Posted on: 4 de julho de 2025 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

O que segue são conversas com pessoas de povos de diferentes continentes, mas que fizeram uma escolha comum: viver sem energia. No Arquipélago da Indonésia ou na Amazônia brasileira, essas pessoas mostram que a energia elétrica está longe de ser um recurso essencial para a vida humana. Pelo contrário, para elas, a ausência dela que é essencial.

Publicado originalmente no Boletim 275 do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM): “Energia em debate” (https://wrm.org.uy/pt/)

Seja nas ilhas de Siberut e Roté, no Arquipélago da Indonésia, seja na aldeia indígena Ka’apor, na Amazônia brasileira, as pessoas com quem conversamos a seguir têm algo em comum: decidiram viver sem energia elétrica. Elas tem convicção de que a energia elétrica não faz parte da sua cultura. Mesmo com oceanos de distância, elas têm ainda mais em comum: seus territórios sofrem constantes ataques e ameaças de invasão e destruição. E aqui, vale o lembrete de que esses ataques quase sempre são feitos pela sociedade dominante capitalista, a mesma que lhes oferece a energia elétrica. Ainda assim, o foco das conversas não está nesse embate. Buscamos entender um pouco mais sobre a cosmovisão e o mundo daqueles que mostram que a energia elétrica está longe de ser um recurso essencial para a vida humana. Pelo contrário, para eles, a ausência dela que é essencial. Tal questão se relaciona inevitavelmente ao ciclo do dia: ao dia ensolarado e à noite absolutamente escura.

O Arquipélago Indonésio: histórias vindas das Ilhas Siberut e Roti

A seguir, trechos de conversas com habitantes do Arquipélago Indonésio. A conversa aqui transcrita envolveu duas pessoas: Lidia Sagulu e Loudya Messakh Lenggu. Cada uma delas contou sobre como é viver com um estilo de vida diferente do estilo “urbano industrial” predominante nas cidades. As histórias contadas são familiares para os habitantes das ilhas da região. Embora os avanços nos programas de eletricidade e a disponibilidade de geradores a querosene ou gasolina também tenham se disseminado por algumas dessas ilhas, a vida sem eletricidade não é coisa do passado para muitas mulheres e homens que as habitam, inclusive nas ilhas de Siberut e de Roti.

Lidia Sagulu, Loudya Messakh Lenggu e Itahu Ka’apor (Fotos: Heronimus Tatebburuk, Matheos Messakh e WRM)

Lidia Sagulu: Luz e escuridão nos ritmos diários da ilha

Lidia Sagulu (61) leva uma vida rural modesta com sua família na ilha de Siberut, na costa oeste de Sumatra, a maior entre as quatro grandes do Mentawai, um conjunto de 99 ilhas. Seu sobrenome, Sagulu, refere-se ao povo indígena de mesmo nome, proeminente na ilha e do qual ela faz parte.

Siberut pertence à zona climática de floresta tropical úmida e quente, com 4 mil milímetros de precipitação anual. A essência da ilha reside nas densas malhas fluviais que se entrelaçam à floresta densa em toda a sua extensão ocidental, além de palmeiras-sagu, florestas de nipa e manguezais.

Hendro Sangkoyo: Meinan (titia) Lidia, nós nos conhecemos há alguns anos, logo após o pôr do sol, perto do cais. A senhora me segurava enquanto pegava seu paluga (remo) em casa e, com um sorriso infantil e um brilho nos olhos, me deixou ali enquanto arrastava calmamente seu abak (canoa escavada em tronco de árvore) para o mar aberto. A única coisa que a senhora disse foi: “cari udang” (pegar camarão). Poderia me contar o que a noite e a escuridão significam para você?

Lidia Sagulu: Certo. É comum para nós, mulheres, andar de canoa à noite. A paisagem aquática é principalmente um lugar de mulheres. Na verdade, eu faço isso desde criança. Para mim, não tem nada de estranho. Quando estamos fazendo sagu (cortar o tronco da palmeira-sagu, preparar os cortes e colocar para flutuar na água, como uma jangada), às vezes ficamos a noite toda no rio, às vezes até por mais tempo. A captura de caranguejos também acontece à noite, nos manguezais. Durante o dia, fazemos várias coisas diferentes, e à noite, fazemos outras coisas.

HS: A sua visão certamente é aguçada, para conseguir se movimentar pela paisagem aquática no escuro, na sua idade. A senhora se sente confortável sendo ativa no escuro ou é porque está acostumada ao desconforto de fazer coisas à noite, sem muita iluminação?

