Posted on: 2 de dezembro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Por Solange Brito1

Este texto faz parte da apresentação de Solange Brito, que ocorreu durante a mesa redonda intitulada “Por uma educação que comporte muitos mundos: reflexões sobre a gestão democrática da educação desde a Teia dos Povos”, que foi revisada e adaptada por Ana Paula Morel e Gustavo Gonçalves. A mesa foi realizada no dia 25 de outubro de 2024 campus Sosígenes Costa da UFSB, em Porto Seguro, durante a 10ª SNCT/UFSB. Além de Solange Brito, contou com a participação de Deysiane Ferreira, liderança do Assentamento Terra Vista e da Teia dos Povos; Thaís Giselle Diniz, Spensy Pimentel e Gustavo Gonçalves, os três últimos, professores da UFSB. Buscando fortalecer o diálogo entre universidades, escolas e movimentos sociais, a mesa abordou o histórico da educação do campo, a construção do setor de educação do assentamento e o desenvolvimento da visão de educação da Teia dos Povos e como essas questões se conectam à autonomia dos povos. 

Iniciando pela construção da escola no território

No processo educacional da luta pela terra, o primeiro passo é criar uma escolinha, muitas vezes feita com lona preta. As pessoas que atuam na educação são da própria comunidade. Então, neste contexto, não se pensa em trazer pessoas de fora, pois o primeiro passo é resistir. É a luta pela resistência naquele

território, naquele local. Assim, estando nesse processo de luta, nos organizamos com os recursos disponíveis. Se alguém já é alfabetizado, domina as quatro operações e tem alguma fluência em leitura e escrita, essa pessoa é quem irá alfabetizar as crianças e jovens. Esse é o primeiro passo.

Outro ponto, que está intimamente ligado à questão da família, é a presença de mulheres, homens, jovens e crianças no processo de luta pela terra. Para manter essas crianças, jovens e, especialmente, as mulheres engajadas nessa luta, a educação precisa contemplar as crianças desde o início. Caso contrário, ocorre um esvaziamento, pois muitos se afastam da luta para garantir que seus filhos permaneçam na escola. Esse é, portanto, o primeiro passo na luta pela terra.

Após a conquista da terra, novas lutas surgem. Durante o período de acampamento, essa escolinha improvisada — como um barracão de lona preta — se torna o espaço para escrever e realizar a “leitura de mundo”, mencionada por Paulo Freire. Essa contextualização nasce das condições em que vivemos, talvez debaixo de uma árvore, usando o que temos à mão. Assim como Paulo Freire se alfabetizou sob um pé de mangueira com carvão e gravetos, seguimos essas experiências e referências que nos inspiram e nos ajudam no processo de emancipação pela educação.

Depois da luta pela terra, vem a conquista dela. E então surge outra luta: garantir que a educação seja reconhecida como um direito nosso. A partir desse entendimento, lutamos por uma estrutura mais organizada — não uma escola cercada por muros, mas uma escola que compreenda que sua pedagogia deve estar alinhada com essa luta, voltada para a realidade local. Lá em Terra Vista, foi exatamente assim. O primeiro passo foi a luta pela terra e, nesse processo, surgiu a necessidade de um espaço para alfabetizar crianças, jovens e adultos.

Depois de conseguirmos a posse da área, construímos uma escola. Esse foi um dos passos mais difíceis, pois significou um enfrentamento ao Estado. Nós compreendemos que a educação é um direito nosso e que garantir esse direito é dever do Estado. A partir desse ponto, novas lutas começaram, e a nossa consciência sobre nossos direitos foi se fortalecendo.

Esse processo incluiu uma compreensão legal de que temos direitos que estão garantidos pela Constituição. Entre os movimentos que mais discutem essa questão, destaca-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que tem promovido diversos encontros e debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação do Campo. A partir dessas discussões, várias conquistas foram alcançadas.

