Posted on: 28 de julho de 2025 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Por Silvia Beatriz Adoue

Na luta pela terra, vivemos um momento crucial há algum tempo. Desde a Lei de Terras de 1850, o grande desafio tem sido a retomada dessas áreas. Hoje, outro desafio se sobrepõe: o de defender a recuperação desses territórios em prol da abundância.

A Lei de Terras

A Lei de Terras, que se impôs mais ou menos na mesma época, não apenas no Brasil, mas em toda a região, legalizou a propriedade da terra, que podia ser adquirida por compra ou herança. Dadas as oportunidades de negócios criadas pelo aumento da demanda por insumos para a Segunda Revolução Industrial na Europa e nos Estados Unidos, a concentração da propriedade da terra fomentou a produção em larga escala para exportação. Ao regular o acesso à terra, tornou ilegal os territórios indígenas e de comunidades tradicionais, incluindo quilombolas, caboclos, caiçaras , ribeirinhos e  camponeses que  ocupavam a terra sem tê- la comprado e, portanto, sem um título de propriedade “abençoado” pelo Estado.

A Lei de Terras criou, assim, um arcabouço legal para expulsar pessoas de suas terras e forçá-las a trabalhar para um senhor para sobreviver. Também criou condições para a abolição da escravidão, que seria muito onerosa para os latifundiários de terras, que, desde o século XVI, viam no trabalho forçado a única maneira de garantir força de trabalho para suas grandes propriedades. Em 1888,  já com a Lei de Terras em vigor, a escravidão foi abolida e os proprietários de escravos não receberam indenização pela perda de “capital”, mas foram liberados de suas responsabilidades para com os libertos. É claro que os ex-escravizados não receberam terras.1

Em 1889, um ano após a abolição, um golpe militar derrubou a monarquia e instaurou a república. Na prática, tratava-se do “braço civil” do exército que havia sido estabelecido após a Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai, de 1864 a 1870, para pôr fim à experiência de um Estado burguês independente, o que não convinha à Inglaterra, a potência imperialista dominante na região. A república era uma simulação dos regimes políticos da burguesia europeia. Na prática, o projeto executado sob tutela militar, que, mesmo sob governos civis, persiste até hoje, era otimizar a exportação de insumos para a indústria europeia. A expansão dos portos e da malha ferroviária garantiu a exportação regular de grandes volumes de produtos primários. A arrecadação de impostos, regulamentada pela Constituição de 1891, apoiava a disciplina estatal da força de trabalho por meio de políticas repressivas e migratórias.

Linha do tempo da Lei de Terras (Lei de terras, 1859; abolição da escravatura em 1888; proclamação da república em 1889; constituição republicana em 1891; experiência comunal em Canudos, a partir de 1893, que culminou no massacre de 25 mil comunitários pelo exército republicano em 1897). Fonte: imagem da linha do tempo feita com os nós de um bambu na peça teatral Restinga de Canudos , da Cia. do Tijolo.

Os povos da terra (povos indígenas, quilombolas , caboclos , caiçaras , ribeirinhos , camponeses) atrasaram, com graus variados de sucesso, a integração de seus territórios. Outros seres não humanos também resistiram. Um dos episódios mais deslumbrantes da luta contra a integração à produção capitalista foi o de Canudos, no interior da Bahia, onde caboclos, camponeses, ex-escravos, ex-peões de gado e o povo Kiriri se reuniram, formando uma população de 25.000 habitantes e estabelecendo práticas comunais bastante prósperas. Foi uma janela de liberdade dentro da linha do tempo, que durou de 1893 a 1897. O temor não era apenas por conta da ocupação da fazenda abandonada onde haviam se estabelecido. As elites que estavam no topo temiam que o brilho de Canudos perfurasse os corações dos que estavam abaixo e que, com isso, esses buscassem reivindicar mais terras e se recusassem a trabalhar para elas. Após quatro expedições militares, armadas com tecnologia de ponta, a comuna foi esmagada. O olhar do povo de Canudos, porém, transcende o tempo, nos desafia e nos inspira.

Um prisioneiro de Canudos, antes de sua execução. Fonte: Flávio de Barros (fotógrafo da expedição do Exército Republicano).

No entanto, a integração desses territórios à produção para exportação foi um processo lento. Grandes extensões de terra permaneceram como terras devolutas , terras públicas que o Estado acabou concedendo a empresas. Ciclos como o da erva-mate nos territórios Guarani e Kaiowá, ou o da borracha na Amazônia, são exemplos desses avanços em territórios que haviam permanecido preservados e onde grande parte dos povos se refugiou durante a primeira onda de invasão.

Retomadas e recuperações

A expulsão da terra implicou a separação da humanidade da natureza. Não apenas da natureza de seus territórios, mas também de sua própria natureza humana, implicada nas relações com outros seres não-humanos. Retomar esses laços tem sido um horizonte almejado desde então. A terra, mantida cativa nas mãos do capitalismo, permanece em uma agonia que não é a morte, mas sim a luta pela vida. Retornar à terra para recuperar a própria liberdade e a da terra é está presente no coração das pessoas.