LS: Eu me sinto bem (na escuridão). Eu não tenho medo do escuro… Eu não tenho medo de nada no escuro.

HS: Ir à sua casa pela primeira vez à noite também me impressionou. A sua casa não está conectada à eletricidade, embora não seja muito difícil fazer isso. Certamente não é por falta de recursos. A eletricidade também chegou à kampong (aldeia). A senhora pode me dizer por quê?

LS: Desde muito mais jovem, nós nos sentimos bem com o que temos. A noite é quando temos a escuridão. Assim como temos a luz do sol pela manhã. Não estamos sozinhas nisso. É comum.

HS: É claro que ainda é preciso ter alguma forma de iluminação durante a noite, em casa ou ao ar livre. Que tipo de fonte de luz a senhora usa?

LS: O mais simples é chamado bubukèt. É um pedaço de madeira desgastada pelo tempo ou um galho de árvore. Você pode encontrar isso em praticamente qualquer lugar por aqui. Com um bubukèt aceso, podemos caminhar à noite ou andar de canoa facilmente. Às vezes, usamos surak, que é a parte externa do coco com a casca intacta, amarrada com corda e acesa. O óleo de coco que fazemos em casa também é bom para lanternas. Nós chamamos de pakalé. A lista é maior, na verdade.

(Observação: a conversa com Lidia Sagulu foi mediada por seu filho Heronimus Tatebburuk. Agradecemos por sua ajuda).

Loudya Messakh Lenggu, oma (vovó em malaio antigo): sobre Kusambi, Nitas e Querosene

Lodya Messakh Lenggu (77), tem mestrado e é filha do chefe da nusak (administração territorial) de Landu. Na infância, ela costumava viajar de balsa entre a ilha Roti e a cidade de Kupang, na ponta noroeste da ilha de Timor, que abriga uma população considerável da diáspora rotinense.

A ilha Roti compartilha o clima de savana tropical com o restante das ilhas Sunda Menores. Ainda assim, 19 mil hectares, ou cerca de 16% da área terrestre de Roti, são cobertos por florestas, incluindo 1.900 hectares de manguezais. A kosambi (Schleichera oleosa) e a nita (Sterculia foetida), duas espécies de árvores importantes na ilha, além da palmeira-de-açúcar, têm sido a principal fonte de energia, além de diversos outros usos.

HS: Oma, a senhora poderia me falar sobre o uso de nita e kosambi na família?

Loudya Messakh Lenggu: Bom, nós usamos o chamado bandu, que é basicamente uma lanterna. Parte do bandu é um recipiente de latão com furos na parte superior para conectar os bastões de iluminação. (Observação: em outra conversa com Petson Hangge, um ancião rotinense, ele contou que as pessoas usam vários tipos de bandu improvisados em casa). Usamos tanto nita quanto kosambi. No caso da kosambi, nós descascamos as sementes e moemos até formar um pó grosso. Espalhamos o pó gorduroso em algodão fiado ou em um saco de arroz usado e depois enrolamos em um pedaço de madeira. É mais fácil com a nita. Não precisamos triturar as sementes. Basta cravar em espetos de madeira e acender.

HS: Vocês usam o bandu apenas em casa ou também em reuniões, por exemplo?

LML: Nós usamos em casa. Quando chegam convidados importantes, nós acendemos mais bandus. Só que em reuniões grandes, às vezes, as pessoas também usavam o que chamávamos de “petromax”, que funciona com querosene. O bandu é melhor porque não produz fuligem. Quando você usa a luminária de querosene, seu nariz fica cheio de fuligem pela manhã. Com kosambi e nita, não temos esse problema.

HS: Mas pelo que está dizendo, o bandu é “cultural”. Eu tinha a impressão de que o uso da iluminação por bandu era associado apenas a gente de baixa renda ou mais velha, e as pessoas só usariam esse tipo de luminária quando estivessem em situação econômica difícil.

LML: Não, não é bem assim. Oyang (o pai dela, que era o “Rajah” ou chefe da nusak de Landu) usava [bandu] o tempo todo. Quando eu fui para a escola em Kupang, ele sempre me mandava uma lata grande de sementes de kosambi.

(Observação: a conversa com a oma Loudya Messakh Lenggu foi mediada por seu filho Matheos Messakh. Agradecemos sua ajuda).