No entanto, gosto de contextualizar essas ideias com nossa própria realidade. Embora admire os escritos de Roseli Caldart, nas concepções de pedagogias do campo, preciso ser sincera: somos nordestinos/as, e Roseli é do Sul. Nossa realidade no Nordeste, especialmente na Bahia, é muito diferente da do Sul. Nós, nordestinos, temos uma herança cultural diaspórica africana e indígena, com cosmovisão de vida e pedagogias próprias. É essa pedagogia, enraizada em nosso território e em nossa cultura, que precisamos fortalecer.

Quando começamos a debater essas questões na Teia dos Povos, passamos a compreender a diversidade das pedagogias dos povos. E é a partir dessa diversidade que vislumbramos uma educação que abarca diferentes concepções, fundamentada nas realidades e nas tradições locais.

Educação do campo como caminho para a autonomia

Existem as concepções de educação do campo para o campo, mas também outras visões que muitas vezes não consideramos. Na Teia dos Povos, por exemplo, temos o debate sobre as quatro escolas, que expressam essa diversidade. Não estamos “reinventando a roda”, pois, ao falar de pedagogia indígena, por exemplo, reconheço que não tenho a propriedade para abordá-la profundamente. Certamente, seria criticada se o fizesse, pois como poderia falar com propriedade de uma pedagogia que não vivo diretamente?

Da mesma forma, não posso falar com profundidade sobre a pedagogia do povo do tambor, que envolve não apenas a materialidade, mas também a espiritualidade. A pedagogia dos quilombolas é outra, com suas próprias características. Cada povo possui uma pedagogia própria, e é essencial respeitar, valorizar e dar visibilidade a essas pedagogias. É exatamente isso que a Teia busca fazer.

As quatro pedagogias que defendemos são: a pedagogia do tambor, a pedagogia do maracá, a pedagogia da floresta e a pedagogia das águas. A pedagogia da floresta, por exemplo, carrega um vasto conhecimento, e todo o aprendizado que a floresta nos proporciona é pedagógico. Já a pedagogia das águas — das marés — envolve um entendimento profundo da natureza, como me contou Seu João Barba, da Resex. Ele trouxe um elemento importante, diferenciando as águas doces das águas salgadas, cada uma com seu próprio saber, ao qual também devemos nos abrir.

Esse conhecimento dos pescadores e das marisqueiras é rico e reflete uma pedagogia própria, onde tudo tem seu tempo e seu modo de vida. Numa reunião na Resex, por exemplo, enquanto discutiam o calendário de tarefas, os mais velhos sempre perguntavam: “E a maré, estará baixa ou alta? Como será o tempo?” Tudo depende do ritmo das marés.

Nos povos de terreiros de matriz africana, as concepções também são profundamente pedagógicas. Existe o trabalho com os elementos da natureza, a espiritualidade e, ao mesmo tempo, a valorização de uma sabedoria ancestral — conhecimentos milenares que muitas vezes apagamos da memória e deixamos de valorizar. Costumamos dizer que temos grandes bibliotecas vivas que não recebem o devido reconhecimento. Essas pessoas são como bibliotecas vivas, portadoras de saberes que frequentemente ignoramos.

Quando olhamos para as concepções dos povos quilombolas, também encontramos outro universo de saberes, um modo de ver o mundo diferente. Sempre digo aos meus colegas que, assim como nossos dedos são únicos, as pessoas e os conhecimentos que carregam também são únicos. Em resumo: tudo é pedagógico.

Ensaiando redes e Teias desde o Terra Vista

Foi a partir desses processos que, em 2012, criamos a Teia dos Povos lá no Assentamento Terra Vista. Na época, eu era diretora de uma escola de ensino fundamental, a Escola Florestan Fernandes, e ainda não tinha uma compreensão clara do que seria essa Teia. Cheguei a pensar: “Meu Deus, esse povo está inventando um movimento dentro de outro movimento, sendo que o Terra Vista já é fruto da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Para que essa Teia?”

