por Camila Jourdan1
Matéria originalmente publicada na revista Tapuia
Eu propus esse nome, que é um dos títulos do nosso evento, Cosmologias do múltiplo e formas de vida contracoloniais, porque vou partir aqui da noção, do filósofo Nego Bispo, com a qual ele começa Colonização e quilombos, que é a noção de cosmovisão. E aqui poderíamos chamá-la também de ‘imagem de mundo’, mas o nome que Antônio Bispo utiliza é ‘cosmovisão’. Então, para ele, nós teríamos duas cosmovisões em confronto: uma que é colonial, ocidental, e outra cosmovisão que ele vai associar com o conceito, também cunhado por ele, de contracolonialidade. A cosmovisão contracolonial e a cosmovisão colonial estariam em disputa no que ele chama, e nós também podemos chamar aqui de ‘guerra colonial’. Bispo estabelecerá então uma série de características: a cosmovisão ocidental se caracterizaria pelo monoteísmo, monocultura – monismo, de maneira geral; pela noção de um tempo linear, progressivo; além de uma noção de divindade que é transcendente; enquanto um fundamento atomizado da realidade – então temos um individualismo nessa ontologia; marcada pela competitividade, desenvolvimentismo; tudo que poderíamos associar a uma ideia de “forma Estado”, embora esta noção não apareça diretamente no pensamento de Nego Bispo. Por outro lado, a cosmovisão pagã, é por ele associada às religiões do múltiplo, com politeísmo, onde teríamos ainda uma noção de divindade imanente, uma noção de tempo circular, sendo pluralista em vários sentidos, além de coletivista, integrada, em vez de atomizada, e colaborativa, em vez de competitiva, também comunitária, em vez de desenvolvimentista, aquilo que podemos aqui, grosso modo, denominar de “forma comuna” em contraposição à “forma Estado”.
Este arranjo de conceitos é interessante porque nos permite também analisar a guerra colonial/contracolonial para além de fronteiras espaço-temporais, não se tratam de territórios em disputa apenas, mas de maneiras de viver, de formas de vida em disputa, cujos elementos ultrapassam os períodos. Há disputa colonial dentro da própria Europa, há uma maneira de viver que é massacrada, silenciada, queimada em fogueiras, que deve permanecer esquecida, que é colocada sucessivamente, e através dos tempos, no âmbito do impossível.
A proposta de Nego Bispo é que a colonização foi um momento particularmente evidente no qual a tentativa da cosmovisão ocidental se estabelecer como dominante para além do território da Europa – onde já travava uma guerra de dominação, ou melhor, para se estabelecer como única possível – se mostrou como evidente para além de suas fronteiras. Mas o processo colonial seria muito maior e continuado do que aquilo que os livros de história entendem como período colonial. Haveria, uma guerra entre cosmovisões de fundo, permanente e em curso hoje, e poderíamos dar vários exemplos históricos e atuais do que é esse embate entre colonial e contracolonial. Talvez recentemente instanciado pelo embate entre povos originários e agronegócio. Mas que aqui gostaria de ilustrar com um diálogo presente no filme Silêncio (2016), de Martin Scorsese, onde a figura de um deus único cristão é exemplarmente estabelecida como devendo necessariamente excluir e impossibilitar outras divindades.
– Padre, a doutrina que traz consigo pode ser a verdade na Espanha e em Portugal, mas a estudamos com cuidado, com tempo e devoção, e achamos que não possui utilidade ou valor no Japão. Concluímos que pode ser um perigo.
– Mas nós achamos que trouxemos a verdade. E a verdade é universal, comum a todos os países e a todas as eras. Por isso dizemos que é verdade. Se uma verdade não for verdade aqui como em Portugal, não podemos mesmo chamá-la ‘verdade’.
– Vejo que não trabalha com as mãos, padre. Mas todos sabemos que uma árvore só floresce em um tipo próprio de solo, e pode apodrecer e morrer em outro. O mesmo acontece com o cristianismo.
