Feira de Santana, zona de transição do litoral para o semiárido baiano, segundo maior entroncamento rodoviário do país, é conhecida como o portão do sertão e fica a 108 km da capital. As comunidades tradicionais do município, além de constantemente enfrentarem conflitos com os grandes projetos de iniciativas públicas e privadas que tentam lhes desabrigar de suas áreas cultiváveis, têm de lidar com um clima seco, com recorrente ausência de chuvas. No ano de 2015, por exemplo, foi declarada situação de emergência em oito distritos, justamente por conta da estiagem.
Seria redundância dizer que a água é um elemento fundamental para a produção de alimento. Mas, a cada dia que passa, fica mais evidente que é preciso não apenas expor este fato, mas levantá-lo como uma bandeira de luta.
Sobre as dinâmicas do cuidado com a terra e o tempo de plantio em Feira de Santana, conversamos com Josenilda Moreira, mais conhecida como Nem, da comunidade rural de Garapa. No texto-fala a seguir, Nem discorre detalhadamente sobre o que antecede a colheita em sua comunidade, e ainda nos apresenta a sabedoria ancestral no trato com o tempo da terra. Acompanhe:
“Primeiro ponto, estamos esperando chegar o inverno. Nós temos que começar a limpar a terra. Quem vai arar destoca a terra, arranca os pés que nascem e que o trator não arranca, faz uma coivara delas e a gente coloca fogo. Se for para passar o trator, espera apodrecer, depois de quinze dias nós passamos a grade, depois nós vamos adubar. Aí cava o buraco, coloca adubo no milho e passa dois dias com o adubo na terra sem plantar, depois nós plantamos o milho.
Se tiver com muito tempo de seca e começar a chuva agora, nós esperamos uns 3 a 4 dias, porque a temperatura do chão é muita. Quando a temperatura é muita, a terra não fica cem por cento fresca, fica quente. Aí a gente espera ela esfriar. Quando ela esfriar, com esses três ou quatro dias de chuva, que já arejou, aí a gente vai e planta o milho. Depois de mais uns três a quatro dias, a gente planta o feijão. E deixa o feijão.
Outra, nós podemos jogar o adubo de galinha, mas também tem que saber jogar a quantia certa, porque o adubo de galinha é quente. Outra, ele cresce se jogar muito, ele cresce muito, mata, e também não dá feijão, só faz crescer e virar, não dá as bagens do feijão. Agora o milho, ele dá bem grande, cresce muito bem, bem mesmo. E a espiga muito bem. Mas o feijão, não dá.
Então, a gente tem que fazer isso, porque se a gente não fizer assim, a plantação da gente é dividida ou é perdida. Nós temos que deixar e aproveitar o mato como adubo, secar e arar; ou se não arar, nós temos que cavar cova. Tem que tomar cuidado com a terra quente e o momento do arado, para não dar febre no mato, porque senão acaba com a terra. Tem que deixar passar uns dias para que o mato apodreça, aí a gente coloca o feijão.
Então, se a gente não fizer isso, meu amigo, a gente não tem a plantação certa, cem por cento, nós vamos perder cinquenta por cento. É isso que é o caso da chuva. Está chovendo agora. Nós já estamos com um bocado de dia que está com sol. E o sol estava bastante quente.
Eu estou com a terra aqui pronta, já para plantar, mas não plantou por quê? Porque eu estou esperando passar esse esse final de semana, para depois lá pra segunda ou terça, passar o trator pra adubar a terra, lá para quarta feira plantar, porque a terra já estará ótima, fresquinha, já correu vento, a molhagem desceu.
Aí eu digo que a prática da roça é essa. Tem muita gente que não sabe, aí joga, se choveu hoje. Nós esperamos aquele tempo todo até hoje, então não podemos esperar um pouco mais para plantar?! Podemos esperar sim. Aqui já tem um bocado de gente atrás do trator, para arar a terra. Muita gente ainda vai arar para apodrecer o mato, para depois gradear, para depois jogar o adubo e plantar.
Começou a chuva agora. E provavelmente, não é a chuva nem do inverno, porque a gente não teve a trovoada. Nosso inverno agora mesmo está sendo do mês de junho, do final de maio para junho. Julho a gente ainda está plantando feijão. O ano passado mesmo, a gente plantou no final de maio. Arrancou o feijão, perdeu. Teve dezessete sacos de feijão, mas o feijão cozinhou a massa toda, da chuva. Aí teve que vender o feijão pra comprar outro feijão. Plantou o milho, aí teve muito milho, teve cinquenta e quatro sacos de milho. Esse milho tá aí ainda até hoje, graças a Deus, tanto que não compramos milho, porque tem milho ainda nos tonéis. Tem dois tonéis de dezoito sacos e tem dois tonéis de quatro sacos, e tá aí passando no motor com a maniva e o licuri seco pra fazer a ração pra dar aos bichos.
É assim que se planta. Até planta mesmo a gente tem que esperar porque senão não dá certo eu fazer. Eu tenho várias plantas aqui, tenho muita planta. É igual a rosa do deserto. Se você não souber cuidar dela, cultivar ela, você nunca tem. É uma planta cara e você volta perdendo. Está certo?
O melhor esterco para plantar é o de porco. É um adubo muito fresco, não tem problema, você pode jogar e pode plantar. Ótimo o adubo de porco. As pessoas às vezes nem sabem, aí perdem. Aqui a gente aproveita até cinza de forno. Quem tem casa de farinha, a cinza é a da casa de farinha. É um ótimo adubo para a roça, dá uma plantação legal mesmo. São adubos ótimos. Seria bom plantar com eles, sabia? Você ganha mesmo a plantação. A mandioca dá boa, o feijão, o milho, tudo com eles.
O adubo de porco não tem agrotóxico nenhum. A cinza do forno não tem também. A gente pode fazer os estercos, sabe como? Tudo que você quiser, cava um buraco. E vai jogando numa água suja. Aí vai apodrecendo, joga no mato, vai apodrecendo. Quando puxar aquilo ali, já é um adubo. É um adubo dos melhores pra roça, pra feijão. E é um adubo fresco. Você tem para todo o tempo. O adubo da ovelha, o do gado também é bom e não tem nada de adubo químico. O melhor é esse. É porco, ovelha, as cinzas e o feito por nós próprios.
É um quebra-cabeça terrível, mas é fácil pra quem sabe lidar, quem sabe cuidar. Eu mesmo sou uma pessoa que gosto muito. Se você me der uma roça aqui para eu plantar, eu vou agora, alegre e satisfeita, melhor do que me mandar pra casa de um branco fazer uma faxina. Eu sei fazer faxina, graças a Deus, mas eu não gosto de trabalhar pros outros, de vender o meu dia a um branco, porque ele não dá o valor. Não sabendo eles que são sustentados por causa da gente. Se não fosse a gente daqui, da roça, eles não eram vivos. Certo? É isso”.