Posted on: 8 de dezembro de 2025 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Neste dia 7 de dezembro de 2025, nós, famílias Guarani Mbya, estamos em luta por Terra e Território, ocupando a Reserva Biológica do Ibicuí-Mirim, localizada no município de Itaara, região central do Rio Grande do Sul.


Retornamos ao território do Ibicuí-Mirim com o mesmo respeito e a mesma responsabilidade que nossos ancestrais carregaram ao caminhar por estas matas. Esta retomada não nasce de conflito, mas de memória. Não nasce de ambição, mas de necessidade. É um chamado de Nhanderu, que nos lembra que a terra não é coisa, é vida — e que a vida só floresce quando está em equilíbrio.

Por muitos anos fomos afastados de espaços que sempre fizeram parte do nosso modo de ser e existir, dos lugares onde podemos viver segundo a nossa cultura, o guarani reko. Ao transformar este território em uma “reserva biológica”, disseram que aqui não deveria existir gente. Mas nós lembramos que, desde muito antes de qualquer cerca, mapa ou decreto, nossas famílias caminhavam entre estas árvores, conversavam com os rios, cantavam para manter a harmonia do mundo.

Nossa presença nesta região não é de agora, nossa presença é ancestral. Segundo os registros científicos, estamos na região central do Rio Grande do Sul desde cerca de dois mil anos atrás. Com novos achados arqueológicos, como em Dona Francisca, essa data pode ser ainda mais recuada. Além disso, as formações vegetais do estado atestam a presença da nossa cultura, uma vez que existem plantas culturalmente essenciais consideradas nativas e que podem ser hipotetizadas como uma dispersão causada pelos nossos ancestrais, como a erva-mate (Ilex paraguariensis) e o guaimbé (Thaumatophyllum bipinnatifidum).

Os primeiros europeus que aqui pisaram já mencionavam a presença guarani. Não foi à toa que os padres jesuítas vagaram por estas bandas em busca de indígenas a serem catequizados, criando a redução de São Cosme e São Damião na década de 1630 em um território que abrangia os atuais municípios de Santa Maria, São Martinho da Serra e Itaara. Essa iniciativa religiosa entre o povo guarani fez parte das chamadas Missões do Tape. E no que os historiadores chamam de Segunda Fase missioneira (1641-1768), ou seja, depois da batalha de Mbororé que nossos ancestrais venceram os bandeirantes, o território de Itaara passou a fazer parte da Missão de São Miguel Arcanjo.

Depois do desmantelamento da Província Jesuítica do Paraguai (e das missões) e da distribuição de sesmarias pelo Império Português, nosso povo se dispersou em fuga das perseguições, das doenças e da coerção. Com isso, os nossos parentes que não aceitaram o cristianismo e que não participaram das missões, os guardiões do conhecimento ancestral e da nossa crença, foram ainda mais afetados. Eles tiveram que se refugiar na periferia das cidades em formação e até em outras regiões do Yvyrupa (território guarani) que hoje corresponde a outros países como Argentina e Paraguai.


Agora voltamos porque a floresta e o rio nos reconhecem. Rio este que recebe o nome Ibicuí Mirim, uma corruptela do guarani yvyku’i mirĩ e que significa, em uma tradução livre, “rio da areia fina”. Voltamos porque a vida aqui precisa de nossas mãos, de nossos cantos, de nossa forma de cuidar. Não chegamos para destruir; chegamos para preservar. Nossa existência não ameaça este lugar — ela o fortalece.

Localizada no município de Itaara, a Reserva do Ibicuí-Mirim é uma Unidade de Conservação (UC) estadual, que tem como objetivo proteger a fauna, flora e os mananciais da região, sobretudo da Barragem Saturnino de Brito, que abastece boa parte dos municípios da região. Atualmente, parte da reserva está sendo afetada pelo manejo ilegal, incorreto e predatório do agronegócio, que invade a Reserva desmatando-a e contaminando suas nascesntes e mananciais. Existe o cultivo de monocultura transgênica e do uso de venenos agrícolas próximo a floresta e as nascentes. Em contrapartida das práticas que ameaçam a UC e seu propósito de existência, a nossa Retomada Yvyku’i Mirĩ irá cuidar e proteger essas nascentes, preservar a mata e os animais e, principalmente, reflorestar o que foi desmatado.

Os Guarani Mbya carregam milhares de anos de conhecimento. Sabemos quando plantar, quando colher, quando silenciar, quando cantar. Conhecemos os espíritos da floresta, o respeito que cada planta, água e pedra deve receber. Sabemos que a terra não vive se for apenas cercada; ela vive quando é cuidada.

A história já mostrou que onde há povo indígena vivendo, há mata viva, há água limpa, há equilíbrio. Os territórios que resistiram às maiores pressões de destruição ambiental no Brasil são justamente aqueles onde nossos parentes ainda caminham. Somos parte desta terra.

Nossa retomada é um ato de vida.


É um ato de proteção.


É um ato de continuidade.

Não pedimos permissão para existir. Existimos porque somos parte deste território, e é somente vivendo aqui que podemos garantir que as futuras gerações, nossas e de todos vocês, encontrem ainda uma mata respirando, um rio correndo, um mundo possível.

Leave a Comment