Posted on: 17 de fevereiro de 2021 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Vou pedir licença à ancestralidade por esta oportunidade de estar com vocês. Saudar os participantes, todos lutadores e lutadoras por um mundo melhor. Salve a ­Teia dos Povos e o MSTB.

Estamos vivendo tempos difíceis. As coisas para nós é dessa maneira. A gente sempre teve tempo difícil.

Digo sempre que ficamos o tempo todo dormindo e acordando em luta que nunca acaba. O poder público se ausentou completamente das nossas vidas. Estamos em pandemia, mas não deixamos de lutar.

A luta por moradia

Consideramos sem-teto a pessoa que mora de aluguel, em situação de rua ou que não tem um salário para cobrir a compra ou o aluguel de um espaço para morar.

E na ausência do Estado, a gente vem abarcando esse vazio. Temos várias ocupações em Salvador, tanto na área do centro, em prédios, como em terrenos. Nossa prioridade são os terrenos, para que nós mesmos construamos nossas casas.

No interior temos também algumas ocupações e outras que damos assistência.

Quando vai acontecer uma ocupação, na lista das pessoas que estão indo para lá tem nomes de homens e mulheres. Mas quando ocupamos, a grande parte dos que chegam são mulheres.

E elas mesmas cavam o buraco, limpam a terra, fazem o trabalho. A força maior no começo de tudo, sempre somos nós mulheres que estamos na frente.

Por este ponto, quando vamos dar um nome para a ocupação pensamos sempre num nome para relacionar com a luta das mulheres. Sempre colocamos: “Guerreira Dandara”, “Guerreira Maria Felipa”, “Marielle Franco”, “Zeferina”…

Nas ocupações nós mulheres gerenciamos o trabalho em todos os sentidos. Desde a construção dos barracos, a manutenção dos espaços, providenciar alimentação. É a cozinha comunitária. Estamos em todas as frentes.

Quando tem reintegração de posse, a gente vai para as ruas, organiza o ônibus, a gente faz tudo isto.

Observamos que anteriormente grande parte dos que apareciam na esfera de coordenação eram os homens. Hoje em dia mudou muito. Começamos a trabalhar melhor essa questão. É uma questão patriarcal, hierárquica do machismo, que está arraigado nas pessoas.

Dentro das ocupações formamos um grupo de mulheres, as Guerreiras sem Teto, e a partir daí foi tendo reuniões, conversas e seminários. Hoje grande parte das mulheres são coordenadoras.

Também temos um trabalho na horizontalidade e na autonomia.

Eu mesma sou mulher, preta, mãe de família solo. A mulher tem que estar onde ela quiser.

Perversamente o projeto “Minha Casa, Minha Vida” foi muito distante de nossos territórios. Brigamos muito para que fosse tudo perto. Colocaram as pessoas em outras cidades.

Nós nos separamos. Tínhamos uma ocupação com muitas pessoas, tínhamos já um vínculo afetivo, familiares moram próximo. E perdemos muito isto. E isto enfraquece a luta. É muito complicado você morar distante, e ter que pagar um transporte para ir na reunião no final de semana. A vida passou a ser outra.

Brigamos muito para quando o “Minha Casa, Minha Vida” chegasse fosse algo voltado para o reconhecimento do território. Fizeram os estudos junto com a gente, mas na hora H falharam conosco. Como sempre falham.

Colocaram as pessoas longe da escola, longe de equipamento público, longe de tudo.

Pessoas de nosso movimento fizeram manifestação, a polícia veio, foi aquela agonia toda. Tiveram reunião com os órgãos públicos. E conseguiram coisas necessárias: uma creche, ônibus escolar para para mandar as crianças para escolas que são bastante distantes.

Até para comprar um pão ficou impossível. As pessoas tiveram que fazer suas barraquinhas para vender alguma coisa. Num instante já vieram: “Não pode! Vocês não estão mais morando em barracos. Agora moram em condomínio.”

A casa com as paredes por si só não satisfaz. Muitos trabalhavam com reciclagem. Foi um sofrimento muito grande. Muitos desistiram. Não dá para sobreviver num local deserto, sem nada no entorno.

Costumamos dizer que ficamos na periferia e de manhã saímos para o centro da cidade num ônibus lotado, que chamamos de navio negreiro. Prá gente a escravidão não acabou. as pessoas vão pela manhã e votam extremamente cansadas, sugadas.

E não temos muito lucro em cima disto. O bom, o capital fica com eles lá. Nós ficamos com o cansaço.

