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Esse é o segundo texto da série “Te cuida, compa!”, onde compartilharemos conhecimentos e ferramentas de cuidado, criando um manual para a autogestão da saúde – individual e coletiva.
Você pode ler a primeira parte aqui.
Nesta segunda troca, continuaremos falando de diabetes, a “epidemia silenciosa” que mata uma pessoa a cada cinco segundos no mundo. Depois de explicar o funcionamento do nosso metabolismo, e de entender o que significa “glicemia alta”, “resistência à insulina” e os riscos que isso representa pra saúde, o foco hoje será na prevenção e na melhoria da qualidade de vida de quem vive com essa doença. E como nossa saúde não existe numa bolha, conversaremos também sobre os fatores sociais que contribuíram pra que essa doença se espalhasse como um rastro de pólvora nos nossos territórios.
“Antigamente as pessoas não tinham diabetes!”
Você provavelmente já ouviu isso de uma pessoa mais velha. Pois saiba que tem verdade aqui. De acordo com dados divulgados no ano passado, o número de adultos vivendo com diabetes no mundo mais que quadruplicou desde 1990. E sabe onde o aumento foi maior? Nos países de baixa e média renda. Como nesses países o acesso à saúde é mais difícil, boa parte das pessoas fica sem tratamento. A desigualdade fica escancarada aqui: noventa por cento das pessoas adultas diabéticas sem tratamento vivem em países de baixa e média renda.
O que explica a explosão de casos de diabetes, e outras doenças crônicas não transmissíveis, nos países “de baixa renda”? A resposta pode estar no nosso prato.
Nas últimas décadas, enquanto o número de casos de diabetes aumentava, também aumentava o nosso consumo de ultraprocessados. Ultraprocessados são formulações industriais feitas com substâncias retiradas dos alimentos. Trocando em miúdos, são os pacotinhos vendidos nos supermercados, cuja finalidade é dar o máximo lucro pras empresas que os fabricam. Alguns exemplos de ultraprocessados: refrigerantes, biscoito recheado, iogurtes adoçados, barras de cereais, salsicha, mortadela, refresco em pó, sorvetes, pizza e lasanha congeladas… Por que estamos comendo cada vez mais ultraprocessados no Brasil? Somos induzidos pela propaganda massiva que estimula o consumo dos pacotinhos que, nos últimos anos, ficaram mais baratos. Além disso, esses produtos são criados pra serem altamente viciantes, fazendo com que seja “impossível comer um só”. Enquanto as corporações lucram com os ultraprocessados, nós pagamos a conta, com a nossa saúde e como sociedade que banca o SUS.
Além do aumento no consumo de ultraprocessados, a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), feita pelo IBGE, também mostra que o consumo de feijão, frutas e verduras diminuiu nos últimos anos, principalmente entre adolescentes, enquanto o consumo de aves e porcos aumentou. Pra se ter uma ideia do quanto o consumo de animais aumentou no Brasil nas últimas décadas, em 1981 o consumo anual de carne (vaca, frango e porco) era de 40kg por pessoa. Em 2021, esse número passou pra 99kg por pessoa (fonte: FAO). Isso fez a quantidade de fibras na nossa alimentação diminuir. Entenda: fibras só são encontradas nos alimentos vegetais e são essenciais na promoção da saúde, principalmente no caso de pessoas diabéticas, pois elas ajudam no controle da glicemia. Então quando o feijão some do prato, some também a principal fonte de fibra da alimentação das pessoas no Brasil.
Por um lado, o consumo de ultraprocessados está relacionado ao aumento da obesidade e de diversas doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e doenças gastrointestinais. Por outro lado, uma alimentação cada vez mais rica em carnes, principalmente carnes ultraprocessadas, como salsicha e mortadela, muito consumidas por pessoas de baixa renda, significa um consumo cada vez maior de gordura saturada, além de sódio e substâncias que aumentam o risco de câncer. E ingerir muita gordura saturada, como explicamos no primeiro texto dessa série, aumenta a resistência à insulina. Isso tudo combinado eleva bastante o risco das pessoas desenvolverem resistência à insulina e diabetes.
Mas quando comparamos as classes sociais, vemos que a questão econômica também reflete no conteúdo do prato.
