Mulheres curdas no vilarejo Jinwar, com a deusa Ishtar pintada na parede.
Fonte: Jinwar Women (2023).
por Letícia Gimenez1
A Revolução de Rojava organiza-se através de três pilares: democracia radical, igualdade de gênero e ecologia social. Quem acompanha ou é familiarizado com o processo revolucionário em curso há 12 anos logo percebe que o pilar ecológico é o menos debatido e retratado internacionalmente. Além disso, muitos são os desafios diários que dificultam os avanços da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria nesse âmbito.
No presente texto, busco debater de que modo o Movimento das Mulheres Curdas resiste a imensas dificuldades geradas pelo ecocídio em curso perpetrado pela Turquia. A partir de fragmentos de entrevistas com mulheres curdas2, apresento algumas dimensões teóricas que norteiam o movimento e projetos em andamento no território que priorizam a ecologia social, como iniciativas educacionais, de preservação e reflorestamento – inclusive a partir da retomada de saberes de plantas medicinais e do culto a deusas mesopotâmicas que representam a conexão com a mãe-terra.
Os curdos são conhecidos e também se definem como um povo das montanhas, sendo tradicionalmente nômades e semi-nômades. Com a fragmentação violenta e colonial do Curdistão entre as fronteiras de quatro Estados (Síria, Turquia, Irã e Iraque)3 e a imposição de um modo de vida capitalista, a população perdeu em grande parte seus hábitos nomádicos. No entanto, a região ainda é considerada semi-feudal, sendo a terra e a agroecologia elementos centrais. Na parte síria do Curdistão, conhecida como Rojava, o ecocídio – extermínio deliberado de um ecossistema – em curso pela Turquia afeta diariamente o território, que é também habitado por outros grupos étnicos além dos curdos, por exemplo, árabes, assírios e turcomenos.
Sara*, mulher curda de 26 anos e trabalhadora da Kongra Star, uma confederação de organizações de mulheres, avalia a situação ecológica da Revolução de Rojava da seguinte maneira:
Desde o início da Revolução, a ecologia tem sido um campo de luta para a Administração Autônoma e as diferentes instituições sociais. Por um lado, a mentalidade construída, primeiramente sob a colonização francesa e depois pelo regime sírio, era uma mentalidade de alienação da terra e do meio ambiente, vendo-os apenas como fontes de materiais a serem extraídos. Por outro lado, a guerra contínua, o bloqueio de água pela Turquia, os ataques à infraestrutura, aos campos e o embargo criaram obstáculos ao desenvolvimento ecológico na região. Diante disso, nos últimos anos, muitos passos foram dados para melhorar a situação ecológica do nordeste da Síria. Projetos de plantio de árvores, reflorestamento e limpeza de áreas poluídas estão entre as ações realizadas por várias instituições. O uso de fontes de energia sustentável também tem sido um campo de progresso. No entanto, a principal fonte de energia ainda é o combustível fóssil. No início da revolução, 75% da eletricidade provinha da energia hidrelétrica, mas após a interrupção do fornecimento de água pela Turquia, esse número caiu drasticamente e a energia passou a ser obtida do petróleo. A instalação de painéis solares, seja em famílias ou em comunidades, se espalhou especialmente após os ataques [da Turquia] no inverno, que deixaram grande parte da população sem eletricidade. A educação e a conscientização também são tópicos que precisam ser mais desenvolvidos e, nesse sentido, um comitê especial e uma academia para ecologia foram recentemente formados.
Conforme articulado por Sara*, o estado turco realiza bombardeios em série a infraestruturas regionais como hospitais, estações de energia e óleo, que infelizmente têm se tornado cada vez mais recorrentes – os mais recentes ataques ocorreram em outubro de 2024. A Turquia também atua através do corte da água do rio Eufrates, que chega suja e escassa à Rojava, e da intensa devastação de áreas ocupadas, como é o caso do cantão de Afrin. O cantão foi e segue ocupado desde 2018 pelo exército turco e seus mercenários – incluindo ex-soldados do Estado Islâmico –, que desmatam o bioma e cortam extensivamente as árvores de oliveira da região, patrimônios culturais, ecológicos e econômicos4, ou seja, essenciais ao ecossistema e economia.
