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Por Mariana Cruz.
No raiar de outubro de um ano difícil, o sol forte não impediu o encontro, o trabalho e a reflexão. Dezenas de camponeses e camponesas de assentamentos e acampamentos do MST reuniram-se para a I Pré-Jornada de Agroecologia no Paulo Jackson, uma das 7 áreas de Reforma Agrária que compõem a Brigada Ojefferson, na microrregião cacaueira da Bahia. Este foi um momento de consolidar a aliança entre a Brigada e a Teia dos Povos. Sob os pés, três tarefas comuns para a revolução: a conquista da terra, a construção do território e a soberania alimentar. No horizonte, a possibilidade de não apenas escapar da miséria do fim do mundo, mas o de reconstruir um outro com fartura, com dignidade, com esperança e com bastante amor. Nesse texto, registramos um pouco da riqueza do encontro.
Compreender a dificuldade para enfrentá-la
Uma parte do dia foi dedicada a estudar a conjuntura atual, sempre em contraste com o que ocorreu no passado. Para Crislane Santos de Jesus, dirigente estadual do MST e assentada no Paulo Jackson, “é importante compreender a dificuldade para enfrentá-la; importante saber o que coube aos povos e à terra nesse sistema para desafiá-lo”.
Neste pedaço de mundo, a produção intensiva de cacau encheu os bolsos de uns poucos latifundiários por quase todo o século XX. Para se ter uma ideia, a exportação do fruto contabilizava cerca de 60% do PIB do Estado na década de 1970, sendo o município de Ibirapitanga, onde está localizado o Assentamento Paulo Jackson, um dos 10 maiores centros de produção no Estado. O que se propagandeia como sucesso, no entanto, foi sustentado por um enorme conjunto de injustiças. As fazendas de cacau da região subsistiam graças à exploração da natureza e de trabalhadores.
Ali, todo o manejo da lavoura – desde o plantio até a colheita – foi realizado por pessoas submetidas a situações degradantes de trabalho, muitas delas sem acesso sequer a salários. Aos “contratistas”, por exemplo, cabia abrir a mata atlântica e plantar pés de cacau. Em troca, não recebiam salários, apenas a promessa de que, findo o “Contrato”, receberiam pelas benfeitorias realizadas. Não é preciso dizer que esta “negociação direta” terminava no descumprimento do compromisso por parte do fazendeiro – quando não em ameaça e perseguição se o trabalhador ousasse exigir seu direito. Situações como essa repercutem na atualidade, de diferentes formas. Ainda hoje, tem-se notícias de trabalho análogo à escravidão em fazendas da região, por exemplo.
Além disso, a necessidade sempre constante de ampliação dos lucros fez com que os fazendeiros intensificassem as lavouras, à despeito dos efeitos ecológicos que essa política poderia causar. Especialmente dos anos 1970 em diante, a mata atlântica que oferecia sombra aos pés de cacau passou a ser simplesmente devastada, para aumentar o número de cacaueiros por hectare, ou foi substituída por espécies sombreadoras exóticas como as do gênero Eritrina, por exemplo. As pragas vassoura de bruxa e podridão parda vieram cobrar a conta: há pelo menos 30 anos, a recuperação da mata e do solo estão na pauta do dia para aqueles e aquelas que habitam a região.
Para completar o cenário, é ainda importante chamar atenção para um último ponto: a questão da propriedade da terra. Diferente de outras regiões do Brasil, o tamanho de cada fazenda de cacau não chega a contabilizar a casa dos mil hectares. Isto não abalou, no entanto, a pungente desigualdade no acesso a terra. Muitos dos proprietários são donos de vários imóveis na região. Este é o caso da fazenda Canta Galo – hoje assentamento Paulo Jackson. Seu antigo proprietário, o ex-banqueiro Ângelo Calmon de Sá, ostenta 15 propriedades rurais apenas no estado da Bahia. Ademais, muitas das terras em que o cacau “prosperou” são fruto de transações duvidáveis, para dizer o mínimo. As cercas que demarcam os limites de várias dessas fazendas carregam em sua história o roubo de pequenas propriedades familiares e a expulsão de povos indígenas de seus territórios tradicionais.
Este, definitivamente, não é um retrato da abundância que indígenas, quilombolas e camponeses sabem manejar. Há cerca de 20 anos, o destino daquele território se alterou radicalmente: a ocupação empreendida pelo MST rompeu as cercas da fazenda Canta Galo – como fez reiteradas vezes na região cacaueira. Homens, mulheres, jovens e velhos se juntaram para reagir à destruição e à opressão perpetrada pelo agronegócio, sonhando em construir fartura e liberdade num pedaço de chão. “A revolução é feita com coisas simples”, Mestre Joelson Ferreira, da Teia dos Povos, não se cansa de repetir. Mas foi ele também quem lembrou, citando Neto Onirê, coordenador da Brigada Ojefferson, que a luta começa com a disputa por terras:
“É como diz Neto, ‘não tinha tatu com dois rabo que nós num rancava um’. Só deixava com um mesmo, porque a natureza deixou os tatus só com um rabo. Os “tatus” que a gente falava naquela época eram os latifundiários que vinham enfrentar a gente. Então, agora é a hora que tem uma onça brava e nós temos que se organizar como catitu pra vencer a onça. E se a gente não enfrentar esse momento agora pode ser o último momento da humanidade na terra. Se nós não enfrentarmos o imperialismo, se nós não enfrentarmos o capitalismo e se nós não enfrentarmos este governo que tá aí, provavelmente nós não teremos muito tempo aqui na terra”.