Ainda de acordo com a POF, as classes de renda alta comem mais carne de boa qualidade, enquanto as classes de baixa renda comem mais frango, salsicha e mortadela. As classes de renda alta comem mais frutas e verduras do que as classes de baixa renda, chegando a uma média de consumo até oito ou dez vezes maior no caso de alguns alimentos dessa categoria. E embora as classes de renda alta ainda consumam mais ultraprocessados em geral, foi nas classes de baixa renda que o aumento foi maior nos últimos anos. O rico está comendo mais frutas e verduras, enquanto o pobre come cada vez mais biscoito recheado, salgadinho e salsicha. Isso mostra que os ricos se preocupam e estão se cuidando, já o pobre está ficando cada dia mais doente. Isso é ainda mais cruel quando lembramos que a desigualdade está presente nas duas pontas dessa equação. As classes de baixa renda se alimentam de uma maneira que aumenta o risco de desenvolver diabetes, e outras doenças crônicas não transmissíveis, e, ao mesmo tempo, são essas mesmas pessoas que são desassistidas enfrentando longas filas para terem acesso a tratamento quando adoecerem, por dependerem exclusivamente do SUS.
Existem fatores sociais que impedem as pessoas de terem uma alimentação saudável, como morar longe de feiras e não ter tempo pra cozinhar. Isso só se resolve com uma mudança na estrutura social e aproveitamos pra lembrar que alimentação saudável é um direito de todos e todas. Mas essa mudança também passa por informação e frequentemente é a falta dela, e não a falta de acesso ao alimento fresco, que faz as pessoas se alimentarem de uma maneira que prejudica a própria saúde.
E como seria uma alimentação que, ao contrário, fortalece a nossa saúde, a saúde da nossa comunidade e dos nossos territórios? Não precisa ir muito longe, nossa cultura alimentar ancestral pode nos servir de guia aqui. A comida que vem da terra, produzida sem veneno e sem exploração, fortalece o corpo e a luta. Aqui vão algumas dicas práticas pra te ajudar a prevenir o diabetes, e outras doenças crônicas não transmissíveis, e preservar a sua saúde, ao mesmo tempo em que nos conectam com nossas raízes e honram nossa alimentação ancestral.
1- Coma verduras e frutas em todas as refeições (Celebre a abundância que a natureza oferece e a diversidade alimentar dos nossos territórios!)
2- Coma feijão todos os dias (Ele dá sustância – é rico em proteína, enquanto protege a saúde – tem pouca gordura e é uma excelente fonte de fibras)
3- Elimine os ultraprocessados da sua vida (Uma recomendação do Guia Alimentar para a População Brasileira)
4- Se for consumir animais, deixe pra fazer em ocasiões especiais (Comer carne ou frango todo dia é um hábito recente na história da humanidade e estamos pagando caro as consequências dessa mudança)
5- Movimente o corpo todos os dias (Exercício físico – que pode ser uma caminhada pra visitar compas que vivem no nosso território- melhora o funcionamento do metabolismo e diminui a resistência à insulina)
Se você tem diabetes, procure tratamento médico, mas não deixe de seguir os conselhos acima. Achar que tudo vai se resolver apenas com remédio é tratar as consequências e ignorar as causas. E a gente sabe o que acontece quando varremos um problema pra debaixo do tapete, não é? Uma pessoa diabética que continua comendo o que favorece a doença, e não a saúde, está se auto-sabotando. E isso é tudo que a indústria farmacêutica quer, pra vender cada vez mais remédio, enquanto a população fica cada vez mais doente.
Gostaríamos de terminar essa conversa fazendo um chamado. Que nas nossas celebrações, festas, reuniões, encontros, a gente ofereça comida que promova a saúde. Comida produzida por guardiãs e guardiões dos territórios, ao invés de comida produzida por empresas capitalistas ecocidas. Celebremos com comida à base de milho, de mandioca, com feijão, com os frutos das nossas matas e das nossas palmeiras. Criar o hábito de associar festa e alegria com comida que nutre o corpo vai ser um passo importante no fortalecimento da resistência.
Lutar por festa e trabalho se torna difícil quando o pão está nos envenenando.
(Esse texto foi escrito de maneira colaborativa por uma cozinheira, uma nutricionista, uma dentista e um médico. Nós fazemos parte da UVA – União Vegana de Ativismo e nos interessamos por saúde coletiva.)
*O título, assim como a inspiração pra escrever essa série, vieram do livro do ativista e médico Eneko Landaburu “Cuidate, compa! Manual para la autogestion de la salud”.