Quando conseguimos reunir mais de mil pessoas de diferentes territórios e com experiências diversas, percebi que realmente precisávamos construir a Teia. A partir desse encontro, ficou claro que tudo o que aquelas pessoas desenvolviam em um só lugar era pedagógico.

Um dos grandes desafios que enfrentamos é que não conseguimos enxergar isso de forma clara. Nas escolas, por exemplo, há muros de concreto, mas o muro que está impregnado em nossas mentes é o que limita nossa visão. Esse muro mental nos impede de conectar plenamente a teoria com a prática. Alcançar essa integração é algo complicado para quem ainda não desenvolveu uma consciência elevada sobre as concepções pedagógicas, sobre o que é um projeto de educação ou sobre que tipo de educação realmente queremos.

Se pensamos em uma educação pontual, voltada apenas para o cumprimento de metas, nunca vamos entender o tipo de educação de que estamos falando aqui. Mas, quando temos uma concepção de projeto, de uma educação política que transforma o sujeito, como Paulo Freire menciona, então conseguimos perceber que precisamos derrubar esse muro. 

Vejo isso muito presente nas escolas e nas universidades. Não é uma crítica às pessoas, mas à estrutura e ao sistema em que fomos moldados, que nos impede de ver essas concepções. A professora mencionou o problema desse nivelamento e do egocentrismo. As pessoas são, muitas vezes, tão egocêntricas que não querem abrir mão de certas ideias, do ego da tese, e se recusam a enxergar o óbvio.

Fundamentando um projeto e conquistas desde um território

Voltando para o Terra Vista, foi a partir do trabalho desenvolvido lá no assentamento, junto à Teia dos Povos, que avançamos. Não estou dizendo que esse processo não envolveu também o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) — muito pelo contrário. Eu mesma sou fruto dessa luta, fruto do MST. Já fiz parte da direção do movimento e aprendi muito nesses processos.

O MST, por meio do Pronera (que também é uma conquista da luta social), me deu a oportunidade de cursar magistério e, mais tarde, especialização em Educação do Campo. Essas conquistas só se mantêm até hoje porque existe um contexto de luta social, porque, se não fosse essa mobilização, essas escolas que resistem já teriam fechado.

Terra Vista representa tudo isso. Muitas vezes, vou do macro para o micro para explicar: Terra Vista simboliza tudo o que discutimos aqui. A Escola Florestan Fernandes, que oferece Ensino Fundamental I e II, tanto nos anos iniciais quanto nos finais, é uma expressão dessa resistência. Sem a luta desde a ocupação, sem a mobilização, sem as marchas e o enfrentamento ao poder público nas esferas municipal, estadual e federal, essa escola já teria fechado, assim como tantas outras.

A Bahia, infelizmente, foi o estado que mais fechou escolas populares. Apesar dos avanços, e mesmo considerando que estamos no campo da esquerda — e aqui me considero de esquerda —, sabemos que ainda enfrentamos muitos desafios e reconhecemos também os erros que cometemos. A educação do campo, infelizmente, continua desvalorizada. Travamos um intenso processo de luta e resistência no Terra Vista para manter a escola funcionando, especialmente nos anos finais. Entre 2012 e 2013, implementamos um novo processo de enfrentamento ao poder público municipal. A escola, construída em 1997, representa uma história marcada por muita luta e sacrifício. Não foi só a escola, mas também outras conquistas. A luta se estende além das cercas, envolvendo educação, saúde, moradia e tantas outras questões essenciais.

Entre 1997 a 1998, com muita luta, construímos a escola e implementamos os anos iniciais, enfrentamos a resistência do poder público municipal, que se recusava a manter a escola. No começo, financiávamos os professores e merenda escolar com recursos da cooperativa que tínhamos no assentamento. Com o dinheiro captado pela cooperativa, conseguimos manter a escola por um bom tempo. No entanto, a prefeitura não queria assumir essa responsabilidade.

