Posted on: 24 de setembro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 1

por Ana Paula Morel

Nas plantações de milho da Selva Lacandona, no México, antigamente eram necessários três meses para realizar a colheita. No entanto, com a catástrofe ecológica provocada pela “hidra capitalista”, os zapatistas da região não podem mais contar com o ciclo antigo, explicou um dos porta-vozes do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o Subcomandante Moisés. Frente a problemas graves como esses, o movimento organizou em Chiapas, uma atividade educativa1 que reuniu cientistas de diversos lugares do mundo diante de perguntas e comentários dos indígenas das comunidades mayas. A proposta não era, então, que os indígenas deixassem suas terras para irem à universidade, mas que a universidade “se levante em nossas comunidades, que ensine e aprenda entre nossa gente”, comentou outro subcomandante.

A educação zapatista é uma inspiração para muitos movimentos e povos em luta por autonomia, pois construiu uma um sistema de educação fincado na auto-organização das comunidades, na composição com conhecimentos científicos e tradicionais, e na luta comum pela terra. Já há alguns anos, o movimento tem se colocado uma questão fundamental para nossos tempos: como lutar por autonomia diante do colapso ecológico? Um dos princípios da educação zapatista é o “caminhar perguntando”. É preciso perguntar ou não se caminha, dizem elas e eles. As atividades nas escolas autônomas costumam começar com perguntas. Por isso, iniciamos também com outras perguntas: de que maneira podemos fomentar práticas educativas para enfrentar uma mesma ameaça coletiva, como o colapso ecológico, sem desconsiderar as diferenças dos povos? É possível tecer uma educação autônoma como a dos zapatistas em outras geografias? A educação autônoma pode ser pensada apenas em escala local? A educação pública está relacionada com a luta por autonomia? Que tipo de liberdade a educação autônoma defende? Autonomia como prática anticolonial é um caminho de resistência ou despolitiza os processos formativos? Mais do que solucionar definitivamente essas questões, tarefa muito mais ampla e coletiva, pretendemos abrir debates, em diálogo com a educação zapatista e, por fim, com desafios e caminhos da Teia dos Povos.

A educação zapatista 

Desde 1994, nas montanhas do Sudeste mexicano, em Chiapas, está em curso uma das maiores insurreições populares da história recente. Ao longo dos últimos trinta anos, os povos mayas da região praticam a auto-determinação nas diversas esferas da vida coletiva, inclusive na educação. Não é o Capital, nem o Estado que decidem sobre a educação zapatista, mas as assembleias comunitárias, com forte protagonismo das mulheres. Atualmente, em um contexto de ataques dos grupos paramilitares, aumento do narcotráfico na região, ameaça de projetos desenvolvimentistas nas comunidades por parte do governo mexicano, a educação zapatista e a construção da autonomia seguem se reinventando. Recentemente, o movimento anunciou uma mudança nas suas estruturas: as centenas de municípios autônomos estão sendo substituídos por milhares de Governos Autônomos Locais, que poderão controlar diretamente seus espaços autônomos administrativos, inclusive as escolas.

A educação zapatista tem tecido um caminho cheio de complexidades e potências, ao propor retomar as escolas a partir da luta por autonomia. O sistema de educação autônomo zapatista é diferente das escolas estatais e privadas da região, os educadores zapatistas são indígenas das comunidades que não perdem a relação com a terra. Eles são chamados promotores de educación autónoma, ou, em tzotzil (uma das línguas mayas), jnikesvany, que significa a pessoa que move. Os jnikesvany de educação movem e promovem a relação com o conhecimento a partir das necessidades e perguntas dos alunos e das comunidades. 

Todos os promotores de educação são nomeados nas assembleias comunitárias. Há também uma comissão de educação (igualmente eleita pela comunidade) responsável por orientar e apoiar o trabalho dos promotores. Cada educador é responsável mediante a coletividade. Ao mesmo tempo, a comunidade também tem suas responsabilidades: durante o tempo em que os promotores se dedicam às atividades educativas da comunidade, esta deve retribuir diretamente com milho e feijão ou com trabalho coletivo na plantação da família do educador. 

Se por seu caráter anti-estatal, um observador desavisado poderia imaginar alguma semelhança entre a educação zapatista e a educação domiciliar proposta pela extrema-direita no Brasil, mas, na realidade, tais propostas são antagônicas. A educação domiciliar é ultraprivatista e conservadora, esvazia justamente o aspecto mais coletivo da educação, impossibilitando a socialização e a relação com diferentes conhecimentos e mundos. Em um sentido oposto, a educação zapatista amplia a relação da escola com a vida coletiva e tem como um dos direcionamentos a auto-organização popular e o fim da propriedade privada. 