(…) ( Scorsese, 2016, 1:26-1:30)
O monoteísmo cristão se apresenta como colonial na medida em que não basta para este ser uma possibilidade entre outras, mas quando o massacre ao diverso aparece como condição de sua verdade.
Outras noções que quero relacionar aqui com as propostas de Nego Bispo dizem respeito aos princípios estabelecidos pelo antropólogo anarquista, David Graeber, que ficou muito conhecido a partir do movimento Occupy Wall Street. Partindo das análises do antropológico francês Marcel Mauss (2003), sobre a dádiva e a troca, mas também recusando a leitura de Mauss, Graeber contrapõe dois princípios que denomina antropológicos, mas que poderíamos chamar, também, de ontológicos: o princípio da troca e o princípio da dádiva (ou do comunismo):
A troca tem sempre a ver com equivalência. É um processo de mão dupla em que cada lado dá tanto quanto recebe. É por isso que se pode falar na troca de palavras entre pessoas, da troca de socos, ou de mercadorias. Nestes exemplos, não é que exista sempre uma equivalência exata, mas sim um processo constante de interação que tende à equivalência.” (Graeber, 2014, p. 134, grifo meu)
Aqui é interessante porque ele menciona a troca relacionada também às palavras, quer dizer, de certa maneira, a visão ocidental de realidade tenta estabelecer a troca como a maneira fundamental pela qual as pessoas se relacionam. E a formulação é boa também porque ele fala em equivalência, equivaler significa medir, e medir supõe critério de medida. Então com uma tacada só: se a troca supõe equivalência, supõe representação, para que o que é medido possa ser representado, e valha em termos de outro algo. Ao mesmo tempo, tudo que é medido supõe um padrão de medida, que não é ele mesmo medido, pois o metro padrão não pode ele mesmo medir um metro. Assim temos a relação da troca com o representar, e o limite que a equivalência suscita para o que pode ser trocado. Voltando à linguagem: para o ocidente, falar significaria também trocar. E conhecer? Ora, trocar conhecimento. Mas, se é assim, será que estamos sempre negociando? Uma sociabilidade de mercadores, portanto. Difícil não chegar em David Kopenawa, pois essa parece ser a ideia fundamental do povo da mercadoria. Trata-se de uma sociedade de negociantes. E já é quase desnecessário dizer então que a política também é assim vista como uma troca. Tudo é um “toma lá, dá cá”, como se as pessoas só pudessem se relacionar dessa maneira. Esta é a principal imagem introduzida pelo mito do contrato social. Mas, claro, recusar isso, não significa dizer que a troca não exista, ou que não desempenhe um papel importante na sociabilidade. Graeber jamais negou que a troca é constante nas sociedades humanas. Mas o que ele justamente vai trazer é que: temos sociedades que são fundadas na troca, cuja troca é fundamental, e sociedades que reconhecem a dádiva como princípio. Mas não se trata de dizer que o princípio da troca possa ou deva ser eliminado das sociedades humanas; apenas ele não é o único princípio e não pode ser o mais fundamentado. Assim, trata-se menos de evitar a troca, mas de compreender que a troca não é a única maneira possível pela qual as pessoas se relacionam.
O outro princípio fundamental, Graeber adapta do Kropotkin – David Graeber é, como falei, um anarquista e vai buscar em outro anarquista, Kropotkin (2011), essa noção de princípio do comunismo, que ele então associa ao princípio da dádiva, do Mauss, para pensar nessa outra maneira de se relacionar que não é por meio da troca. Kropotkin já havia definido o princípio do comunismo dessa maneira: a cada um de acordo com as suas necessidades, de cada um de acordo com suas possibilidades (2011, p. 33). “Defino aqui comunismo como qualquer relação humana que funcione de acordo com o princípio ‘de cada um segundo suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades’ ” (Graeber, 2014, p. 123).
