Posted on: 11 de novembro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 2

Sobre a paciência e o desafio de lidar com militantes em formação

Por Erahsto Felício

Um dos dilemas que ordinariamente estamos vivendo dentro dos espaços políticos que atuamos na Teia dos Povos é uma cobrança firme de separação do joio do trigo. Ou em outras palavras, que nos quadros da luta popular não sejam aceitas pessoas que não estejam bem posicionadas e com comportamentos adequados no que diz respeito à raça e gênero, sobretudo. Não poucas vezes reuniões foram desfeitas, debandadas de grupos de zap zap ocorreram porque ali estava alguém racista ou machista. Tivemos problemas reais em formações políticas e mesmo na construção de projetos comunitários em virtude de uma pressão ligada às questões da identidade. Esse meu texto não reflete o posicionamento de qualquer instância da Teia dos Povos, mas é uma proposta de reflexão sobre esse caminhar.

Quando nossos mais velhos e nossas mais velhas chamaram a Teia dos Povos de uma aliança indígena, preta e popular, estavam, por certo, querendo chamar atenção para a dimensão de lidar com nossa gente pobre, trabalhadora, desterritorializada, desenraizada, por vezes, e, certamente, sem a formação adequada ainda para a grande luta. Foque na palavra AINDA. Sendo uma articulação de comunidades, povos e territórios, a Teia dos Povos certamente possui em meio à sua gente de luta bastante pessoas que ainda não possuem a consciência política para ter a melhor postura de combate diante do enfrentamento ao racismo, ao capitalismo e ao patriarcado. Isso é certo. Quando se promove uma organização cujo coletivo é a soma de indivíduos organizados sob uma bandeira, um estatuto, então os critérios para adentrar a este círculo podem ser definidos por um conjunto de posturas e princípios. Não há absolutamente nada de errado com isso. Contudo, quando nos propomos ser uma articulação de povos, veja bem, não podem nos dar ao luxo dessa seletividade. Não é que não estejamos em busca de ter em nossos quadros políticos pessoas absolutamente comprometidas com um comportamento ético exemplar. É que nossa temporalidade não pode ser a imediata. O processo é lento.

Se nós nos consideramos uma experiência revolucionária, como não nos desafiarmos a mudar a consciência, os valores e a conduta moral de nossas bases? Afastar as pessoas da militância, retirá-las do espaço de formação política, não seria justamente jogá-las no colo no pensamento burguês que reforçará as piores qualidades de um ser humano? Às vezes é necessário que alguém se afaste momentaneamente de uma experiência política para evitar que ela atrapalhe a ação. Porém quando fazemos isso, nós lamentamos não ter conseguido promover a transformação interior tão necessária para alcançarmos nossos objetivos políticos. E sim, nós estamos interessados em mudar o interior da pessoa, cultivar um amor profundo aos povos e à vida em sua plenitude que ela por si jamais deixará de confrontar o capitalismo e todos os estigmas e violências que ele provoca. 

Parte dessa mudança interior, inclusive, pressupõe conseguir conviver com as pessoas em suas incompletudes, com seus aspectos ainda violentos e ainda doentios. Este que vos escreve está repleto dessas incompletudes, mas segue lutando para sanar suas dores que podem machucar outros, outras. Nunca na história uma revolução foi feita por alecrins dourados. Um dos episódios interessantes da Revolução Russa foi a desordem causada pelos revolucionários ao se depararem com as adegas imperiais repletas de vinhos. A luta das lideranças para conter os saques foi registrado no famoso livro Os dez dias que abalaram o mundo do John Reed. Os mesmos homens que transformaram a história do século XX também fizeram toda sorte de abuso por conta da bebedeira. A luta posterior da União Soviética contra a bebida foi registrada por inúmeros cartazes estimulando uma mudança de postura do povo em relação ao consumo de álcool. Não é no mesmo dia que se planta que se colhe. Ter a paciência para ver a transformação ocorrer é, sem dúvida, o caminho revolucionário que os povos têm trilhado.

Parte de nossa militância de esquerda tem se confrontado com o desafio que é enfrentar uma extrema-direita que possui igrejas neopentecostais como propulsora de suas ideias. Porém se esquecem que das pequenas às grandes congregações estão cheias de relatos de pessoas que eram violentas com sua família e deixou de ser, gente que abandonou o vício na bebida, que abandonou o tráfico de drogas ilícitas, etc. Como as próprias igrejas dizem, elas não escolhem quem são os chamados. A tarefa seguiu sendo uma transformação dos sujeitos que chegam nelas. Você pode questionar que tipo de transformação é essa que tem fomentado o bolsonarismo. Porém a experiência de fé dessas congregações dão uma comunidade, um lugar de encontro, de trocas, de proteção, atenção, cuidado que consegue mobilizar novas formas de ser. A pergunta é: nossas organizações revolucionárias conseguem fazer algo parecido para a construção da sociedade vindoura?