A partir do momento em que começamos a estudar, pesquisar e entender que a educação era um direito nosso e um dever do Estado, fomos à luta. Muitas vezes, somos chamados de “baderneiros”, “invasores” e “encrenqueiros”, mas é algo que vem do despertar da consciência: como podemos saber que algo é um direito nosso e cruzar os braços? Precisamos ir para a luta. Na época, ocupávamos prefeituras, marchávamos, ocupávamos secretarias de Educação do estado. Quando se vê o povo em luta, não é perseguição ao governo — é um povo em busca de seus direitos.  

Essa mobilização foi fundamental para avançarmos com a Escola Florestan Fernandes. Depois, veio outra luta. Conseguimos finalmente trazer o ensino fundamental e que o poder público se responsabilizasse pelo ensino, na contratação de professoras/es e outras responsabilidades da prefeitura municipal. Mas, quando os alunos completavam os anos iniciais, precisavam ir até a cidade/sede de Arataca para concluir o ensino fundamental II e ensino médio. Isso trouxe uma nova batalha, a de manter esses alunos no assentamento. Desde que a escola foi pensada no assentamento, a perspectiva é de transformar a escola num polo educacional do/no campo. Infelizmente até hoje essa proposta não foi implementada devido à falta de apoio e de entendimento nas concepções de educação do campo. O poder público municipal nunca levou com seriedade essa proposta.

Representando a comunidade como diretora escolar

Foi nesse contexto que, em 2013, me tornei diretora da escola. A responsabilidade era grande, especialmente porque até então nunca uma pessoa da própria comunidade havia trabalhado diretamente na escola. E lá estava eu, uma assentada do Terra Vista, assumindo a direção de uma escola no próprio assentamento.

A minha consciência não me permitia mais cruzar os braços, até porque, Joelson e outros companheiros/as já vinham nessa luta desde a ocupação da área, e no processo histórico, eu me somei com eles/as nessa luta. Eu não estava ali apenas para ser uma funcionária pública; eu tinha o dever de ser uma militante da educação. Precisava ser uma educadora popular, uma diretora próxima do povo. E foi a partir dessa consciência que comecei a mobilizar, junto com a coordenação do assentamento e o setor de educação, várias comunidades rurais vizinhas. Conseguimos reunir mais de 300 pessoas, e ocupamos a prefeitura. Claro que, por conta disso, eu tive que entregar meu cargo — afinal, não sou concursada. Na época, o prefeito me pressionou, mas eu deixei claro que, entre o meu povo e o meu emprego, eu ficaria com o meu povo. 

Mas, como é de se esperar, eles têm medo de pessoas ousadas, que enfrentam e reivindicam seus direitos; por isso, não tomaram meu cargo. Depois desse processo, em 2013, conseguimos trazer as crianças e jovens de volta ao assentamento. Mas vocês não fazem ideia do que esses meninos enfrentaram na cidade. Ao chegar em uma escola de Arataca, eram rotulados como sem-terra, invasores, preguiçosos e até filhos de cachaceiros — pejorativos que sempre jogam sobre nós.

Além disso, o campo é considerado como lugar inferior, o povo do campo é retratado nas festas juninas como sujeitos subalternos, largados a própria sorte, com “dentes podres”, chapéu e roupas esfarrapadas. Precisamos parar com isso! Essa representação cria um estigma de pobreza e inferioridade associado à vida no campo, algo que o agronegócio e o sistema capitalista promovem constantemente para diminuir e empobrecer a imagem do campo. Na verdade, vivemos melhor que muitos na cidade. Embora eu goste de visitar a cidade de vez em quando, considero o campo muito superior, é no campo que encontramos um modo próprio de existência. Nas palavras de Marina Silva, “é o lugar que temos para onde voltar diante das catástrofes que vivemos nesse país”.