Então, qual a principal diferença da dávida para a troca, a dádiva deixa de ser uma troca mal feita, como parece supor Mauss (2003), pois não se busca a uma equivalência, não por falta, não por incapacidade, mas porque realmente não se trata de trocar. A troca é baseada na equivalência – se vou trocar cadeiras por garrafas, então tenho que fazer uma equivalência entre garrafas e cadeiras. Esta é a ideia de fundo no valor de troca. Preciso medir (representar) a cadeira em termos de garrafas. A troca se funda na equivalência, o valor trabalho que anima ambas permite que possamos medir uma em termos da outra. O princípio do comunismo não busca uma equivalência. E talvez por isso seja um erro grosseiro supor que o comunismo possa se basear no trabalho. Inclusive Kropotkin recusou o valor trabalho como fundamental. É como se a base fosse sempre um valor de uso, mas que não é valor de uso nenhum no sentido de Marx, já que esta noção parece apenas fazer sentido dentro do par concreto-abstrato, enquanto opostos e correspondentes, o que é evidentemente aqui recusado. Não há concreto pelado significa também não há abstração transcendente. Caem, junto com o primado da representação, as dualidade langue-parole e valor de uso-valor de troca. Difícil não pensar aqui naqueles programas bobos de televisão, onde uma pessoa pergunta: vamos trocar um carro do ano por um beijo na boca? Óbvio! E deveria ser óbvio mesmo, pois um beijo na boca tem muito mais (ou, pelo menos, pode ter muito mais) valor do que um carro do ano.
Para Graeber, o princípio do comunismo é o único capaz de constituir o comum, aliás, por isso se chama comunismo, pois é ele que constitui o comum. A troca no máximo supõe um comum, mas não fundamenta sociabilidade. De maneira muito interessante, Nego Bispo também recusará então falar em troca, ele falará em compartilhamento, e associará esse vínculo comum com os afetos, que se fortalecem quando compartilhados e se estendem, tal como liberdade anarquista (que não é negociável) ao infinito:
Quando ouço a palavra confluência ou a palavra compartilhamento pelo mundo fico muito festivo. Quando ouço a palavra troca, entretanto, sempre digo: cuidado, não é troca, é compartilhamento. Porque a troca significa um relógio por um relógio, um objeto por outro objeto, enquanto no compartilhamento temos uma ação por outra ação, um gesto por outro gesto, um afeto por outro afeto. E afetos não se trocam, se compartilham. Quando me relaciono com afeto com alguém, recebo uma recíproca deste afeto. O afeto vai e vem. O compartilhamento é uma coisa que rende. (Nego Bispo, 2023, p. 21)
Agora podemos associar isso com aquelas cosmovisões que falamos no início, o princípio da troca tomado como universalizável está ligado à cosmovisão ocidental e colonial, e o princípio do comunismo estaria ligado à cosmovisão que Nego Bisco chama de cosmovisão pagã. O interessante é que o princípio da troca não é universalizável, por excelência. Toda troca supõe um comunismo de base. Isso é uma ideia que aparece no Graeber, mas podemos chegar a ela também sozinhos. Não precisaríamos do David Graeber para chegar à conclusão de que o princípio da troca não é universalizado. Existem muitos caminhos para vermos isso, mas podemos pensar que, no dia a dia, na verdade, não usamos o princípio da troca nas coisas mais importantes. Se tentarmos universalizar o princípio da troca, a relação entre as pessoas se torna impossível. Graeber dirá: imagine que você está realizando uma tarefa simples do dia a dia, em seu escritório, trabalhando, e alguém te pede uma caneta, daí você vira para a pessoa e fala “o que eu vou ganhar em troca?”. Isso só pode ser entendido como uma brincadeira, uma piada, porque se você tentar fazer isso o tempo todo, de fato, você não vive. Muito embora o nosso modo de vida contemporâneo tenha se tornado tão insuportável porque a troca tenha adentrado cada vez mais âmbitos nos quais onde sequer se aproximava, quando mais ela cresce e se torna totalitária, mais a vida se torna insustentável, precária, vulnerável. E, como ainda há vida, e beleza na vida, não é pela troca que guiamos no nosso dia a dia, não é assim que lidamos com nossas pessoas mais próximas, e mesmo em nossas atividades laborativas que nos são importantes.