O resultado dessas políticas ecocidas é evidente: em uma região árida em meio ao Oriente Médio, há aumento da seca. Assim, os curdos, que enfrentam um longo processo de genocídio(s) em curso, não lutam apenas contra a aniquilação de seu povo, mas também de sua terra. Nesse sentido, Ruken Kobanê, mulher curda de 31 anos e guerrilheira das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), comenta sobre os impactos da ocupação de Afrin ao ecossistema local e às mulheres:
Os ataques que estamos vendo hoje contra nós no nordeste da Síria [Rojava], especialmente a ocupação de Afrin, são uma dor imensa para nós. Se o estado ocupante da Turquia rouba nossas terras, rouba os produtos de nossa terra e arranca nossas árvores, isso é, na verdade, um ataque contra as mulheres. Todo ataque contra nossa terra é, na verdade, um ataque contra as mulheres. Por isso, a ocupação de Afrin é uma grande dor para nós, porque todos veem essa verdade e a realidade da situação. Todos os dias há assassinatos, a natureza está sendo vendida, e há violência contra as mulheres, meninas e mães de lá. Tudo isso está gerando em nós uma enorme raiva. Afrin é uma parte da nossa vida, uma parte do nosso país, de Rojava. Por isso, os ataques contra Afrin também são ataques contra o movimento das mulheres e contra todas as mulheres. Porque a mentalidade dominante está realizando ataques com base nisso. Assim, a libertação de Afrin é uma necessidade para que as mulheres possam vingar seu povo e Afrin. Nós vamos libertar Afrin e não permitiremos que a ocupação se firme em nossa geografia, em nossos sistemas ou em nossa terra.
Mizgîn*, mulher curda de 28 anos, lendo em frente ao muro com o lema ‘Jin, Jiyan, Azadî’ (Mulher, Vida, Liberdade) no Centro de Jineolojî em Dêrik. Fonte: Comuna Internacionalista de Rojava (2024).
O Movimento das Mulheres Curdas, reconhecido internacionalmente pela guerrilha das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), é bem mais amplo que sua resistência armada. As mulheres curdas se organizam de forma multidimensional, propondo seus próprios conceitos teóricos, criando e participando de diversas instituições que possuem, inclusive, impacto ecológico. O lema da revolução Jin, Jiyan, Azadî! (Mulher, Vida, Liberdade!), reflete o ideal de que a luta pela terra é uma luta feminista pela liberdade, sendo as mulheres intimamente ligadas à reprodução da vida e proteção do solo. Sosin Derik, guerrilheira das YPJ de 30 anos, dialoga sobre essa conexão:
A relação das mulheres com a terra, com a natureza, com as montanhas, pode ser vista como uma pequena parte do universo. As mulheres são as mais conectadas com a terra. Se observarmos como a terra muda de acordo com as quatro estações, veremos que as mulheres também mudam ao longo do tempo, elas têm suas próprias estações. Em curdo, dizemos Welatparêz, mulheres que estão conectadas à sua terra, protegem seu país.
Welatparêz, em tradução do Kurmanjî, variante do idioma curdo falado na região, significa “protetor ou defensor da mãe-terra” e é um conceito-chave para o Movimento das Mulheres Curdas. O termo foi recorrentemente citado pelas mulheres por mim entrevistadas, comprovando a relevância da dimensão ecológica em seus cotidianos e reflexões. Para elas, “matar e transformar o homem dominante”, mais uma contribuição teórica relevante do movimento, é também matar a mentalidade de dominação sobre a natureza, ligada à masculinidade. Vale ressaltar que o exercício de transformação da masculinidade dominante não cabe apenas aos homens, é uma proposta para todos.
Como guarda-chuva desses e de outros conceitos, encontra-se a Jineolojî (Ciência da Mulher e da Vida), um paradigma teórico criado pelo movimento. A nova ciência das mulheres curdas serve de base para a interpretação de que mulheres e natureza foram ambas colonizadas, buscando romper essa relação de inferioridade artificial e violentamente imposta ao recuperar o conhecimento apagado das mulheres e sua conexão com a natureza. E é a partir da retomada de saberes femininos que deusas da Mesopotâmia têm sido rememoradas e novamente cultuadas pelo Movimento das Mulheres Curdas, como é o caso emblemático de Ishtar (deusa da guerra, do amor e da fertilidade), representada em vários muros da Revolução.
Crianças residentes do vilarejo Jinwar em frente à pintura da deusa Ishtar.
Fonte: Jinwar Women’s Village Archive (2024).
No aspecto institucional do movimento, algumas de suas organizações são ótimos exemplos para compreender os esforços ecológicos de educação, proteção e reflorestamento em andamento. Foram fundados Centros de Jineolojî, que funcionam como academias dessa nova ciência. Mizgîn*, mulher curda de 28 anos que trabalha no Centro de Jineolojî em Dêrik, comenta que “como [integrantes do Centro de] Jineolojî, participamos de trabalhos ecológicos. Avaliamos a situação ecológica. Avaliamos os ecocídios que estão acontecendo na região e como também nos prejudicamos”.
No vilarejo Jinwar (Vila das Mulheres), que teve sua construção iniciada em 2016, residem exclusivamente mulheres e suas crianças, tendo os meninos direito de permanecer até casarem ou decidirem mudar na maioridade. A vila é um espaço seguro para as moradoras, que vivem em comunhão à natureza, tendo recentemente criado a Shifajin, uma farmácia de ervas e medicinas ancestrais que, em tradução literal, significa “curando mulheres”. Os remédios produzidos são enviados para outras partes de Rojava e disponibilizados para a população.