Nossas ocupações pontuam toda a cidade de Salvador. Tem na área do subúrbio, na periferia. No centro histórico há umas 10 ocupações. E também em outras regiões. A gente sai por aí tudo.

O trem do subúrbio

Neste momento em Salvador estamos em luta pela manutenção do trem. O trem tem mais de 60 anos e é o transporte que favorece o povo do subúrbio ferroviário. Mais de 600 mil pessoas moram nesta área.

Foi feito um projeto do governo para fazer esta retirada. Não chamaram as pessoas para conversar. É assim que funciona aqui. É aquela coisa colocada goela abaixo.

Chegaram nas casas, marcaram com uma tinta, como se fosse gado. E deixaram lá um número, para ser desativada aquela casa.

Mas isto há um ano atrás, e não voltaram mais. E antes de ontem, o pessoal foi surpreendido com tapumes, já para iniciar as obras.

Numa obra ali vai haver máquinas. E as máquinas vão trepidar. Se a casa dele é muito próxima do trem, vai começar a haver rachaduras.

As pessoas estão preocupadas de saírem dali, que é perto de local de comprar peixe, que o mar é perto. Dá prá ir andando até o centro da cidade.

Fomos visitar ontem a estação do trem. Dá uma tristeza imensa. Eu mesmo sou filha de ferroviário. Meu pai era um conservador de linha

A passagem custa R$ 0,50, e a partir de agora vão pagar R$ 4,20 pelo transporte. Em plena pandemia desestabilizando as pessoas. Sem o auxílio emergencial. A gente vê que a fome está chegando mais ainda na casa das pessoas.

Como será a vida dessas pessoas que dependem exclusivamente do trem?

Na minha concepção, e muita gente concorda, existe um pacto de destruição da população pobre, negra e de periferia.

Eles vem com pessoas de fora, do estrangeiro, porque eles são chineses.

Está passando uma propaganda na televisão que vão dar 2.250 empregos. Mas abriram para a cidade inteira e mandaram fazer on-line o cadastro.

Se no benefício social foi uma dificuldade, as nossas companheiras tiveram que pegar o próprio celular para orientar e ajudar as pessoas.

O pedreiro às vezes não sabe ler direito, não tem celular. E quem tem já adiantou. Tinham prometido à muitas pessoas lá que iam dar emprego. Quando é agora de última hora, espalha para a cidade inteira.

As pessoas se sentiram traídas. E caíram na real. Está a maior confusão com relação a isto. Nem chegou a começar a obra. E já está tendo disputa. As pessoas estão sentindo que vão tomar 1×0.

O Secretário do Desenvolvimento Urbano foi perguntado sobre a questão social. Quando tem uma obra tem que vir um dinheiro para as pessoas não sentirem tanto o impacto. Ele simplesmente disse que com o atraso, por conta da pandemia, o dinheiro defasou.

Que não tem dinheiro pro social, não.

Privatização dos parques públicos estaduais

Nós temos já três parques que já estão indicados para privatização. Um é o Jardim Zoológico, outro é o Parque do Açu e o Parque S. Bartolomeu, este fica no subúrbio ferroviário na mesma área que está sendo retirado o trem.

O Parque S. Bartolomeu é um espaço onde muita gente vai comer fruta, tem muita jaca, muita manga, fazem trilhas. Tem anfiteatro, local para reunião. Uma área ainda bastante vasta da Mata Atlântica.

Uma parte desse espaço foi oferecido para a gente do MSTB para fazer um trabalho de reflorestamento, junto com nossos camaradas da Teia dos Povos.

E também o Parque de Sete Passagens na Chapada Diamantina e o Parque da Serra do Conduru, no sul da Bahia.

Costumamos dizer que estão vendendo o nosso país. Vendendo para a mineração, para o agronegócio do agro veneno.

Visitamos a cidade de Piatã e por lá já está o agronegócio destruindo toda uma vegetação, com risco de prejudicar nascentes, rios.

E sentimos a conivência do poder publico com isto.

As casas das pessoas na área do minério já estão rachando. Na área do Quilombo a poeira já está mesmo prejudicando as pessoas, questão pulmonar e tudo.

A senhora falou que ela lava roupa, coloca na corda. E quando começam lá o trabalho, se ela não correr e tirar, tem que relavar.

Políticas públicas

Com relação à política pública, ou federal, ou estadual ou municipal, eu particularmente, e também o grupo que faço parte, o MSTB, e a Teia dos Povos, nós chegamos a conclusão que dificilmente eles vão mudar de idéia em relação a gente. E pensar em algo para nós.

Não esperamos mais por nenhum desses governos que estão chegando por aí. Porque toda vez é promessa, promessa, e a gente não vai viver de promessa a vida toda. Cabe a gente tomar nossas decisões.