Foi inclusive dado um exemplo aqui mais cedo: a mãe não pede nada em troca. Talvez as amizades e nossos parentes sejam bons exemplos de âmbitos nos quais se guiar pela troca ainda pareça absurdo. Graeber traz um exemplo muito bom em relação a isso. Ele imagina uma família em que, quando o filho se torna adulto, os pais apresentam uma conta: ‘veja tudo o que gastamos com você desde que você nasceu, agora você tem que nos pagar por isso’. Isso não só é uma coisa que nos gera um sentimento de estranheza, mas sentimos também que se essa pessoa pagasse, nunca mais falaria com sua família. ‘Você quer que eu pague tudo o que você me deu até hoje? Vou pagar, mas a gente não tem mais nenhum vínculo’. Então, o que estou querendo dizer é que, na verdade, todo mundo é um pouco comunista. Mesmo em nossa sociedade porcaria, onde se tenta universalizar o princípio da troca, ele é impossível de ser universalizado. Se a gente fosse, de fato, universalizar o princípio da troca, não haveria sociedade humana e não haveria linguagem. É impossível universalizar o princípio da troca. Só há troca porque tem algo que não é do âmbito da troca, que é o próprio critério da troca. E essa talvez seja a ideia central do comunismo de base. É uma espécie de “[…] reconhecimento da nossa interdependência fundamental […]” (Graeber, 2014, p. 129), a matéria-prima da sociabilidade humana. É isso que estaria no fundo inclusive da própria possibilidade de trocar.
Além disso, defendo que ‘trocar’, na verdade, é um conceito aparentado com representar, na medida em que toda troca, se não é dádiva, supõe essa medida de equivalência, que é o valor da troca – vamos ler, por exemplo, a cadeira em termos de garrafas. A troca é sempre um isso por aquilo, um isso valendo por aquilo. Isso significa que preciso representar isso no lugar daquilo, isso como representante daquilo. Bom, se toda troca supõe uma representação, já que trocar cadeiras por garrafas é representá-las por uma unidade de medida valendo por elas, também pode ser dito, de uma outra forma, que a troca é sempre um isso por meio daquilo – vou pagar cadeiras por meio de garrafas. A troca é a relação mediada por representações. Há uma espécie de forma comum entre trocar, representar e a própria ideia fundamental para a epistemologia ocidental do princípio de razão: isto por aquilo, isto por meio daquilo, isto por causa daquilo. Todas relações de mediações. Bom, Hume já mostrou que toda relação causal não pode ser necessária, então me permitirei aqui apenas dizer que: a relação de troca é uma relação de representação e de contingência. Nada de fundamental pode ser dado por uma relação sempre contingente. Tal como entendo, isso se relaciona com o próprio caráter não universalizável da troca. Ou seja, o que eu gostaria de sustentar é que há um limite para a representação e isso significa o mesmo que dizer que: há alguma coisa que é inegociável, pois não é representável e, portanto, não é um meio de outro algo, mas é um fim em si, ou é incomensurável, já que não podemos medi-lo em termos de outra coisa, e por isso pode ser o critério de toda troca. Como eu disse, essa talvez seja a própria sociabilidade fulcral humana, ou até mesmo, quem poderia imaginar, a linguagem, enquanto significabilidade fulcral.
