João Emanoel Lima de Oliveira
Professor de História – Mestrando da Universidade Federal do Ceará
Divulgador da História do Nordeste – Instagram / Tiktok: @profjoaoemanoel_historia
Maria Lourêto de Lima é neta do paraibano Severino Tavares, um agricultor e mascate paraibano que viveu entre o final do século XIX e início do século XX. Severino Tavares era também um indignado diante das precárias condições sociais e econômicas de seus irmãos sertanejos. Os brutais desmandos dos grandes proprietários de terras sobre os desapropriados do sertão (jornaleiros, agregados, meeiros etc) e sobre pequenos proprietários fez Severino desentender-se com lideranças políticas de Campina Grande no ano de 1923. Chegou a ser preso por isso. Tendo ouvido falar do “Padim Ciço” e de sua Juazeiro que acolhia os tementes a Deus de forma equânime, decidiu ali se estabelecer após sua soltura no ano de 1924.
Severino Tavares era esposo de Joaquina, e desta união dois filhos frutificaram: Eleutério Tavares de Lira e Severina Tavares de Lira. Foi de seu pai, Eleutério, que Maria Lourêto colheu boa parte das informações sobre seu avô devoto do “Padim”. De memórias de outros parentes, amigos e admiradores do avô Severino colheu mais informações, assim como de pesquisas e estudos. Naquelas memórias, ela enfim conheceu seu avô, um homem religioso, pregador carismático e um indignado com as injustiças do sertão nordestino. Destas memórias e pesquisas resultou um livro, que ela publicou em 2008.
Um título para aquele livro poderia ter sido “Severino Tavares: um pregador perseguido” ou “Severino Tavares: um rebelde piedoso”. Contudo, Maria Lourêto preferiu não colocar o nome de seu avô no título do livro. O título da obra é “José Lourenço, o beato perseguido: uma história real”.
Mas como as memórias de seu avô Severino Tavares – o fervoroso devoto que largou tudo na Paraíba para se estabelecer no Juazeiro do Norte – se tornaram um livro sobre o beato José Lourenço? Eis um resumo das lembranças coletadas pela filha de Eleutério Tavares.
Pouco tempo depois de ter se fixado em Juazeiro do Norte, Severino Tavares conheceu o beato José Lourenço Gomes da Silva e sua comunidade do Sítio Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, nas imediações da cidade do Crato, na serra do Araripe, região sul do Estado do Ceará. A comunidade havia ali se estabelecido, após ter saído do sítio Baixa Dantas, também no Crato, onde ficara estabelecida desde o final do século XIX. Ao conhecer aquela comunidade, Severino Tavares não apenas fez-se membro como também veio a ser o maior divulgador da vida igualitária que naquele povoado se praticava. Severino Tavares se tornou um pregador itinerante que espalhou por vários Estados do Nordeste as boas novas de que a vida cristã que os apóstolos pregavam, onde todos possuíam tudo igualmente ao mesmo tempo, estava sendo praticada na comunidade liderada pelo beato José Lourenço.
José Lourenço também era paraibano, homem preto e analfabeto. A falta nas letras escritas era fartamente compensada pela capacidade ímpar de comunicação oral, acolhimento e compreensão de seu papel de líder. Era também laborioso agricultor. Na medida em que era um pacifista, também era um entusiasta da justiça social. A fama do Sítio Caldeirão como lugar de igualdade, fraternidade e acolhimento superou os limites do Estado do Ceará. Especialmente por conta das pregações de Severino Tavares, os nomes “Caldeirão” e “José Lourenço” alcançaram o Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia, Paraíba e Pernambuco.
O carinho que flui das memórias dos que conheceram tanto Severino Tavares quanto o beato José Lourenço, relatadas por Maria Lourêto, só é interrompido pela indignação em relação às injustiças pelas quais sofreram os membros da comunidade do Caldeirão. De um lado, as várias situações em que Severino foi preso por avisar aos pobres sertanejos de vários Estados que havia um lugar de esperança para o qual podia fugir da opressão do grande latifúndio. De outro lado, o beato José Loureço, fixado no Caldeirão, sofria calúnias de políticos e grandes proprietários, repercutidas em órgãos de imprensa, que o acusavam de ser mais um fanático religioso que encaminhava seus seguidores para práticas imorais, destoantes dos costumes oficiais ensinados pela Santa Igreja Católica.