Se uma organização revolucionária não mudar o interior do militante que lhe chega vindo de uma formação liberal, construindo nele um novo ser, quem é que vai fazê-lo? Se ao menor fracasso ético de nossos camaradas nós os afastarmos, quem irá o acolher para que tenham a chance de mudar? Eu atuo na área de educação há 14 anos. Não há pior sentimento para nós que a frustração de que não conseguimos ajudar aquele ou aquela estudante, de que não saiu melhor do que chegou. Olhai atentamente para os bons quadros das esquerdas e vejam se também não estão padecendo de igual frustração. Infelizmente esse caminho da transformação interior não tem sido o fundamento das nossas organizações.

Não estou falando de inação diante do racismo de um dos nossos, por exemplo. Contudo estou propondo que não sigamos o caminho da exigência de um virtuosismo para quem está em início de formação. Que tenhamos mais fé que a luta dos povos é capaz de mudar também o coração das pessoas. E que possamos perceber: a burguesia entendeu que dá para nos dividir muito através desse fracionamento político provocado pela baixa consciência social. Ora, estamos observando denúncias de que lideranças são machistas e racistas fomentadas por latifundiários em vias de perder as terras conquistadas pela luta popular. Já aconteceu antes, ocorre agora. Eles entenderam esse jogo. Latifundiários usando o bom posicionamento identitário de alguém para lançar campanhas contra movimentos sociais. Que os erros sejam reconhecidos, que o malfeito seja compensado, que a dor causada seja aliviada e que as pessoas sejam transformadas pelo nosso caminho. Não será fácil, sem dúvida, mas acaso o caminho da fragmentação tem conseguido maiores vitórias em nossas lutas?

Por fim, acredito que o principal erro desse caminho da fragmentação reside no fato de que se trata de um olhar sobre a conduta individual. O projeto de formação política é individual. Querem saber se o militante é antirracista (sic), se ele performa uma combate antimachista (sic). No fundo há aí um princípio liberal de projeto individual de libertação. Abandonamos a ambição de pensar o projeto de nossos povos. Abandonamos a perspectiva de avaliar se tal comunidade melhorou ou não o debate das questões raciais depois que começamos atuar ali. Se tal organização territorial se aprofundou mais nas ações de gênero depois do intercâmbio entre lutas dentro da articulação. Seguimos avaliando indivíduos porque já não temos nem instrumento de diagnóstico coletivo. Não dá para notar que há aí uma vitória do pensamento liberal? Ora, contra o imediatismo performático do indivíduo, a paciência histórica do coletivo. É no tempo, na luta real para além dos círculos de formação, e diante do enfrentamento contra os inimigos dos povos que emergirá o ser humano novo liberto que tanto ansiamos.

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  1. Correto, porém, é isso, não cabe o puro relativismo e aceitação do “intolerável”.

    A forma de lidar com o “intolerável” é que deve marcar nossos espaços, pois devem ser educativos.

    Verdade que, vivendo neste mundo de opressões, essas estão arraigadas nas pessoas, mesmo as que parceiras aguerridas de lutas.

    E a melhor de convivência é a crítica direta e sincera, buscando aprendizados. Às vezes serão necessárias atitudes duras com camaradas que reproduzam condutas opressoras.

    Olhar para as pessoas não é apenas no ideário liberal, esconder a complexidade entre o todo e a parte, isso sim é liberal. Mas fazer o inverso também seria grave erro. É preciso haver reflexão sobre o indivíduo nessa construção coletiva e vice versa.

    Mas essa convivência complexa e mesmo contraditória é da luta. Sempre foi.

    Aprenderemos tod@s.

  2. Concordo. Eu mesmo fui um evangélico progressista cheio de posicionamentos conservadores, típicos do ambiente de igreja, e sei quão aberto eu estava para diálogos pacientes com minha desconstrução.

    Se hoje não acredito no “demônio do comunismo” é porque sobrevivi à um longo e solitário processo de compreensão das influências na diferença entre a fé cristã e as instituições cristãs, como a igreja.

    Temos muitas e muitos camaradas a buscar ou dar espaço, que têm essa base liberal de todos nós, mas que tem sede de verdade e justiça.

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