Amazônia brasileira: uma história do Território Indígena Alto Turiaçu

A conversa a seguir foi realizada com a liderança indígena Itahu, do povo Ka’apor. Ele é um guerreiro da organização ancestral Tuxa Ta Pame, do Território Indígena Alto Turiaçu, na Amazônia brasileira. A atuação dessa organização tem sido fundamental para cuidar bem desse enorme terriório de 531 mil hectares de floresta. A guarda de autodefesa dos Tuxa Ta Pame expulsa constantemente madeireiros e garimpeiros de ouro que invadem essa terra indígena. Graças a essa atuação, essa área é o último reduto de floresta amazônica na região em que se encontra. A fronteira do território, com abundantes matas, e o que está fora, devastação absoluta, deixa evidente a importância da atuação do povo de Itahu na defesa da floresta e de sua cultura. Mas a devastação da floresta não é a única ameaça que a cultura Ka’apor sofre. A seguir, Itahu conta como a eletricidade pode ser nociva para a cultura do seu povo e como é importante ficar longe dela.

Itahu Ka’apor: ‘o que passou na nossa peneira é coisa boa’

WRM: Qual a importância de não ter luz à noite para o povo Ka’apor?

Itahu Ka’apor: Gostaria de explicar pra você a questão do território à noite. A gente precisa do escuro e precisa ter escuro para os animais também, porque os animais ficam andando à noite. Não precisa clarear, não precisa ter luz, não precisa. Então é muito importante para nós o escuro e também para os encantados, para o mundo espiritual, como acontece com os pajés. O pajé precisa cantar, puxar o mundo espiritual, para cura, e precisa ter escuro, não ser claro. É importante para nós à noite, poder descansar, dormir, não ter claro, não ter barulho. Essa é a importância do escuro para nós, o povo Ka’apor.

WRM: Por isso que o povo Ka’apor do Tuxa Ta Pame decidiu que não quer energia elétrica?

IK: A energia elétrica impacta e prejudica muito a vida das pessoas. Porque a vida do povo indígena Ka’apor não é adaptada à energia elétrica, não é nosso costume. Porque não é o costume da nossa cultura, a energia elétrica não faz parte da vida do povo indígena Ka’apor. Então a energia traz muitos problemas para a comunidade. A energia elétrica é igual ao dinheiro, a gente não sabe usar, não é da nossa cultura.

WRM: Como a energia elétrica impacta a cultura do povo Ka’apor?

IK: A gente sabe que a energia elétrica traz problemas, porque a gente já passou por essa experiência. Eu morei na aldeia Ka’apor de Ximborenda, lá tem energia elétrica há mais de 10 anos. Eu nasci lá e morei lá. Saí de lá há mais de 2 anos porque essa energia elétrica trouxe muito prejuízo para comunidade: tanta luz, tanto som, tanto alcoolismo, trouxe muitos problemas para nós. Então não é bom para a comunidade.

WRM: Muitos povos indígenas no Brasil são impactados pela construção de Usinas Hidrelétrica para gerar o que chamam de ‘energia limpa’. O povo Ka’apor foi bastante ativo para barrar a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no estado do Pará, por conta dos impactos desse projeto em diversos territórios. Os impactos que a produção de energia provocam também influenciaram na decisão de vocês de rejeitar a energia elétrica?

IK: O nosso pensamento é esse: não precisamos ter energia elétrica. A energia elétrica e seus empreendimentos trazem muitos problemas para os territórios, então esse tipo de energia elétrica a gente não quer. As hidrelétricas impactam os territórios, os ribeirinhos, os quilombolas, os indígenas. A gente se mobilizou para parar a empresa e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, mas, mesmo assim, o governo avançou com esse projeto. É energia suja, na verdade. A energia limpa para nós é a que não causa impacto.

WRM: Uma vez você disse que peneiravam da cultura dos brancos apenas o que era importante para fortalecer o povo Ka’apor. Algum tipo de energia passou nessa peneira?

IK: A gente usa um pouco de energia solar, com uma placa solar que temos. A gente usa essa energia solar para carregar um pouco de bateria, para usar um pouco de internet, carregar celular. Mas não usamos muito não, só ligamos durante poucas horas do dia. Celular e internet a gente usa para comunicação, para saber notícia, para passar informação do território. A gente tem que peneirar o que é bom e o que é ruim da cultura dos brancos. O que passou na nossa peneira é coisa boa. Nesse sentido, o celular a gente está usando, mas com muito cuidado, porque onde eu morava antes a energia e o celular tomaram conta de tudo. Não tem acordo de convivência, não tem mais nada lá. Por isso saí de lá para outra aldeia que não tem energia.

Conversas realizadas pela Secretariado Internacional do WRM, no Brasil, e por Hendro Sangkoyo, na Indonésia.

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