*Por Sebastian Henao | Foto: El Retorno
No final de março, o governo do presidente da Colômbia, Iván Duque, do partido Centro Democrático (mesmo do ex-presidente Álvaro Uribe Vélez), enviou ao Congresso a terceira reforma tributária de seu governo, argumentando que o orçamento público do país teria fluxo de caixa apenas até o final de maio. A proposta, segundo o governo, além de aliviar as finanças públicas nacionais, também buscaria o financiamento dos programas sociais de alívio econômico durante a pandemia. O problema: a Reforma propunha um aumento geral ao imposto ao consumo (IVA), tanto das alíquotas quanto no volume de bens a que se aplicaria o imposto – por exemplo nos combustíveis e produtos da cesta básica e também a retirada de subsídios a serviços como a luz elétrica para os lares de classe média e baixa. A proposta incluía também a taxação dos serviços funerários dentro do IVA de 19%. A esse pacote, soma-se, também, uma reforma do sistema de saúde, privatizando e restringindo ainda mais o já precário acesso ao serviço, fundamental em tempos de pandemia. Quem acabaria pagando pela má gestão da crise seria a população empobrecida, não a classe alta nem o governo.
Em meio à pandemia, a população colombiana, como em outros países e territórios, tem visto o aumento das vulnerabilidades sociais, a expansão de situações de pobreza e a pobreza extrema, desalojamentos, fome e doença. Em contrapartida, durante o ano de 2020 o setor financeiro e outras grandes empresas do país receberam incentivos e isenções fiscais, alcançando grandes lucros – ao mesmo tempo em que a situação da população fica mais precária. À população restou um “Ingresso Solidário” emergencial de 160.000 pesos mensais (aprox.. R$220, quase 17% do salário mínimo colombiano) para três milhões de famílias. Além disso, o gasto com as forças armadas só se expande dentro do orçamento nacional, inclusive com o anúncio de compra de 24 aviões de combate – usados em conflitos com outros países com iguais capacidades bélicas – pelo custo de US$ 4,5 bilhões.
Ao longo de 2020 e 2021, a violência no campo e nas cidades colombianas tem recrudescido. Já são mais de 125 massacres com centenas de vítimas e lideranças sociais assassinadas somente durante a pandemia. Também está em curso estratégia contínua por parte do governo Duque, envolvido em diversos casos de corrupção, de desmantelar o acordado em Havana: ataques à Justiça Especial para a Paz, reativação da fumigação com glifosato (em contravenção ao acordado sobre erradicação e substituição manual de cultivos ilícitos, beneficiando somente às industrias militares e dos agrotóxicos) e continuidade das forças armadas preparadas para o conflito. Nesse contexto, os grupos paramilitares e outras facções ligadas ao narcotráfico têm aproveitado para assediar, atacar e ocupar territórios de comunidades negras e indígenas.
Por estes e outros tantos motivos, indivíduos, coletivos, movimentos e organizações da sociedade civil convocaram uma Greve Nacional (Paro Nacional) no dia 28 de abril, com a bandeira da revogação do pacote de ajustes. Desde então, as marchas e protestos têm atraído multidões, com forte presença das juventudes e das classes populares do país, que não suportam mais o sufoco que a ação e a omissão do atual governo impõem à população. A eles se somaram os sindicatos e representantes de partidos de oposição, também em comemoração ao 1º de Maio, Dia Internacional do Trabalho. O povo colombiano, perante o dilema entre morrer de fome e esquecimento ou morrer de COVID-19, optou por vencer o medo e sair às ruas para reclamar sua dignidade.
O início das jornadas foi marcado pelo simbolismo da derrubada da estátua de Sebastián de Belalcazar pelo povo Misak, um cruel colonizador e genocida a quem se atribui a fundação da cidade de Cáli, condenado a morte pelo próprio Império Espanhol pelos maus-tratos às populações nativas naquela época. Isto foi seguido por bloqueios nas principais rodovias que comunicam as regiões de forte economia agrícola com o centro do país. As organizações indígenas do país têm organizado caravanas a partir seus territórios até as cidades para se unirem às demonstrações, declarando “Minga hacia afuera” (trabalhos coletivos para fora). Um tribunal em Bogotá decretou a ilegalidade dos protestos e tentou impedir as marchas, o que não foi acatado pela população – logo o decreto foi derrubado. Na noite da primeira jornada houve panelaços intensos em todo o país, em apoio à greve.
