Trabalho no governo do Estado, no ITERJ (Instituto de Terras e Cartografia do RJ). Presto assistência técnica agrícola às Comunidades de Assentamentos Rurais e Quilombolas da Região dos Lagos, desde 2012. Inicialmente com duas comunidades de Cabo Frio, depois com as de Araruama e Armação dos Búzios.
Comecei a ter uma relação com a fotografia em 2000, e ela acabou se tornando um instrumento para mostrar e registrar a luta pela terra e a peleja do trabalhador rural.
Os laços que estreitei com essas comunidades e trabalhadores estavam sempre afinados com seu dia a dia, não só registrando o trabalho, mas também, casamento, festas e cotidiano.
Em 2010 conheci a Comunidade Quilombola de São José da Serra, na Festa de Jongo, em homenagem ao Preto Velho. E em 2011 tive contato com a Comunidade Quilombola de Preto Forro, em Cabo Frio, durante o processo de regularização fundiária feita pelo governo do Estado.
Comecei a prestar assistência técnica, sem qualquer perspectiva de fazer projeto de exposição fotográfica, não era minha intenção. Essa proposta se construiu posteriormente, as relações de trabalho e amizade vieram antes. Fotografias espontâneas, sem pretensão de obter registros organizados, mas tomadas no dia a dia de peleja.
Foi através do contato com mais algumas comunidades e a parceria com o Mart Ibram de Cabo Frio, na feira de agroecologia do museu, da qual algumas comunidades Quilombolas participavam, que começou a nascer a semente da exposição “Terra de Quilombo, Retrato de uma Etnia”.
Na verdade a exposição foi uma parceria com as comunidades quilombolas, que eram e são o retrato principal dessa exposição fotográfica.
O entendimento do Mart Ibram (Maria Fernanda e Cristina Miranda) sobre o objetivo central da exposição foi primordial. Assim como a colaboração da antropóloga Rachel de Las Casas, a curadoria do fotógrafo Wander Rocha e a força de outros fotógrafos de Cabo Frio (Claudio Godoy e Luciano Barbosa), que entendem o quanto a fotografia é uma arma carregada de resgate da dignidade e luta contra o racismo estrutural da nossa sociedade.
Foi igualmente importante a colaboração do ITERJ e amigos da instituição, que também acreditam na luta por dias melhores para as comunidades tradicionais.
A questão da luta territorial em todas em comunidades ainda é um grande entrave. Existe todo um processo para regularização fundiária, que envolve estudos para identificação territorial e uma luta jurídica para reintegração do mesmo. Direito esse garantido constitucionalmente, e normatizado pelo Decreto 4887, mas o qual pode levar tempo.
Nessas comunidades há uma coisa que me incomoda muito. Entrar nessas comunidades, fotografar, extrair, levar para fora e não dar retorno à comunidade. Nem sequer devolver a foto.
A minha contribuição é essa, além do meu trabalho como técnico e além da exposição. Eu faço casamento, festas. Eu me empenho também pra ajudar.
Mas não só nas Comunidades Quilombolas, também as indígenas, caiçaras, são esquecidas pelo poder público como também pela sociedade.
Por exemplo, no caso de algumas universidades que já me pediram para levar pesquisadores à comunidade. Os caras fazem a pesquisa, pegam o que querem, vão embora, não retornam, nem o trabalho retorna. Já vi vários casos assim.
Isso criou muita mágoa nas comunidades, muita desconfiança. Eles já foram muito enganados e são muito enganados.
– Araruama: Sobara, com seu grupo de batuque, e Prodígio;
– Cabo Frio: remanescentes do Quilombo de Preto Forro, Fazenda Espírito Santo, Maria Romana, Botafogo e Maria Joaquina;
– Armação dos Búzios: Rasa e Baía Formosa.
Hoje, em tempos de pandemia, as Comunidades Quilombolas, assim como outras populações, estão passando por dificuldades.
A dificuldade para acessar as políticas públicas, os direitos básicos da população e os poucos e escassos programas do governo atual.
Acabam se deparando também com outros problemas, como o racismo estrutural e muita dificuldade de condições básicas, infraestrutura.
Dificuldades que na verdade sempre existiram. E agora ganham mais visibilidade, por conta da tragédia da COVID.
Minha irmã, meu cunhado e um sobrinho, de oito anos, pegaram a COVID. Eu peguei também. E minha mãe. Ela morreu.
Algo que questiono é a questão do preconceito, além do negacionismo. Muita gente anda sem máscara.
Eu andava o tempo todo com meu exame no bolso, no período em que estive contaminado. Precisei ir na rua comprar remédio. E me depararei com um grupo sem máscaras. Então pedi que lessem meu exame. Eles deram um pulo para trás.
Eu falava: “- Meu irmão, você tá com medo de quê, cara? Você, você tá sem máscara É uma gripezinha, cara”.
Existe também o preconceito, a questão de não assumir que perdeu um parente ou que teve COVID.
Vejo várias postagens de amigos no Facebook. Pais, filhos, mãe faleceram. Em alguns casos, tenho certeza que foi COVID. Ninguém fala.
Eu fiz questão. Botei a foto da minha mãe e escrevi: “Minha mãe morreu de COVID”. É mais uma vítima dessa situação toda que a gente tá vivendo. Mais uma vítima do descaso. Mais uma vítima da sociedade negacionista.
Ela poderia não ter tido o COVID. Poderia ter morrido dos problemas de saúde que ela tinha. Ela tinha Alzheimer. Mas estava bem, às vezes esquecia algumas coisas. Acho que ela viveria mais uns cinco anos, ao menos.
Estive no Rio esses dias. É um absurdo! Fui levar o carro do Estado para trocar o óleo. Eu voltei correndo, voltei correndo. Já tinham me alertado disso: “- Você vai vir e vai voltar correndo, porque você vai ver só…”.
Eu voltei correndo, meus amigos.
Nem fui visitar meu filho. Daqui a pouco vai fazer um ano que não vejo meu filho. Depois da morte de minha mãe, já não vejo meu pai há uns quatro meses.
Nosso povo, o povão mesmo, está sendo exterminado.
A pandemia mostrou um lado muito ruim da sociedade. O egoísmo, a falta de empatia. Mas também teve muitos casos de solidariedade. De pessoas que ficaram na linha de frente, de muitas pessoas que ajudaram as outras.
Ricardo Alvez
fotógrafo, funcionário público prestador de assistência técnica agrícola a Assentamentos Rurais e Comunidades Quilombolas na Região dos Lagos do Rio de Janeiro (RJ)
sobre os Diários da Pandemia:
- Embora seja tb um trabalho jornalístico, se propõe a muito além disto.
- Tem como objetivo principal tecer uma rede de comunicação entre as diversas lutas localizadas.
- De modo a circular as experiências, para serem reciprocamente conhecidas numa retro-alimentação de auto-fortalecimento.
- Não se trata de tão somente produzir matérias, e sim tornar as matérias instrumento para divulgar conteúdo capaz de impulsionar os movimentos.
- Em suma: colocar a comunicação a serviço das lutas concretas.