Há um acordo de base entre as pessoas que não pode ser nem metaforicamente do âmbito da troca, porque não é do âmbito do contrato – o contrato, claro, é uma troca também, um isto por aquilo: vou trocar minha liberdade pela segurança. Esta é a forma do contrato social. A sociedade ocidental acha que tudo se funda na troca. Qual é o mito do contrato social? É o mito pelo qual a sociabilidade humana – essa, que se funda no comunismo fulcral, teria nascido na troca, por meio do contrato social. Mas é isso que estou falando que não pode ser, não se trata de dizer somente que não foi assim, mas que é impossível. A sociabilidade não pode se fundar na troca, não pode se fundar no contrato. Esse mito é um mito enganoso. “Ah, mas é só uma metáfora”. Mas é uma metáfora enganosa e nociva, que gera malefícios concretos até hoje.
Então você está dizendo que a concordância entre os homens decide o que é certo e o que é errado? – Certo e errado é o que os homens dizem; e, na linguagem, os homens concordam. Essa não é uma concordância das opiniões, mas da forma de vida.” (Wittgenstein, IF, 241, grifos meus, itálicos do autor)
Esse acordo fulcral, pode até ser pensado como a própria linguagem, mas não é uma concordância de posições, de certo e errado, de verdadeiro ou falso. É um acordo na forma de viver. É esse comunismo de base mesmo que é um fim em si, que não é medido, e que torna a vida significativa. Não é um contrato porque não tem essa forma “isto por aquilo”. É inegociável: o “metro padrão” que nem mede nem não mede um metro (IF, 50), porque é a base de qualquer medida, de qualquer troca.
Bom, agora eu falarei um pouco de Wittgenstein aqui. Na Conferência sobre Ética, Wittgenstein associa a ética com uma estrada que seria boa nela mesma: uma estrada que fosse boa, não porque me leva a certo lugar aonde quero ir – “Essa estrada é boa porque é um meio para um fim, ela me leva à Aldeia Marakanã, então seria uma boa estrada. Essa outra estrada não é tão legal, porque, sei lá, me leva para o Palácio Guanabara”. Mas e uma estrada que fosse boa independente de aonde ela me leva? Essa seria a ideia da ética como alguma coisa que fosse boa nela mesma. Ah, isso não é uma estrada, não existe uma estrada boa independente de aonde ela me leva. Essa ideia de que: tem algo que tem que ser um fim em si mesmo é o que assusta o pensamento negociante. Mas, claro, não estamos dizendo ‘ser boa independente de contexto’, senão que: em cada contexto, deve haver algo que funciona dessa forma. A maior parte das atividades humanas que nos dão prazer são atividades que tem esse caráter: compartilhar uma música, compartilhar um cigarro na beira da fogueira da aldeia… Não é algo que você faz para algo, é algo que você faz porque aquilo é bom em si mesmo. A vida, afinal, não é útil.
Bom, o argumento central contra o contrato, de alguma maneira, já está todo dado aí: um contrato não pode fundar uma sociedade porque todo contrato já supõe a sociedade. Poderíamos colocar em termos de linguagem: um contrato não pode fundar a sociedade porque a linguagem não pode se fundar no contrato e todo contrato supõe já uma linguagem. Essa imagem, essa metáfora, das pessoas se reunindo para fundar uma sociedade, como se pudessem não ter linguagem aí, é enganosa em muitos sentidos.
A conversa é um domínio particularmente predisposto ao comunismo. Mentiras, insultos, críticas e outras agressões verbais são importantes – mas a maior parte da sua força vem da suposição comum de que as pessoas em geral não agem desta maneira. É impossível mentir para alguém que não ache que costumamos dizer a verdade. Quando sentimos uma vontade genuína de romper uma relação amistosa com alguém, simplesmente deixamos de falar com esta pessoa. (Graeber, 2014, p. 127)
A linguagem também aparece em Graeber como um exemplo desse comunismo de base. Preciso supor o sentido para conversar com alguém. Mesmo que eu minta para essa pessoa, que eu tenha uma relação hostil com essa pessoa, isso supõe que ela compartilha critérios comigo do que é tal ou tal coisa.