A pauta é clara e abrangente, não só pela derrubada do pacote de ajuste fiscal, como esclarece a presidenta do movimento MAIS e líder indígena Wayúu, Martha Peralta Epieyú:
“a única maneira de parar a #GreveNacional é:
-deter os massacres.
-retirar a Reforma Tributária.
-não assassinar mais lideres sociais.
-suspender o glifosato.
-aprovar a renda básica.
-deixar de subsidiar os banqueiros.
-vacinar massivamente
A repressão tem sido intensa em todo o país, mas sobretudo na região sudoeste, nas cidades de Cáli, Pasto e Popayán. Foram registrados mais de 21 homicídios, detenções arbitrárias, pessoas desaparecidas e ataques e ameaças a defensores de direitos humanos que acompanham os protestos; há denúncias de violência sexual por parte da polícia e do ESMAD (a tropa de choque colombiana), e registro de arbitrariedades que fogem dos protocolos de ações em protestos. O presidente ordenou em 1º de maio a militarização das cidades, na contramão das ordens dos prefeitos. A narrativa presidencial é que há vandalismo e criminalidade nos protestos, mobilizando todo o arsenal das suas forças para assediar e perseguir as forças sociais. Enquanto isso, as organizações civis – como a Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC) – clamam por respeito ao seu direito de protestar pacificamente e exigem garantias para o exercício deste direito.
Até 3 de maio, a mobilização popular tem conseguido pressionar ao governo para retirar a Reforma da pauta do Congresso e a renúncia do ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla. No entanto, isto parece mais uma dissimulação do que um fato, já que, de um lado, a anunciada retirada não foi formalizada no Congresso, e a demissão do ministro foi seguida de uma reorganização de nomes próximos ao governo em outras pastas e cargos do executivo nacional.
A noite desse dia foi particularmente sanguinária, diante da negativa de acabar com a greve e seguir adiante com as petições. Em Bogotá, a polícia fez detenções no sistema de transporte público da cidade, o Transmilênio. Em Cáli, o ESMAD e forças do Exército travaram uma batalha com rajadas de tiros em um bairro popular da cidade, encurralando os manifestantes em uma das principais avenidas. Em Medellín foram apresentadas denúncias de ameaças por grupos paramilitares a qualquer pessoa suspeita de participar nas marchas. Estes são somente alguns acontecimentos nas principais metrópoles.
Organismos da ONU e organizações de Direitos Humanos, colombianas e estrangeiras, têm alertado sobre truculência das ações de repressão, que violam os protocolos de segurança e outros acordos internacionais de direitos humanos pelo uso excessivo, assimétrico e desmedido da força repressiva dos protestos. Assim como os coletivos e indivíduos nas ruas, pedem a abstenção da presença de militares e a responsabilização pelos abusos. Esses organismos precisaram intervir junto às forças do Estado diante de abusos, como o impedimento de equipes médicas para socorrer os feridos e os disparos indiscriminados a pessoas presentes nas demonstrações.
O Paro Nacional segue na luta por justiça pelos massacres e assassinatos seletivos a lideranças sociais do campo e da cidade e de ex-combatentes das FARC desmobilizados depois dos Acordos de Paz. Segue pelo direito a ter condições dignas de vida e garantias ao exercício do direito de se opor ao regime. O Paro continua até haver disposição ao diálogo com o povo e reconhecimento dos erros do governo na gestão da crise de saúde pública, da gestão da economia nacional, do esquecimento secular ao qual as elites políticas submetem o povo. Os colombianos pedimos paz e justiça, e condições para ter uma boa vida com dignidade.
[…] Fonte: https://teiadospovos.org/a-sociedade-colombiana-esta-na-panela-de-pressao-e-esta-apitando/ […]