Retomando a questão da educação, conseguimos trazer as crianças e  jovens de volta ao assentamento em 2013, mas logo enfrentamos outra batalha para manter o Ensino Fundamental II na escola. Foi então que criamos um calendário específico para o ano letivo e consideramos também a carga horária dos/das professores/as. Superamos diversos desafios, especialmente porque o poder público tentava de todas as maneiras enfraquecer a luta.

Uma das coisas que eles tentaram fazer para enfraquecer nosso trabalho foi dizer que não teríamos condições de manter essas turmas na escola. Esse foi um desafio grande, tanto que quase desenvolvi uma úlcera de tanto nervosismo. Como alguém assentada, militante, defensora das causas sociais e da educação popular, eu não podia simplesmente aceitar que o Ensino Fundamental fosse abandonado. Então, começamos a inventar soluções: tirávamos do próprio bolso, fazíamos vaquinhas com as professoras, organizávamos mobilizações e mutirões, e engajávamos a comunidade nas tarefas da escola. Foram várias ações que precisávamos realizar.

E, surpreendentemente, percebi o quanto essa militância, essa consciência social, está defasada no universo educacional. Muitos professores e professoras que encontrei estavam cheio de dificuldades e desilusões, muitos queriam resolver questões pontuais, ou estavam ali por motivos de perseguições políticas. Isso me entristeceu muito, porque tive que renunciar a muitas coisas, incluindo o tempo com meus filhos, para manter esse projeto de educação. Tive que deixar de lado as desilusões para seguir em frente com a ideia de que essa educação estava acima de qualquer obstáculo, mostrando isso à sociedade e ao poder público que o projeto que defendemos é maior que as dificuldades. Mas essa luta não foi só minha; havia um grupo ao meu lado, uma comunidade unida na defesa da educação popular e emancipatória e educadores/as populares engajadas no processo. 

Outro grande desafio que enfrentamos é essa luta constante, como se todo ano tivéssemos que enfrentar um dragão. Manter uma escola aberta no campo é algo que poucos conseguem imaginar o quão difícil é. Enfrentamos inimigos de todos os lados, tanto externos quanto internos, porque, enquanto lidamos com a pressão externa, o inimigo externo está ocupando-se em cooptar aliados internos. E as complicações são as mais perversas que se pode imaginar: desde a oferta de empregos até a concessão de 40 horas para alguém que nunca teve a chance de ter um salário. Há cooptação de todos os tipos.

Quando você está nesse mar de problemas, é fácil sentir vontade de desistir, de largar tudo, até chorar. Mas quando percebemos que essa educação pela qual lutamos é, na verdade, um pilar essencial, um elemento fundamental para o avanço e a emancipação da comunidade, entendemos que não podemos desistir. É preciso cuidar de nós mesmos para seguir na luta, para garantir que possamos continuar. 

A educação precisa ser debatida de forma mais profunda. Os debates sobre educação muitas vezes são muito superficiais. Precisamos entender esses processos educacionais: como estão sendo conduzidos nas comunidades, sejam elas de reforma agrária, indígenas, quilombolas ou rurais. É essencial compreender esses processos e refletir sobre como podemos nos somar a eles. Muitas vezes, nos distanciamos da luta, e isso nos é cobrado. Perguntamos a nós mesmos se essa luta é só nossa ou se não seria possível unir campo e cidade para avançarmos juntos.

Há inúmeras tarefas e caminhos para progredir nesse processo educacional, e é essa união e essa consciência que podem fazer a diferença.

Persistência e Esperança na Luta Coletiva: novos projetos

Só mais uma coisa importante que gostaria de trazer: não posso ficar apenas lamentando as dificuldades, sabe? Acho que precisamos sempre valorizar o que é positivo, porque não podemos dar espaço para o inimigo. Então, é fundamental manter uma perspectiva positiva.

Uma das iniciativas que temos desenvolvido é em relação à educação do campo. Em parceria com a Teia dos Povos e a UNEB, conseguimos levar uma especialização para o Terra Vista, justamente para fortalecer esses processos que enfrentamos no assentamento. Afinal, como podemos avançar em uma educação emancipatória se não formamos e conscientizamos os educadores e educadoras?