A Kongra Star – no que o “Star” se refere à deusa Ishtar – é uma confederação de comunas, conselhos, academias, cooperativas e comitês de mulheres fundada em 2005 em Rojava, que também possui sedes em Başûr (Curdistão iraquiano), Líbano e Europa. O objetivo da confederação é desenvolver uma sociedade livre e democrática através dos paradigmas ecológico e de libertação das mulheres. Sara* explica um pouco do funcionamento das cooperativas femininas:
Desenvolver uma economia feminina é um passo fundamental para que as mulheres se desenvolvam, conheçam outras mulheres e reconstruam uma economia comunitária. No nordeste da Síria [Rojava], cerca de 500 mulheres trabalham nas cooperativas agrícolas relacionadas à Kongra Star, abrangendo cerca de 63.000 hectares de terra. O número pode parecer pequeno, mas se incluirmos as famílias que vivem da renda das mulheres, esse número se multiplica. Além disso, 131 mulheres trabalham em diversos projetos cooperativos, como padarias, restaurantes, alfaiatarias e lojas. Existem, ao todo, 78 cooperativas femininas, 51 das quais são agrícolas, duas de produção de alimentos enlatados e 25 cooperativas de lojas e padarias.
Criança no vilarejo Jinwar.
Fonte: Jinwar Women’s Village Archive (2024).
E, por fim, o último projeto aqui apresentado – mas que não encerra a diversidade de iniciativas ecológicas do Movimento das Mulheres Curdas – foi criado em 2020 e é chamado de Keziyên kesk ou Green Braids (Tranças Verdes), uma campanha independente e voluntária que almeja o plantio de 4 milhões de mudas de árvores em Rojava, em contraponto ao desmatamento na região. O nome é um tributo às tranças das mulheres Yazidis, símbolos de resistência. Yazidis são um grupo étnico minoritário que integra os curdos, e muitas de suas mulheres participaram na resistência armada ao Estado Islâmico em Rojava e/ou tiveram seus companheiros assassinados pelo grupo, cortando suas tranças para colocá-las nos caixões.
A versatilidade do Movimento das Mulheres Curdas é, portanto, teórica e institucional, pois, a fim de tornar-se cada vez mais Welatparêz (protetor ou defensor da mãe-terra) é necessária uma revolução de mentalidade, que inclui esforços para alterar compreensões e práticas acerca da terra, território e ecologia. Sendo assim, a Revolução de Rojava, em seus doze anos de existência e enfrentando desafios, ocupações e ataques ininterruptos – principalmente por parte da Turquia –, reconhece os ecocídios em curso e mobiliza-se, dentro de suas restritas possibilidades, para defender e proteger sua autonomia e sua terra. Segundo Amara*, mulher curda de 20 anos que trabalha no Centro de Jineolojî em Dêrik, “após a revolução, cuidar do solo e da pátria tornou-se mais importante. Isso também nos influenciou de maneira ecológica. Comparado a como era antes, nós desenvolvemos um alto nível de progresso”.
As mulheres curdas, reconhecendo que a luta anticolonial e antipatriarcal está intimamente ligada à ecologia e à transformação da mentalidade do homem dominante, possuem papel vital nesse processo em curso em Rojava. A atuação do Movimento das Mulheres Curdas compõe uma complexa rede de iniciativas e ricas proposições teóricas a partir das perspectivas de resistência delas e de sua conexão com a terra. Tais empreendimentos precisam ser mais visibilizados para além da guerrilha exclusivamente feminina e colocados em perspectiva e diálogo com outros movimentos anticoloniais e decoloniais, como os de mulheres indígenas em Abya Yala – esse pode ser o assunto de outro texto.
Nesse sentido, espero ter contribuído para a divulgação, esclarecimento e debate da dimensão ecológica desse movimento, mesmo que de forma sucinta. Assim, concluo com a citação de Mizgîn, que afirma corajosamente: “Caminhar neste solo agora nos dá força, e isso nos leva a defender essa terra.”
- Mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bacharela em Relações Internacionais (UFRJ). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar em Estudos Curdos (NUPIEC). Instagram @nupiec. Contato: leticia.gimenez@unesp.br
↩︎ - As entrevistas com mulheres curdas residentes de Rojava foram realizadas à distância com o suporte da Comuna Internacionalista de Rojava no âmbito da pesquisa da minha dissertação de mestrado em andamento. A identidade das participantes foi protegida através da adoção de nomes próprios curdos fictícios (pseudônimos), exceto no caso das guerrilheiras das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), que já possuem nomes de guerrilha (nom de guerre).
↩︎ - Os curdos fizeram parte do extinto Império Otomano, integrando-o, mas mantendo sua cultura, língua e modos de existir. A dissolução do Império Otomano é tida como um momento definidor no qual surge a chamada “questão curda”, pois é entre 1915 e 1918 que o grupo étnico “perde” injustamente a chance de constituir o próprio Estado-nação (Curdistão), passando a compor minorias nos Estados recém-criados (Irã, Iraque, Turquia e Síria).
↩︎ - A comercialização de azeite de oliva advindo das árvores de oliveira é a atividade mais rentável de Afrin. As árvores de oliveira também são importantes elementos de conexão afetiva com a terra para os curdos.. ↩︎