A luta pela reforma agrária e pela demarcação de terras indígenas e quilombolas alcançou um marco legal na Constituição Brasileira de 1988, mas os interesses da nova dinâmica do capital no campo encontraram brechas legais para retardar e, em seguida, paralisar os processos de acesso à terra. Assim, a onda de ocupações de terras por camponeses sem terra e retomadas de terras indígenas nas duas últimas décadas do século XIX foi criminalizada e judicializada, por um lado, e atacada com violência pelas milícias, por outro lado. Durante esse período, os lobbies das cadeias do agronegócio que operavam no Congresso, estavam otimamente organizados. O mesmo aconteceu com organizações semi-legais e ilegais, como a União Democrática Ruralista (UDR), ainda naquele período, e, mais recentemente, o grupo miliciano que se autointitula Movimento Invasão Zero. Essas são organizações de ação direta que mobilizam latifundiários e milícias.

Cadeias de commodities contam com o controle do uso de grandes áreas de terra por meio da burguesia agrária local e aspiram disponibilizar novas áreas de terras públicas para que possam avançar sobre elas rapidamente, impulsionadas pelas flutuações nos preços das commodities. Os marcos legais que regulam o uso da terra são obstáculos que eles precisam transpor. Sucessivos governos vêm gradualmente flexibilizando ou abolindo esses marcos, seja em ritmo acelerado ou gradual (como ocorreu durante a presidência de Jaír Messias Bolsonaro). O resultado é a degradação da terra e a desapropriação dos povos.

No entanto, simultaneamente, as retomadas de povos indígenas não cessaram. Cada vez mais, comunidades que aguardavam o reconhecimento legal de suas terras ancestrais pelo Estado recorreram à autodemarcação e às inúmeras formas de autonomia diante de uma república que está se desintegrando, juntamente com os marcos regulatórios do passado.

As cadeias extrativistas do agronegócio, com sua nova dinâmica, operam com novas estratégias. Além de integrarem as grandes propriedades da burguesia local – ávida para entrarem nos negócios de exportação, buscam integrar  também a agricultura familiar, os assentamentos de reforma agrária e até mesmo as terras indígenas à produção de commodities. Essas atividades degradam a terra para produzir mercadorias cujos preços são flutuantes. Portanto, para muitos proprietários de terra, é mais vantajoso arrendar terras em vez de imobilizar capital comprando-as. Tudo isso são consequências da financeirização da agricultura.

O arrendamento de terras da reforma agrária ou  de terras indígenas é proibido por lei. No entanto, assistimos a uma enorme pressão para que assentados da reforma agrária, pequenos agricultores e povos indígenas cedam suas áreas reconhecidas pelo Estado para o plantio de commodities em terras destinadas à produção de alimentos (no caso de lotes da reforma agrária) e em terras de uso coletivo para a reprodução de modos de vida ancestrais (no caso de terras indígenas). Para tanto, o arrendamento recorre a mecanismos legais como a “parceria”, “empreendimentos”, entre outros.

No caso das terras indígenas, a pressão para arrendar terras leva à fragmentação e à ruptura dos laços comunitários, mediada pela violência. Isso cria diferenciação social dentro das comunidades, com alguns acessos a recursos concedidos a mediadores e empobrecimento de outros. Aqueles que arrendam terras muitas vezes acabam nem mesmo enxergando o valor do dinheiro, pois se endividam para comprar suprimentos e, incapazes de usar a terra para seu sustento, dependem de políticas assistencialistas. Isso é semelhante ao que aconteceu em Chiapas, depois que o ex-presidente Carlos Salinas Gotari criou o arcabouço legal para a fragmentação de terras comunais (ejidos), garantindo às famílias individuais acesso a títulos de propriedade – que antes eram coletivos.

Por essas razões, a recuperação de terras por si só não é suficiente para garantir a recuperação da abundância. Nas recentes retomadas Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, a retirada de plantações geneticamente modificadas em larga escala e o uso de veneno permitiram o retorno de nascentes que haviam secado, o reflorestamento de florestas, o crescimento espontâneo de espécies arbóreas nativas e o retorno de pássaros e animais antigos que haviam desaparecido: emas, capivaras, cutias, jacarés e onças. Este é o caso da retomada Yvyajeré, que passou por todas essas transformações em menos de um ano. As famílias obtiveram várias colheitas de culturas extremamente variadas: diferentes tipos de milho, pelo menos três variedades diferentes de batata-doce e o mesmo com abóbora e abóbora-moranga. Não houve apenas uma recuperação da terra; houve uma recuperação do território.

Mostra das variedades de cultivos em Yvyajeré. Fonte: Esteban del Cerro.

As cadeias da acumulação e de morte, que foram expulsas pela porta da frente, buscam agora entrar pela porta dos fundos, através do arrendamento, seduzindo com a possibilidade de acesso ao dinheiro do aluguel da terra. E não porque a área retomada pelo povo seja tão vasta. Assim como Canudos, representam a recuperação da terra para economias de abundância, a recusa em entregar corpos e almas à alienação capitalista… é isso que os que estão no topo temem.

Reivindicar a terra exige um gesto mais demorado e duradouro de reivindicação do território e das almas das pessoas para uma vida plena. Uma vez na terra reivindicada, as pessoas precisam reivindicar o território para mergulhar em sua própria humanidade, livres da alienação à qual foram submetidas.

Texto publicado originalmente em Desinformémonos: https://desinformemonos.org/brasil-por-tierra-y-territorio-de-retomadas-y-recuperaciones/ 

  1. Apesar de a reforma agrária já ser apresentada nessa época como condição para uma verdadeira abolição pelo movimento abolicionista, que tinha à frente pessoas negras como José Patrocínio, André Rebouças, entre outros e outras (nota da tradutora).   
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