Essa especialização, que concluímos no ano passado, durou dois anos de trabalho intenso em parceria com a UNEB. Antes dela, promovemos cinco formações para educadores da Escola Florestan Fernandes e Milton Santos. E percebemos que não estamos sozinhos nessa jornada; por isso, achamos importante envolver outros educadores e educadoras de escolas do campo e cidades circunvizinhas.

Assim, reunimos mais de 80 educadores das escolas Milton Santos, Florestan Fernandes e de escolas das redondezas. Realizamos uma formação em cinco etapas e, ao final, surgiu a proposta para essa especialização que levamos adiante.

O grupo de professoras/es da UNEB se esforçaram para que pudéssemos dar continuidade ao trabalho, tornando-o uma atividade constante. Mas aí surge o desafio: enquanto buscamos formação, conscientização e aprimoramento desse espaço, percebemos o quanto há forças que atuam para impedir nosso avanço. A primeira reação do poder público, por exemplo, quando iniciamos a especialização, foi a falta de diálogo e apoio em todas as etapas do curso.

Por isso, tivemos que nos organizar. A especialização foi totalmente autogestionada. Cada vez que nos reuníamos para o curso, fazíamos uma vaquinha entre nós mesmos; cada um contribuía com R$50 para comprar a alimentação. Organizávamos uma mobilização dentro da comunidade para conseguir alimentos como bananas, hortaliças e outros produtos da terra. O Mestre Capixaba foi um dos que mais contribuiu com produtos da terra. Considero isso um ponto positivo porque, ao final, percebemos nossa capacidade. Esse esforço reforça a ideia de autonomia, de não depender apenas das ofertas do Estado. Percebemos também a importância de valorizar os saberes da própria comunidade, como os mestres e mestras. Em todas as atividades que realizamos, sempre incluímos essas pessoas, como o Capixaba, Louro Camacã, Joelson, Dona Odete, a mulher que está desde o começo da luta pela terra na comunidade e, outras companheiras e companheiros de luta. Temos jovens também com conhecimentos preciosos que podemos valorizar.

Valorização dos Saberes Locais e Mestres da Comunidade

Infelizmente, recentemente perdemos Sávio, que chamávamos “o menino jovem da agroecologia”. Ele era muito envolvido na agroecologia e contribuía ativamente com a comunidade e a escola. Estudou no CEEP Milton Santos e, depois de concluir o ensino técnico profissionalizante em agroecologia, seguiu seu sonho, continuou os Estudos no IF Baiano, tornando-se agroecólogo.  Perdemos um jovem cheio de planos, mas seu legado e suas ações permanecem vivos. 

Esse tipo de união entre a comunidade e a escola é um dos desafios. Parece que há uma cerca que separa, que impede de integrar escola à comunidade para um trabalho em conjunto e contínuo. O sistema de educação ainda segue um modelo arcaico, do século XIX, marcado pelo tempo do relógio mercantilista com direito as sirenes. Ah tantas coisas que podemos aprender com os Povos de comunidade, tudo que desenvolvem é pedagógico, as giras de saberes sempre estão em movimento no território.  Sentimos essa estagnação também na academia. Parece que muitos não perceberam que a geração de hoje é diferente, vivendo em um mundo marcado por uma “modernização tecnológica” e desafios complexos. Precisamos de humildade para admitir que é hora de reformular as concepções de educação.

Voltando para nossa realidade, Arataca tem um dos piores IDEBs do Nordeste, e isso reflete a realidade do município, falta incentivo e investimento na qualidade de ensino. Ainda enfrentamos muitos entraves, especialmente no que diz respeito ao respeito pelos conhecimentos milenares/tradicionais. Há uma resistência em compreender as diferentes formas de ensinar e aprender.