Mantém-se o fato de eu não ter qualquer simpatia pela corrente da civilização europeia e não compreender seus objetivos, se é que eles existem. Assim, escrevo de fato para amigos dispersos pelos recantos do mundo. É-me indiferente que o cientista ocidental típico compreenda ou aprecie, ou não, o meu trabalho, visto que, de qualquer modo, ele não compreenderá o espírito com que escrevo. A nossa civilização é caracterizada pela palavra progresso. Fazer progressos não é uma das suas características, é a sua forma. Ela é tipicamente construtora. Ocupa-se em construir uma estrutura cada vez mais complicada. E até mesmo a claridade é desejada apenas como um meio, nunca como um fim em si mesmo. Para mim, pelo contrário (…) se o lugar a que pretendo chegar só se pudesse alcançar por meio de uma escada, desistiria de tentar lá chegar. Pois o lugar a que, de fato, tenho de chegar é um lugar em que já me devo encontrar. Tudo aquilo que se pode alcançar com uma escada não me interessa. (Wittgenstein, CV, pp. 22-23)
Bom, essa passagem fala por ela mesma. Relacioná-la com tudo que eu disse antes é explicar em que medida a Filosofia de Wittgenstein, certamente um europeu, pode ser contracolonial, na medida em que recusa essa cosmovisão da forma progresso, na qual uma coisa seria sempre um meio para um fim, um isto para aquilo, e esta é a forma da civilização ocidental.
A forma da civilização ocidental e a forma do progresso são, por um lado, etnocidas, porque pretendem universalizar o que não é universalizável, porque têm essa forma do progresso e do princípio da troca, que é um isso por aquilo, um isso para aquilo, como se viver pudesse ser só representar e negociar; como se falar, se relacionar e conhecer fossem sempre e fundamentalmente trocar. E, portanto, trata-se também de um povo sem ética. O povo da mercadoria é um povo sem ética, se a gente entende que a ética consiste em justamente tomar valores como fins em si, como tendo valor em si mesmo. Se eu tento universalizar como um ‘fim em si’ aquilo que é necessariamente relativo, porque é só um meio para um fim, então não tomo nada como inegociável, isso equivale à mesma coisa que dizer que nada tem valor. Então, a conclusão aqui é essa, que a civilização ocidental é a civilização sem ética. Talvez seja chover no molhado, mas, para terminar, eu queria fechar com uma poesia do Nego Bispo, que está no mesmo livro (2015, p. 45):
Fogo!… Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!… Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!… Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!… Queimaram Pau de Colher…
E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.
Porque mesmo que queimam a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo
Não queimarão a ancestralidade.
Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz ‘não’. E Bispo vai justamente analisando como cada uma dessas formas comunas – essa forma comuna, que é o que está na Aldeia Marakanã, uma forma comuna em resistência contra a forma Estado, que se toma como universal e única –, conforme foram sendo massacradas pela forma Estado, foram reaparecendo em outros lugares. Essa é a ideia de cosmovisões em guerra continuada. Acredito que a resistência da Aldeia Marakanã é uma das instâncias atuais. Uma, particularmente próxima, das tantas formas comunas que seguem reaparecendo na atual guerra em curso.
Respostas a perguntas:
Quando colocamos em termos de cosmovisão, como Nego Bispo coloca, ou que outros autores colocam como forma de vida, imagem de mundo… São certas características – daí a importância de listar isso – e, nesse sentido, claro que [a forma Estado] é uma ficção, uma ficção forjada por muito sangue, por muito massacre. Mas, como toda ficção, ela existe. Estamos sempre falando de ficções que são reais. Quando elencamos assim, conseguimos ver que há um outro lado sendo sucessivamente assassinado, massacrado, invisibilizado. O modo de vida colonial se afirma como único porque massacra o contracolonial o tempo inteiro operando.