Aliança preta, indígena e popular
O que foi feito nos últimos 30 anos para garantir um acesso à terra minimamente democrático precisa agora ser aprofundado. Depois de retomar terras, foi preciso reconstruir um modo outro de habitá-la; um em que a liberdade humana e a da terra se encontrem. Na análise de Crislane, uma vez compreendido o cenário, é possível perceber as semelhanças entre comunidades muitas vezes pensadas em separado:
“Os primeiros sem terra foram os negros. Se a gente for observar os nossos territórios, somos sim quilombos. Nossos territórios são verdadeiros quilombos. De fato e de resistência”.
Os quilombos são uma das faces concretas da insubmissão ao poder racista e colonialista do Estado; são territórios da construção de vida plena, autônoma e livre. Do mesmo modo, são as 7 áreas da Brigada Ojefferson, em que pessoas e terras se aliam para enfrentar as sanhas do latifúndio, do Estado racista, do capitalismo. Naquele dia de outubro, as pessoas ali reunidas não estavam diante de promessas vazias como as que fazem candidatos a cargos na prefeitura ou na câmara dos vereados, típicas de meses como este. Diante delas, a possibilidade de construir, com as próprias mãos, a autonomia e a soberania alimentar:
“Nossas foices nunca respeitaram as cercas que nos impediram de ter acesso a comida e a terra, essa é uma aliança preta, indígena e popular. Queremos liberdade e por isso plantamos comida”, afirmou Neto Onirê.
As palavras de Joelson, Neto e Crislane não são metáforas. No sistema capitalista, coube aos povos e à terra terem suas riquezas expropriadas. A crise sanitária, econômica e ecológica que emerge como efeito desse sistema nos levará ao colapso e ao genocídio. Portanto, cabe à aliança preta, indígena e popular retomar, de fato, a possibilidade de construir um outro presente e um outro futuro, “antes que o mundo se acabe”. Assim Joelson reafirmou o propósito do diálogo proposto ali:
“Nós estamos construindo a Teia dos Povos, não é um movimento. É pra somar com o MST, é pra somar com os quilombolas, é pra somar com os camponeses, é pra somar com todo povo, é pra somar com o povo da periferia, com o povo do Reaja ou Será Morto, que é povo preto que tá lá nas periferias de Salvador, nas periferias do Rio de Janeiro, nas periferias de São Paulo, de tudo quanto é lugar, sendo assassinado pela polícia.”
Semente boa
Construir a confluência entre povos, territórios e demandas não é uma tarefa para as palavras e a denúncia apenas. A aliança se tece concretamente, na medida em que promove uma liberdade com lastro concreto. A capacidade de produzir abundância é o que permitirá a verdadeira independência. Com a mesa farta, não é necessário submeter-se àqueles que, em troca do pão de cada dia, exigem votos e subserviência a um projeto político que não beneficia os povos e seus territórios. Com roças diversas e abundantes, todos os seres viventes se fartam: pessoas, animais e a própria terra. É possível, inclusive, tecer a verdadeira solidariedade e auto defesa. Exemplo disto são as toneladas de alimento doadas por camponeses da Brigada Ojerffesson, do Acampamento Carlos Marighella (Ipiaú-BA), para o povo preto das periferias de Salvador, durante a pandemia de covid-19.
Por isso, às falas e análises realizadas na I Pré-Jornada, juntaram-se as sementes e as mudas. Foram 650 mudas de cacau, 500 de açaí, além de sementes crioulas de Arroz, Milho, Feijão, Feijão de corda e Abóbora – todas cultivadas e reproduzidas em territórios da Teia dos Povos. Cada uma das 7 áreas de reforma agrária presentes escolheu duas pessoas que serão guardiãs das sementes. Nelma, do Assentamento Mariana, no município de Camamu, comemora: “é um momento ímpar para nós. Resgatar as sementes crioulas é um passo muito importante, visto que está difícil produzir com sementes boas”. Ela terá a tarefa de plantá-las e zelar os cultivos de modo que multipliquem com segurança e, assim, distribuir para toda a comunidade.
A I Pré-Jornada da Brigada Ojefferson é apenas um momento entre os muitos que tecem uma larga, ampla e histórica aliança – uma em que catitus já não são mera comida de onça. Entre suas armas, está a exata capacidade de produzir alimento. Assim, a conquista da soberania alimentar é a pedra fundamental da revolução – uma que se realiza coletivamente e no tempo quente e úmido do ventre da terra.
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