
Com a licença dos nossos encantados, com a bênção das mais velhas e dos mais velhos, com reverência às crianças e à juventude que nos guiam.
Trazemos esta palavra viva, que nasce da terra, do batuque, do vento, das águas e do fogo sagrado dos nossos territórios. Falamos desde o ventre fértil do Kilombu Manzo Ngunzo Kaiango, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais — território de resistência, axé e luta. Terra que pulsa sob as montanhas ancestrais da Serra do Curral, da Mata da Baleia e da Cordilheira do Espinhaço, onde memória, espiritualidade, luta e encantamento se entrelaçam. Erguemos esta carta como semente e como tambor. Semente que pede chão fértil para brotar uma educação que não seja colonial, racista, capitalista nem patriarcal. Tambor que convoca, gira e anuncia: não há futuro possível sem enfrentar o racismo estrutural, sem devolver centralidade aos saberes ancestrais dos povos pretos, indígenas, ciganos e quilombolas.
Por que escrevemos: O Plano Nacional de Educação (2024-2034) tem a obrigação histórica de reconhecer que não existe educação de qualidade sem ser profundamente antirracista, anticolonial, agroecológica e enraizada na diversidade dos territórios e dos povos que sustentam este país. A educação que queremos e exigimos nasce do território, da oralidade, do corpo, da espiritualidade, da circularidade e da coletividade. Não cabe mais uma educação que violente, apague, silencie e mate nossos saberes e existências. Nossas crianças não são páginas em branco. Elas carregam nos ossos, no sangue, nas memórias e nos umbigos plantados a força de uma história milenar. Uma educação verdadeiramente libertadora precisa cuidar desses corpos, dessas memórias e dessas terras.
O que exigimos:
- A efetiva inclusão da educação quilombola, indígena, cigana e de matriz africana como parte estruturante do sistema educacional brasileiro — e não como apêndice, exceção ou projeto complementar.
- O reconhecimento e fortalecimento das escolas dos territórios, sejam elas terreiros, quilombos, aldeias, favelas, ocupações urbanas, centros culturais ou espaços comunitários, como centros legítimos de produção e transmissão de saberes.
- Formação antirracista, anticolonial, decolonial e agroecológica para todas e todos os educadores e gestores, com currículos que incorporem os saberes ancestrais, a história real do Brasil e as lutas dos povos. A criação de políticas públicas que garantam recursos materiais, financeiros e simbólicos para as práticas pedagógicas de base comunitária, espiritual e territorial.
- O enfrentamento direto do racismo ambiental, religioso, epistêmico e estrutural, reconhecendo seus impactos na educação, nos territórios e nas subjetividades dos povos.
- A garantia de que a educação cuide e preserve os territórios: não há escola possível sem água limpa, sem terra viva, sem floresta em pé e sem povo em pé.
- A construção de uma pedagogia que valorize a oralidade, o canto, a dança, o toque do tambor, a circularidade, a espiritualidade, o plantio, a cura e o cuidado — porque ensinar e aprender é também se enraizar, se curar e se libertar.
A palavra que move: Nos recusamos a aceitar uma educação que sirva à reprodução da colonialidade, do racismo e da destruição. Nos recusamos a aceitar uma educação que não olhe nos olhos das nossas crianças e que não reconheça nos seus corpos a dignidade, a beleza e a potência dos mundos que habitam. Reivindicamos uma educação que planta, que cura, que canta, que gira. Uma educação que seja tambor, que seja água, que seja mata, que seja território livre. Que o Plano Nacional de Educação (2024-2034) não se esconda atrás de promessas vazias, mas assuma, com coragem e responsabilidade, o compromisso inegociável de construir uma educação verdadeiramente antirracista, popular, agroecológica e ancestral.
Esta carta segue como semente, como reza, como tambor que ecoa por entre as serras, os rios, os quilombos, os terreiros, as aldeias, as favelas e os campos. Seguimos de pé, com nossos umbigos plantados na terra e nossos corações pulsando no ritmo dos Ngoma. Que nossos tambores jamais se calem. Pela vida, pela memória, pelo território e pelo Bem Viver. Com a força dos encantados e a benção dos nossos ancestrais.
Kilombu Manzo Ngunzo Kaiango e Makota Kidoialê
Belo Horizonte – Minas Gerais, Maio de 2025