Com a “Revolução de 30”, liderada por Getúlio Vargas, várias frentes de guerra se formaram no Nordeste do Brasil: guerra contra os coronéis, contra os fanáticos, contra os cangaceiros e, principalmente, contra os comunistas. O discurso anticomunista ganhou o primeiro grande impulso na história da República do Brasil e a perseguição a todo e qualquer foco comunista se espalhou por todos os Estados do país.
Principalmente a partir de 1932, o beato José Lourenço e a comunidade do Caldeirão, já alvos do discurso de antifanatismo, se tornaram alvos também do discurso anticomunista. As atitudes acolhedoras da comunidade em relação ao retirantes flagelados foi a motivadora dos ataques. Durante a terrível seca que se abateu sobre o Nordeste naquele ano, o jornalista José Alves de Figueiredo chamou a atenção para o grande feito do “preto de largo coração” – referindo-se a José Lourenço – que distribuiu a farinha produzida em quatro hectares de mandioca a mais de 500 flagelados. Segundo o mesmo jornalista, se aquela farinha fosse vendida aos armazéns, o Caldeirão receberia uma “bela fortuna”. Foi tal filosofia comunitária, onde tudo era de todos, que fascinou o avô de Maria Lourêto. Passando a viajar ainda mais, Severino Tavares anunciava por onde passava que o reino do céu futuro já estava sendo desfrutado na terra: era a comunidade do beato José Lourenço.
A comunidade cresceu naquele ano de 1932. Chegou a abrigar cinco mil pessoas. O que impressionava tanto quanto o número de acolhidos era a fartura material do povoado: dois açudes, centenas de cabeças de gado e outras tantas de ovinos e caprinos. Vários hectares de área plantada com laranjeiras, bananeiras, abacateiros, coqueiros, umbuzeiros, mamoeiros, eucalipto, algodão e mandioca. Uma produtiva casa de farinha. Trabalho para todos e nenhum morador passando por necessidades. A prosperidade do Caldeirão já incomodava. Cresciam os boatos da iminência de uma “nova Canudos”.
A barata mão de obra sertaneja buscava refúgio por conta da seca, abandonava os latifúndios e se estabelecia no Caldeirão. Para aqueles que viam a seca como oportunidade de lucros, os jornais passaram ser os porta-vozes, promovendo intensa campanha de difamação ao trabalho da comunidade, passando a incluir entre as injúrias de “fanatismo” contra José Lourenço as calúnias de “subversivo” e “comunista”.
Entretanto, ainda havia uma parede de proteção para a comunidade do Caldeirão, que era o próprio “Padim Ciço”. Sua influência havia se tornado fator indispensável para que os demais poderosos da região do Cariri não ultrapassassem o limite que excedia a difamação.
Contudo, no dia 20 de julho de 1934, faleceu o padre Cícero Romão Batista. Em seu espólio constava uma extensa lista de propriedades, das quais se incluía o Sítio Caldeirão. Tal espólio ficou sob a responsabilidade da ordem salesiana. Com estreitas relações com a Liga Eleitoral Católica, partido que havia elegido o presidente do Estado, Menezes Pimentel, os salesianos perceberam uma oportunidade de dissolver a comunidade de José Lourenço. Após tentativas jurídicas malfadadas para expulsar os moradores, tropas da polícia cercaram o sítio Caldeirão e expulsaram a comunidade da propriedade em 09 de novembro de 1936. Seus habitantes se dispersaram, mas alguns meses depois formaram novamente a comunidade na Serra do Araripe.
