperança é a maior oração que existe. É o que pedem os pescadores à Nossa Senhora dos Navegantes em Agosto. Que a barquinha desta vida lhes dê a chance de esperançar. Não com o irreal, mas com a esperança construída no dia a dia, fincada nos territórios, até ela encher o coração de luta e a boca de sonhos. Afinal, os territórios de Esperança existem. 

Territórios de Esperança, chamamos aqui, os territórios que estão lutando bravamente e pautando as principais discussões sobre a transição energética em curso: reivindicam uma transição energética justa, popular e soberana. Os territórios de Esperança buscam a autonomia, a emancipação, a soberania de seus povos, dentro do contexto de produção energética também. Miramos esses horizontes ao conhecer comunidades tradicionais que conseguiram resistir a entrada de torres eólicas e fazendas solares desde o litoral do Ceará, como é o caso da Barra de Moitas e Caetanos em Amontada, Morro dos Patos em Itarema, cercados por eólicas, resistem dia após dia, para que suas praias sejam livres, com o ir e vir das barcas. Territórios de Esperança também tem a ver com as mulheres da Borborema, na Paraíba, com a Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia do Polo da Borborema, tem a ver com as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto na Bahia e todos que com as ciências tradicionais estão descobrindo as alternativas ao que entendem como Desenvolvimento de morte. 

Mas quais são as práticas que levam essas comunidades a pensar o mais além da resistência? Quais são as alternativas a este modelo de transição energética corporativo? Muitas comunidades tradicionais do Brasil têm colocado esta como uma das principais tarefas para além da resistência que já precisam fazer cotidianamente. A própria Teia dos Povos elenca a autonomia energética como um dos pontos cruciais para a construção de territórios emancipados. Na realidade, já temos várias e espalhadas experiências de produção energética que caminham na direção desta esperança. As construções de governança energética comunitária podem ser vistas através do trabalho dos professores Ricélia Maria Marinho Sales e Luís Gustavo De Lima Sales junto com os povos tradicionais do Quilombo Serra dos Rafaéis, na Chapada do Araripe, Piauí. Já no Sertão Paraibano, em Maturéia, a Cooperativa de Compartilhamento de Energia Solar Bem Viver propõe a produção de energia solar descentralizada, com um sistema que recolhe a água da chuva a partir das placas solares. Essa experiência e outras do sertão paraibano podem ser encontradas no livro Transição Energética Popular de Felipe César da Silva Brito. 

Já no Ceará, no Sertão de Inhamuns-Crateús os assentamentos Palestina e Santana, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conseguiram implantar usinas fotovoltaicas para o abastecimento da agroindústria Frigorífico Terra Conquistada da cooperativa (e agora marca própria) Terra Conquistada, que trabalha com caprinos e ovinos. Logo depois, a ideia do MST-CE se espalhou para todas as agroindústrias do MST no Estado: agroindústria de produção de farinha em Itarema, polpa de frutas, mel e também na agroindústria de laticínios do Assentamento Nova Canaã em Quixeramobim-CE. 

Em entrevista, Missias, dirigente do setor de produção do MST-CE e agora Deputado Estadual do CE, reafirma o compromisso do MST em pensar as alternativas para  uma transição energética justa e popular:

A luta do Movimento Sem Terra é que a gente tem buscado se aprofundar nessa questão energética, por entender que ela é essencial e garante a autonomia das nossas famílias e do nosso território. Mas o Movimento, a gente não vai apoiar a transição energética que é do grande capital. Porque a gente precisa fazer uma transição energética que tem que ser justa, do ponto de vista da justiça com os povos e os territórios, para que eles sejam respeitados como famílias que vivem nos territórios há centenas de anos. Ela tem que ser popular, no sentido de o povo ter o poder de decidir como ela vai ser decidida pelos povos dos territórios, pra que eles decidam como viver, como eles querem as políticas de desenvolvimento deles. E soberana, no sentido de autonomia dos povos e dos territórios em produzir a sua própria energia com a sua harmonia e preservação do território e do meio ambiente.

Todas essas buscas por alternativas, seja a reivindicação de produção energética descentralizada, acesso às tecnologias, investimentos, financiamentos, produção científica que beneficie os povos e territórios tradicionais, até a implementação de experiências, não é possível sem antes muita luta destes povos, que já estão na vanguarda de qualquer sentido da palavra sustentabilidade. São os povos do Bem Viver que novamente se colocam como resolvedores de problemas que o capitalismo em si constrói e que não é capaz de resolver. São as alternativas e as esperanças nos territórios que apontam para um futuro diferente. 

Nós precisamos de uma transição energética que ela seja realmente justa e popular. Nós precisamos de uma transição energética que uma pessoa da favela, que não possa pagar energia, não seja espancada pela polícia militar a mando da Enel. Isso não é transição energética não! Tem muitas formas de fazer transição energética hoje sem ter que satisfazer o egoísmo, satisfazer os bilionários doidos pelo lítio. Os megaprojetos estão crescendo, mas os nossos movimentos também estão se fortalecendo. Mas a gente tem muita esperança. Um amigo da Prainha do Canto Verde me disse uma coisa uma vez: todas as comunidades que lutaram, que fizeram movimento, elas conseguiram se segurar no território. Elas podem até ter perdido alguma coisa, mas elas conseguiram ficar. E quem não lutou, saiu. A nossa esperança é essa, que as pessoas entendam. A minha esperança é que o povo escute, veja, seja informado. A gente ta fazendo nossa parte, lutando pra ter uma sociedade mais igualitária e mais justa (Seu Valyres, pescador tradicional de Caetanos, em Amontada – CE). 

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