Como a gente faz no Movimento Sem Teto. A gente viu um espaço abandonado. A gente foi lá e metemos mão mesmo. Dividiu e cada um ficou com seu pedaço.

Quando a gente vê um prédio sem função social nenhuma a gente por obrigação de ir lá ocupar.

Vamos acreditar em quem, se é o Capital que está ditando o tempo todo.

Agora na pandemia disseram “Fica em casa! Fica em casa!”. Muito bem, vamos ficar em casa para nos preservar. O cara vende picolé, o cara tem que ir para a feira carregar um peso prá trazer o pão. o cara é ajudante de pedreiro. E aí, como ele vai ficar dentro de casa? Prá comer o quê?

Já viu o tamanho da casa do pobre? Uma casa pequenina com 5/6 filhos dentro. Uma zoada, uma agonia. Faltando as coisas. Então aí se desespera e vai prá rua mesmo.

Como a gente não vive só e temos sempre os nossos parceiros, colocamos o anúncio que estávamos precisando de apoio. E foi chegando cesta básica. E conseguimos manter um certo equilíbrio durante um bom período.

A vida da gente é lutar, além do trabalho no dia a dia.

Estamos vendo a nossa cidade tomada pelo Capital e por pessoas vindas do estrangeiro, que já chegam com todas as vantagens.

Sem contar com o pacto da morte da Segurança Pública. Uma violência tamanha nas comunidades. Corpos estendidos. Muitas mortes.

Morte de jovens.

Poderiam ter uma política de educação, esportes, encaminhamento para primeiro emprego. A gente vê lamentavelmente os jovens indo embora por conta da falta de cuidados que eles não tem com os nossos.

Tem também as coisas boas. Muita gente hoje mora em seus apartamentos por conta da luta que foi travada por muitos anos.

É a luta que muda a vida. Se não houver esta luta, o que vai ser da gente?

Temos que nos fortalecer, juntar com outras pessoas, ir para coletivos. Porque é nós por nós. Não vai ser de outro jeito.

Não vamos abaixar a cabeça para o sistema, porque não recebemos o que de fato temos direito. Porque quando “encerraram” a escravatura, no dia 14 ficamos por nossa conta.

Sem uma terra para plantar, no fundo e fechos de pastos nas fazendas, nas ruas debaixo de viadutos, morando em barracos insalubres, desempregados, sem perspectivas, com problemas de saúde mental.

Não tem outra perspectiva senão a gente tomando as rédeas desta situação. Minha vida inteira foi uma vida de luta. A vida da minha mãe, da minha avó, da minha bisavó.

Temos essa força ancestral dentro de nós.

Não podemos esmorecer e abaixar a cabeça para um sistema que quer nos aniquilar, nos colocar nesta anestesia. O povo muitas vezes parece anestesiado, perplexo diante de tanta perversidade.

Diante da pandemia muita gente ficou apavorada, porque morrer sem nem sequer ter um parente do lado. Enterrar sem poder abrir o caixão. Foi um pânico total.

Mas nem por isto a gente deixou de lutar. Sempre lutando. As dificuldades chegaram e a gente lá. Os filhos assassinados e a gente na luta. Com fome, mas vai à luta para adquirir alimento.

Milícias e o trabalho com a juventude

Os milicianos também estão ocupando terras. Quando a gente já está instalado numa ocupação, aí chegam.

Isto já aconteceu em duas ocupações nossas. Primeiro diziam-se donos. Agora na segunda vez, ameaçaram. Chegaram a atirar, prá cima, nas proximidades. Soltaram muitos fogos.

Diante dessa agressão chamamos os nossos parceiros. Aí chegou a polícia. Ainda estavam lá. E eram militar. Quando viram os colegas, correram.

Eles me ameaçaram pessoalmente. A mim e a companheira de luta, que estávamos lá. E a gente sabe do que são capazes. Olha a Marielle aí.

E na ameaça deixaram bem explícito: “Isso aqui pertence a gente grande. Não é só meu não. Aqui tem gente maior que eu”.

Já tinha sido pedido por nosso grupo jurídico segurança para a gente. Agora já vamos para as ocupações com outras preocupações.

Mas nunca deixamos de sofrer este tipo de ameaça. Quando não é por celular, é pessoalmente mesmo.

Uma vez prestamos queixa. E o Delegado disse que “Quem ocupa terras dos outros merece é um tiro na cara”.

Mas a gente ainda permanece lá nos dois terrenos. E o que observamos é que do lado, num terceiro terreno, já tem um condomínio. E não é “Minha Casa, Minha Vida” prá pobre não.

