Posted on: 25 de maio de 2024 Posted by: Teia dos Povos de Minas Gerais Comments: 0

Saudações kilombola!

Com a licença de Pai Benedito,
Com as bênçãos de nossas mais velhas e mais velhos,
Em respeito às crianças e a nossa juventude,

Com a força das águas, matas, terras e ares;
Aos povos das Gerais:

É com a força dos búfalos, enfrentando e enfeitando a tempestade de ventos, que no dia 24 de maio de 2024 (sexta-feira), o Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango firma o seu ponto e auto-demarca o Território Kewá Matamba, espaço ancestral e sagrado aos pés da Serra do Curral, na zona leste da cidade de Belo Horizonte, com o apoio ativo do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e dos núcleos e elos da Teia dos Povos.

Reafirmamos aqui, nossa conexão sagrada com esse território, que cuida de nós e nos dá condição de nos mantermos fortes e unidos. Sem a terra, o território, a mata, as águas e as plantas, o kilombu e o terreiro não têm como existir. Retomamos esse espaço que sempre foi nosso, queremos apenas o necessário e o território nos garante isso. Buscamos construir nossa autonomia kilombola para além do Estado, continuando nossas tradições sagradas de plantio, educação e conexão com a natureza, essenciais para a manutenção de nossa forma de ser e viver.

Retomamos esse território para construir nossa Escola das Ngoma, um espaço em que possa florescer uma pedagogia dos tambores (ngoma), que acolha e fortaleça o envolvimento de nossa juventude com o território e nossas práticas, em uma “educação não para ter, mas para poder ser”. Nos guiamos pela sensibilidade de nossos erês (crianças), que encantam esse mundo ao imaginar e criar o território e caminhos que sonham. Vamos garantir que as próximas gerações do Manzo continuem a tradição de terem seus umbigos plantados nas raízes sagradas de um Jatobá, em terra fértil, livre e ancestral.

Continuaremos a missão dada por Pai Benedito, que na década de 70, orientou nossa Mãe Efigênia (matriarca e liderança máxima da comunidade), para que construísse um lugar de acolhimento onde todos que chegassem pudessem ter água, comida e uma cama para dormir. Além de um território de nossa família, o Manzo sempre foi e sempre será um espaço que acolhe quem o busca, criando vínculos de pertencimento – mesmo que não sejam necessariamente de vínculos sanguíneos. Para além de seu limite geográfico, o Manzo abrange e sempre acolheu toda a cidade, promovendo encontros, ritos, festividades e cuidados espirituais no terreiro de Umbanda e Candomblé. Trabalhamos na valorização da cultura afro-brasileira, a partir das aulas de capoeira, do samba de roda, da dança-afro e da percussão. O Kilombu é, portanto, espaço de resistência religiosa e cultural, referência de patrimônio afro descendente, e local de formação e vivência. 

Mãe Efigênia, conhecida como Mametu Muiandê, é bisneta de pessoas escravizadas que se aquilombaram no Kilombu Engenho Novo, em Ouro Preto, região em que se viveu a “febre do ouro” em Minas Gerais. Erguida e mantida com o trabalho e o sangue dos escravizados, a região é símbolo do vínculo entre a mineração e o processo escravizador dos povos africanos no Brasil. Ao mesmo tempo, a história de Mãe Efigênia nos mostra a continuidade histórica da resistência quilombola frente à mineração e às opressões sofridas, que também povoaram e marcam a história de Ouro Preto e de Minas Gerais.

Na década de 70, no bairro Santa Efigênia (antiga Vila Euclásio) plantou suas raízes, junto a uma nascente, um bambuzal e uma área de vegetação, onde também podia buscar uma variedade de ervas, árvores e terras na Mata da Baleia – riqueza que dialoga com e mantém as práticas do Terreiro. Guiada por seu preto velho, foi até a mata, cortou alguns paus e os arrastou até as proximidades do córrego do Cardoso, hoje coberto pela Avenida Mem de Sá, onde construiu seu barraco. Dedicou um quartinho para sua Umbanda e assim, deu vida à Senzala de Pai Benedito, espaço onde iria cuidar de muita gente e também do território que habitava.

Firmada nesta terra, Mãe Efigênia criou seus sete filhos e mais de vinte filhos dos outros, além das várias pessoas que acolheu e cuidou ao passarem pela Senzala. A Serra do Curral, a Mata da Baleia, o córrego do Cardoso e as várias águas que ali corriam, foram a base de sustentação física e espiritual de nossa família, a forma com que nos relacionamos diretamente com nossa ancestralidade. É onde, no passado, buscamos a água para fazer nossa comida, lavar roupa e tomar banho. Era também (e continua sendo), onde colhemos nossas ervas de cura e realizamos nossos ritos, onde nasce toda força que nos alimenta e nutre a seiva de nossa fé. Não podemos fazer nada sem as nossas folhas; sem água não temos vida e nem ancestralidade. Assim, temos o compromisso e a missão de proteger toda essa abundância sagrada de nosso território, e vamos continuar fazendo isso em nossa retomada.