Por exemplo, encontramos pessoas que têm grande habilidade com matemática, mas sua maneira de calcular e de entender a matemática é distinta. Um agricultor, por exemplo, aplica matemática constantemente — na organização e planejamento da área que produz. Quando ele realiza essas atividades, ele se conecta com aquele espaço, esse espaço é uma vida dedicada de conhecimentos, ciência e tecnologia. Essa mesma lógica se aplica ao processo de alfabetização de jovens e adultos, e também para as crianças. Crianças que são livres, que sobem em árvores, que nadam nos rios desde pequenas, precisam de um ambiente que acolha essa energia. Mas quando são colocadas em uma sala fechada, com grades, sentadas e obrigadas a ficar quietas, perdem essa liberdade. Precisamos mudar essas concepções que perpetuam uma relação de superioridade e inferioridade entre educador e educando, entre escola e comunidade. Há regras que são importantes, mas a reciprocidade do reconhecimento é ainda melhor.  

Conflito com o Poder Público e a Reivindicação de Direitos

Esses são os desafios que dificultam a conexão entre escola e comunidade. Sem essa unidade, o processo educativo não avança. Em Terra Vista, enfrentamos esses desafios com determinação. Valorizamos o que já foi conquistado e o que estamos realizando de positivo. Nosso grupo é formado por sonhadores/as que não desistem, que inspiram outros a sonhar junto. Mantemos viva a esperança, acreditando que isso é revolucionário. Como dizia Che Guevara, é preciso “endurecer sem perder a ternura”. Temos esse espírito: mantemos a suavidade, mas com a firmeza necessária para enfrentar os obstáculos, especialmente aqueles que surgem no diálogo com o poder público.

Recentemente, por exemplo, tivemos que enfrentar o prefeito. Apresentamos uma pauta de reivindicações e solicitamos uma reunião, seguindo todos os protocolos. No entanto, percebemos que estavam tentando nos enganar e nos manipular. Tivemos que ser firmes e mostrar que não somos mais crianças para sermos enganados e mostrar nossa disposição em continuar lutando por uma educação que realmente atenda à comunidade.Foi durante essa reivindicação que o prefeito afirmou que eu, Deise e Joelson éramos uma ameaça para eles, e agora estamos enfrentando um processo judicial. Thaís2 está na luta, montando um dossiê, enquanto outra pessoa do grupo também está nos ajudando a vencer essa batalha. Eles perceberam que não recuaríamos, então tentaram negociar de forma bastante covarde. Mas deixamos claro que seguiríamos com o processo, e até agora nem entendemos o motivo real por trás da ação contra nós. Estamos enfrentando uma proibição de entrar na escola; se entrarmos, somos multados em R$ 50.000 por dia. Imaginem, eu nem tenho R$ 50! Me senti como naquela música: “Tá vendo aquele edifício, moço?” A gente ajuda a construir e depois nem pode entrar. Um dia, ao passar em frente à escola, comecei a cantar essa música com o Joelson, e todos os que estavam lá ouviram nosso canto.

Cantamos e rimos, mesmo em meio às dificuldades, porque é assim que seguimos em frente. Como o Povo sofrido faz, rimos da nossa própria situação. Se nos deixássemos abater, seria ainda pior; então, rimos para resistir.

Mas é isso, vou parar por aqui, porque se começar a falar, não paro mais. Boa noite a todos. Valeu!

  1. Agricultora, educadora, pesquisadora, articuladora da Teia dos Povos e moradora do Assentamento Terra Vista, onde vive desde seus 20 anos de idade, nasceu em Nova Alegria, distrito de Itamaraju-BA. Foi diretora do Centro Integrado Florestan Fernandes, é formada em história e especialista em educação do campo pela Uneb. ↩︎
  2. Thaís Giselle Diniz, convidada da mesa redonda, é professora do direito da UFSB e atua junto a outros advogados populares na ação judicial 8000872-07.2024.8.05.0038 , mencionada por Solange. ↩︎

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