As escolas autônomas foram uma grande transformação no cotidiano das lutas zapatistas. Alguns dos zapatistas mais velhos relatam péssimas experiências nas escolas que existiam antes do levante de 1994. Eles contam que frequentaram por anos a escola sem compreender o que os professores hispanohablantes diziam, e que a escola sempre foi um espaço vazio de sentido, onde se sentiam oprimidos por serem indígenas. Neste contexto de extremo racismo e com o fim das negociações com o Estado, em 1997, os zapatistas optam definitivamente por formar sua própria organização educativa. O movimento convoca suas bases, então, a retirar seus filhos das escolas oficiais e a organizar os membros das comunidades para participarem de formações para os futuros educadores. Com esse chamado, as escolas oficiais vão sendo substituídas pelas escolas autônomas, e em locais onde não existiam escolas, novas escolas zapatistas são construídas através de mutirões.

Alguns acordos foram discutidos coletivamente para orientar o sistema educativo autônomo: as escolas autônomas têm como idioma principal o idioma materno da comunidade e ao longo do processo educativo são incorporados outros idiomas, como o espanhol; o ensino-aprendizagem na escola não pode ser separado da comunidade e da terra; há composições (não necessariamente misturas harmônicas) entre conhecimentos científicos e tradicionais tendo como referência a luta por autonomia; os estudantes não são recipientes vazios que simplesmente recebem conteúdo dos educadores, são sujeitos ativos que participam também da tomada de decisões sobre o sistema educativo. A educação zapatista é um grito contra a “educação bancária” e floresce nos pequenos passos e silêncios das comunidades.

Ao celebrarmos, recentemente, o centenário do pedagogo Paulo Freire, um importante sistematizador de uma pedagogia da autonomia, vemos como existem reverberações nesta experiência que leva a autonomia na educação às últimas consequências. A teologia da libertação, uma das vertentes impulsionadoras do zapatismo, transformada em Chiapas em teologia índia, é marcada pelos movimentos de educação popular que tomaram a América Latina, na década de 1960. Essa vertente foi absorvida e transformada pelas resistências dos povos mayas da região, produzindo uma poderosa crítica ao capitalismo e à colonização. 

Há uma intensa movimentação intelectual indígena que ocorre de maneira subterrânea no cotidiano das comunidades zapatistas. Em suas formações, os educadores zapatistas estudam autores da educação popular e euro-americanos da esquerda clássica e contemporânea, afirmam a importância desse estudo, ao mesmo tempo que dizem que não basta ler livros; a proposta educativa e a formação vêm também de sua reflexão sobre a vida dos povos. O ch’ulel é a “alma”, sopro vital, uma força com diferentes níveis de intensidade, presente em todos os seres da Terra. Árvores, rios, terra, animais e humanos têm ch’ulel, estão em uma relação entre sujeitos, têm valor. O que ocorre na educação dos “de cima” é justamente ensinar a dar menos valor a outros seres. É esse mecanismo que produz o racismo e o ecocídio.

O capitalismo enfraquece o ch’ulel dos seres; a educação autônoma é um dos caminhos para engrandecer o ch’ulel. Mesmo na autonomia, não há um dia de ch’ulel completo, mas um constante caminhar e perguntar. A pedagogia do caminhar perguntando permite que as escolas se tornem espaços de experimentação e fortalecimento das lutas, onde as comunidades ganham lugar central, nos quais é preciso entregar-se por inteiro para aprender não apenas com a cabeça. Para ensinar e aprender é preciso pertencer à terra. A terra, reivindicação fundamental do movimento desde o levante de 1994, não seria apenas um recurso inerte, mas é o fundamento dos deuses (yajval) e da vida coletiva.

Desafios atuais e a Teia dos Povos

Na comemoração dos 30 anos do levante zapatista, junto de uma grande festa com baile e música, aconteceu um pronunciamento da comandância zapatista – ou melhor, da subcomandância, pois quem comanda, em território zapatista, é o povo. O subcomandante Moisés fez um alerta à juventude: diante do contexto mais duro que vivem, não há modelo ou fórmula, é preciso muita prática coletiva. A defesa da vida comum foi recorrente em sua fala. É preciso defender a vida comum, a organização coletiva, a terra, o que não é apenas uma luta local: “não é possível humanizar o capitalismo”, “é preciso que os que vêm de fora se organizem a partir das diferentes geografias”, disse ele. 

A dimensão territorial da autonomia zapatista e do seu sistema educativo não é equivalente a defender uma luta autossuficiente. Diante do colapso ecológico em que vivemos, fica ainda mais explícito como uma queimada produzida pelo agronegócio em um território no Brasil tem consequências para os povos no México, assim como o projeto desenvolvimentista do Trem Maya tem efeitos para a vida dos povos no Brasil. Por isso, é muito importante pensar as práticas educativas a partir de conexões entre diferentes lutas e geografias. Como disse o educador zapatista Emiliano: “O zapatismo não busca ser um modelo que todos devem seguir da mesma forma, mas é um chamado para que os povos lutem à sua maneira, com suas diferentes geografias.”