Em nossa missão de cuidar e curar, somos acolhidos por esse território que nos envolve, e por isso, temos o compromisso de vigiar, proteger e zelar por ele e todas as vidas que o habitam. Assim fizemos, ao lutar – e vencer pela suspensão das atividades de mineração da na Serra do Curral em 2022, que ignorava nossa existência e violava o nosso direito de consulta prévia, livre e informada, além de ameaçar os nossos modos de vida e o território natural que nos sustenta. Em nossa retomada, não apenas vamos garantir a proteção da vegetação e da fauna que habitam aquele espaço, mas também seremos guardiões dessa grandiosa Serra, que protege e nutre toda a cidade de Belo Horizonte.

Querem forçar o quilombo a ser cidade, e ao longo das décadas, a expansão urbana e a mineração foram tomando o território e os caminhos que sempre fizemos para sustentar nossos modos de vida e nossa espiritualidade. Em 2012, fomos violentamente expulsos de nossas casas pela Defesa Civil Municipal de Belo Horizonte e pela Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (URBEL). Essa ação feita pelo Estado, carregada de preconceito racial e intolerância religiosa, marcou uma ruptura e um enfraquecimento dos laços comunitários do Manzo. Transferidos para um abrigo público, fomos impedidos de realizar nossas práticas religiosas e de dar continuidade ao nosso projeto Kizomba, que ensina dezenas de crianças e jovens a praticar atividades como capoeira, samba de roda, dança afro e percussão. O terreiro de Candomblé teve que se mudar para Santa Luzia, junto de Mãe Efigênia, e isso contribuiu mais ainda para um distanciamento da comunidade de nossa religião de matriz africana

Ao retornar, encontramos nosso terreiro destruído e nosso território desmatado: as bananeiras, o bambuzal, as ervas sagradas e nosso pé de Jatobá arrancados! Eles tiraram de nós o que nos sustenta, o que nos mantém. Mataram as plantas que eles sabem que fazem parte da nossa identidade cultural e religiosa, que têm com a nossa gente uma relação ancestral. Se a estratégia imposta é romper o nosso vínculo com a Natureza, insistimos em retomar nossas tradições e nossa presença nesse território! A Retomada Kewá Matamba, então, é uma afirmação de que vamos continuar realizando nossos rituais, colhendo nossas ervas, plantando nossas roças de quilombo e construindo nossa educação das Ngoma. Vamos sustentar nossas autonomias e garantir nossos modos de vida no território.

Em abril de 2023, na Pré-Jornada de Agroecologia de Minas Gerais: Eduka-ação das Ngoma, organizada junto a Teia dos Povos no Manzo, demos o primeiro passo para a retomada de nosso território, reunindo diversos povos, territórios, movimentos e apoiadoras, cultivando uma potente aliança entre nós. Re-plantamos uma muda de Jatobá e iniciamos o plantio de plantas sagradas e outras que nos ajudam a recuperar o solo degradado daquele espaço. Durante esse último ano, realizamos diversos mutirões e atividades ali, que firmam nossa presença, nossa ancestralidade com o território e o compromisso com sua proteção.

Na Escola dos Tambores do Kilombu Manzo, aprendemos que os tambores (ngoma) são os instrumentos de comunicação com os povos, que através do ritmo, da dança e da oralidade, se mantém a gira em movimento constante, garantindo a continuidade e a existência/resistência da tradição negra e quilombola, para além do território. É a partir de nossos instrumentos que nos encontramos, reverenciamos e nos comunicamos com todos os povos, sendo o ponto de princípio “da gira que gira na gira” (Nêgo Bispo). Que nossos tambores ecoem e alcancem os que ousam construir e encantar o mundo novo!

Que nossa Mãe Matamba ilumine todos nós, que vamos caminhando pelos nossos territórios.

Que ilumine todos nós, nesta grande caminhada! 

Que Ógùn abençoe, Nkosi abençoe, abra os caminhos de luz e prosperidade, 

e que leve todos até o topo da montanha.

Asé Ngunzo, nosso terreiro é comandado por mulheres negras e estamos aqui para gritar:

KEWÁ MATAMBA! BONS VENTOS VIRÁ!

Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango

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