Então era isso que estavam tomando conta. Estavam engordando um terreno prá passar adiante. A intenção é esta.

Nossos parceiros advogados é que nos dão uma segurança e esse apoio em nossas necessidades. No mais a gente só tem os corpos da gente mesmo. Botar o corpo na frente como escudo.

Com relação a essas violências repetidas, eu faço parte das Mães de Maio.

E temos esse trabalho com um grupo de mulheres. A gente faz denúncias, seminários, orienta, conversa com as mães com necessidade de psicólogos. Eu mesma fui encaminhada para psicólogo, na época que ocorreu esses fatos com meus filhos.

Estamos fazendo curso de formação política com os jovens em nossas ocupações. Estamos também com o trabalho do Teatro do Oprimido.

Fazemos este trabalho com o teatro nas ocupações já há algum tempo. Rendeu muito e até o filho de Boal veio nos visitar. Fez oficinas. Veio também um africano do Senegal e fez um trabalho com a juventude.

A formação do teatro foi muito boa e ajudou muito. Permanece até hoje.

Volta à terra

E a gente agora quer correr atrás é de plantar para deixar de comer o veneno.

Muito câncer, muita doença que está chegando poderiam ter sido evitados, se temos uma alimentação saudável, um ar bacana, uma moradia que você possa deixar seus filhos brincando tranquilos, sem o braço perverso do Estado chegar atirando, matando crianças.

Nos quintais das ocupações as pessoas costumam plantar.

Numa das ocupações foi feita uma horta, que deu aipim, milho. Mas como no local vai se fazer um condomínio residencial, a galera foi tirada do espaço. E foi destruída toda essa plantação. Tinha abacate, cana, manga, quiabo, muita coisa. E o pessoal foi remanejado para um espaço bem menor, sem condição da gente plantar.

Estamos vendo como o alimento ficou caro. O óleo, o leite, o arroz, o feijão. Ficou extremamente caro.

Agora com a retirada do trem, porque lá tem um peixinho a preço módico que dá prá comprar, vai ficar totalmente impossível. Porque no trem eles permitem que os meninos entrem com aquela caixa de isopor com os peixes. E agora no ônibus mesmo que permitam, não vai poder entrar 5/6 com as caixas.

A coisa tá difícil. E infelizmente a tendência é piorar.

O melhor para a gente fazer é isto, voltar para a terra. Não houve um momento quanto a isto mais claro durante a nossa vida do que agora durante a pandemia.

Tanto que a gente observa quantas pessoas começaram a fazer suas hortas em casa. Até com suas garrafinhas pet com hortelã e coentro.

O caminho é este. Sempre pensamos isto dentro do movimento. A gente não ia querer apartamento por conta disto. Prá gente ter um quintal e plantar nossas coisas.

Não tem como não pensar neste momento em ter terra para plantar. Tem que fazer o retorno. Voltar.

Eu mesmo vim do interior. E grande parte dessa população que está aqui vivendo no inchaço, com dificuldades, veio de lá. Então está na hora de retornar. Porque quando a coisa ficar bem apertada, a pessoa já plantou.

Temos um amigo nosso que tem uns parentes no interior. E na pandemia quando fechou tudo, ele disse “Vou prá lá“.

Meteu mão. Plantou aipim. Plantou quiabo. Ele pensava que ia passar só uns dias por lá. Vai passar um mês e voltamos ao normal, e vai embora essa doença.

Só que ele foi ficando. A mulher estava gestante. Foi ficando, ficando e ficando. E nada da situação mudar, nada de mudar.

Em 6 meses ele já tinha um bocado de coisa prá comer.

Ele tomou uma alegria tão grande. Pôxa, ele não fala em outra coisa. Esta numa felicidade. Todo o tempo está dizendo que vai se organizar e ir prá lá de vez.

E não é porque está velho. É um jovem!

Não tem precisão de você passar necessidade numa cidade grande, se você tem um pedaço de terra lá, prá você plantar. Prá você comer alimento fresco na hora que você quiser.

O caminho é esse. A gente se unir e voltar prá ver onde tem terra.

Para receber nossa herança que ficou para trás e a gente não pegou. Os bisavôs e tataravôs não pegaram. E agora está na hora da gente pegar.

Então nós nos baseamos em Maria Felipa, em Dandara, em Acotirene, em Zumbi, no povo de Canudos, nas pessoas que não se rendem. Sempre estão erguendo a cabeça e seguindo em frente.

Mira Alves, coordenadora do MSTB e mestra da Teia dos Povos.

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