Recentemente estivemos [eu e Acácio Augusto] na banca de um amigo nosso, Matheus Marestoni, que vai justamente mostrar como, ao mesmo tempo que a Europa estava trucidando nas Américas, estava trucidando internamente também, queimando as mulheres nas fogueiras e acusando de bruxaria, como Silvia Federici mostra. E quais eram as justificativas? Se você for olhar porque queimavam as mulheres e a relação disso com a expansão do modo de vida capitalista, você verá que há uma relação direta entre ódio ao feminino e modo de produção por extração predatória de recursos naturais. Ou seja, é o modo de vida colonial exterminando o que não cabe na sua forma. Faz parte de se colocar como universal massacrar aquilo que você exclui, e só é possível uma totalidade abrangente se afirmar como universal por meio de tomar como impossível o que exclui. Não é uma coisa separada da outra.
Agora, podemos aplicar ao nosso contexto, essa violência toda em relação à Aldeia Marakanã, porque o fato de que a Aldeia está ali, do lado da UERJ, do lado do complexo do Maracanã, esfrega na cara dessa universalidade que ela não é universal, porque está mostrando que é possível viver de uma outra maneira, e é isso que é tão assustador. É por isso que é preciso massacrar com tanta violência. É por isso que Nego Bispo vai dizer que não é só tirar de lá, que a hegemonia normativa entende sempre que tem que queimar o lugar inteiro, tacar fogo em tudo, para que ninguém lembre; tem que fazer com que aqueles e aquelas que sofreram violência não consigam mais contar para seus filhos o que havia, porque é um trauma o que apaga sentidos, e a pessoa não consegue mais falar sobre isso; para que ninguém ache que é possível. Então, é disso que se trata, de lembrar que é possível. E é isso que a Aldeia não cessa de nos lembrar diariamente, por estar lá, ainda.
Agora, a questão que chamei atenção aqui sobre o fim em si, penso queestá ligada àquelas características dali. Quando falamos em transcendente e atomizada, temos essa imagem de átomos separados, onde a imanência do sistema é isolada nessa figura de um deus que é causa de si mesmo. Isso é tentar colocar no âmbito da representação o que não cabe nela, não cabe na sua imagem atomizada e mediadora. Quando eu falo aqui de fim em si, não estou me referindo a uma entidade especial, mas a essa interdependência fulcral da vida, é a vida que não é útil, é o comum de base, estamos falando de uma cosmovisão onde a imanência perpassa o sistema inteiro, portanto não há átomo independente.
Referências
KROPOTKIN, P. A. A Conquista do pão. Tradução: César Falcão. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
NEGO BISPO. Colonização e Quilombos – Modo e significados. Brasília, 2015. Disponível em: https://repi.ufsc.br/sites/default/files/BISPO-Antonio-Colonizacao_Quilombos_Modos_e_Significados.pdf Acessado em: 19/08/2024.
NEGO BISPO. A terra dá, a terra quer. Ubu, 2023. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7944144/mod_resource/content/1/Antonio%20Bispo%20dos%20Santos%20-%20A%20terra%20da%CC%81%2C%20a%20terra%20quer-Ubu%20Editora%20%282023%29.pdf Acessado em: 19/08/2024.
GRAEBER, D. Dívida: os primeiros 5.000 anos. Tradução Rogério Bettoni. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
SCORSESE, Martin. Silêncio. Escritores: Jay Cocks; Shusaku Endõ e Martin Scorsese. Japão; EUA e Itália: Paramount Pictures, 2016.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas (IF) Trad.: José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Os Pensadores).
_________________ Cultura e Valor (CV). Tradução: Jorge Mendes. Lisboa: Edições 70, 2020.
- Professora associada do Departamento de Filosofia, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e militante anarquista no Coletivo Ação Direta em Educação Popular (ADEP). Contato: camilajourdan@gmail.com
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