O que se sucedeu em seguida, é relatado em detalhes tanto pela obra de Maria Lourêto quanto por historiadores como o professor Régis Lopes, o qual produziu substancial historiografia sobre os eventos e a memória do sítio Caldeirão. Após vários ataques, dentre os quais o do dia 10 de maio de 1937 que assassinou Severino Tavares, o comando do exército enviou um destacamento e um avião de guerra para metralhar os moradores no dia 11 de maio de 1937. A comunidade remanescente do sítio Caldeirão foi dizimada, sendo assassinadas entre 700 a 1.000 pessoas (os vários relatos divergem sobre o número total).
O beato José Lourenço, então com 66 anos de idade, conseguiu escapar do massacre com ajuda de outros sobreviventes. Já idoso e apresentando problemas de saúde, ele se refugiou no munícipio de Exu, Estado do Pernambuco, sendo acolhido em um sítio chamado União, de propriedade do “rei do baião” Luiz Gonzaga. Segundo o relato de Eleutério Tavares, o pai de Luiz Gonzaga, seu Januário, apreciava ouvir junto com o beato José Lourenço as músicas do filho serem tocadas na rádio nos domingos pela manhã.
Apesar da dura repressão que havia lhe arrancado sua querida comunidade, José Lourenço ainda levantou um pequeno grupo penitente e fraterno em torno de si no Sítio União. Tal grupo levou seu corpo de volta a Juazeiro do Norte no dia 12 de fevereiro de 1946 para ser sepultado. O beato José Lourenço faleceu aos 74 anos de idade.
Tais memórias e relatos sobre a comunidade do Caldeirão, o beato José Lourenço e Severino Tavares, trazidos no livro de Maria Lourêto, são fruto de vozes de sertanejos pobres, que carregavam os traumas causados pela injustiça dos homens. Contudo, trazem também uma flor de esperança e uma fé cristã que permaneceram inabaláveis. Tal fé cristã dos sobreviventes, que poderia ser projetar para um futuro onde os penitentes seriam levados para o reino dos céus, foi ancorada no passado registrado nas memórias do sítio Caldeirão. Fé e saudade se misturaram. Eles experimentaram um “céu” aqui na terra, marcado pela experiência comunitária sem classes sociais, sem patrões, sem desmandos e opressão. Uma vida social plena e feliz. O Caldeirão havia sido o “céu” deles.
Sempre que retorno a esta história do Caldeirão de José Lourenço, especialmente tendo lido este livro de Maria Lourêto, percebo mais fortemente o poder das memórias e lembranças. Sempre precisamos estar conscientes do poder do “não esquecer”. Da mesma forma, jamais podemos desdenhar do perigo do apagamento e do esquecimento que alguns tentam impor a fatos como o Massacre do Caldeirão. Tanto as lembranças e quanto os esquecimentos são armas de luta.
Hoje, comunidades indígenas, quilombolas, sertanejas, populações periféricas das grandes cidades ou qualquer iniciativa que aspira a justiça social são constantemente atacadas e reprimidas. O “fantasma do comunismo” ainda é evocado para justificar os genocídios e massacres de pobres e a criminalização dos que lutam por justiça social. A comunidade que ficou conhecida pelo Sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no sertão cearense, ainda vive, sobrevive nestas experiências sociais. Sua “utopia do passado” ainda alimenta as utopias de um futuro justo.
Apesar da opressão, ainda hoje existem muitos “Caldeirões” que lutam, insistem e teimam. Acreditam nestas “coisas perigosíssimas” que se chamam justiça social e igualdade para todos. Memórias como a da comunidade do beato José Lourenço são combustível para estas lutas. Jamais esqueçamos: os poderosos temem muito a força da Memória e das lembranças. Não fosse isso, não tentariam constantemente apagar ou fazer esquecer histórias como a do Sítio Caldeirão. Precisamos continuar lembrando de Severino Tavares e do beato José Lourenço. Jamais podemos esquecer a comunidade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.
Obras consultadas:
1) José Lourenço, o beato perseguido: uma história real – Autora: Maria Lourêto de Lima – Editora IMPEPH.
2) Caldeirão – Autor: Francisco Régis Lopes Ramos – Editora EDUECE.