Ainda que os zapatistas sejam uma inspiração, não devemos utilizar o sistema educativo autônomo zapatista, como medida única para avaliar se outros movimentos são de fato autônomos, seja por recorrem às políticas públicas, ou por não compartilharem estratégias autonômicas em todas as esferas da vida coletiva (Barbosa & Rosset, 2024). Com tal postura, correríamos o risco de desqualificar processos educativos e de luta que não são completamente equivalentes a autonomia zapatista, mas que são resistências por autonomias. 

As retomadas de terras com os encantados dos Tupinambá de Olivença e Pataxós Hã Hã Hãe no Sul da Bahia, as autodemarcações de terras Munduruku no Pará, dentre tantos outros exemplos, demonstram como a luta territorial dos povos tem um caráter educativo (Munduruku, 2012). Neste caminho, a Teia dos Povos defende que a transição da terra em território passa por uma dimensão formativa ancorada na retomada das capacidades de agir coletivamente a partir da luta pela terra: “Nossa perspectiva não é demandar ao Estado a concessão de lotes de terra. É fundamental que o próprio povo conquiste as terras porque é da luta que nasce todo o simbolismo que transformará a terra em território” (Ferreira & Felício, 2021, p. 44). Isso não significa, no entanto, que a autonomia é absoluta, há muitos espaços de coexistências com o Estado nos territórios articulados na Teia dos Povos. 

No caso do Assentamento Terra Vista, no Sul da Bahia, por exemplo, há duas escolas públicas, uma municipal e outra estadual, que, com suas contradições e potencialidades, são espaços importantes de formação e diálogo com o movimento e a comunidade. Além disso, existe a Universidade dos Povos, a frente educativa da Teia, que busca promover uma soberania pedagógica por meio de uma educação libertária, fundamentada na cosmovisão dos povos, nos princípios da agroecologia, nos saberes tradicionais e na luta por terra e território. Chamar essa iniciativa de “Universidade” é uma provocação que subverte a noção convencional de universidade, em um experimento de fortalecer e aprofundar os conhecimentos dos povos. 

Neste processo, há desafios consideráveis. Muitas vezes, o capitalismo e o colonialismo produzem uma noção de autonomia que é confundida com a suposta liberdade do indivíduo. Essa perspectiva se faz presente, inclusive, em espaços de militância. Junto disso, existe uma concepção de “decolonialidade” esvaziada e despolitizada. Ao identificar esse problema, a pensadora libertária aimará Silvia Cusicanqui propõe uma diferenciação entre a decolonialidade e a luta anticolonial:

Desde tempos coloniais se deram processos de luta anticolonial; em troca, o decolonial é uma moda muito recente que, de algum modo, usufrui e reinterpreta esses processos de luta, mas creio que os despolitiza, posto que o decolonial é um estado ou uma situação, mas não é uma atividade, não implica uma agência, nem uma participação consciente. Levo a luta anticolonial à prática nos fatos, de algum modo, deslegitimando todas as formas de coisificação e do uso ornamental do indígena que faz o Estado. (Cusicanqui, 2019, s/p)

Para além do decolonial despolitizante, estão em curso atividades educativas de luta anticolonial, no sentido que propõe Silvia Cusicanqui. Um caminho é discutido por Mestra Mayá, escritora do segundo livro lançado pela Teia dos Povos. Ela conta como se tornou uma professora que educou nas retomadas de terras junto aos encantados:2 

Os pais iam para as retomadas e carregavam as suas crianças, e o que eu devia fazer era ir. Tive 396 salas de aula. E participei de todas as 396 retomadas. (…) Chegava lá e perguntava às crianças se sabiam porque estavam naquele lugar. Assim, íamos aprendendo e reescrevendo nossa história (Mestra Mayá, 2022, p. 63).

Para a autora, a pedagogia das retomadas passa por contar e recontar coletivamente as histórias dos povos que foram expropriadas. Na história de colonização no continente, a luta de classes é uma luta de terras, marcada pela violenta apropriação. É preciso um trabalho educativo de retomadas para aprender com a Terra, mantendo vivo o espírito vinculado pelos encantados em uma guerrilha que se atualiza constantemente:

A gente pode estar com muita dificuldade com a luta. Quando a gente coloca o pé na terra, o ouvido na terra, quando sente o gemido da terra, escuta o seu chamado, a gente sabe como vai seguir os nossos passos, porque estamos ouvindo (Mestra Mayá, 2022, p. 74).

O chamado de Mestra Mayá e a inspiração do sistema de educação autônomo zapatista apontam para uma educação voltada para o pertencimento à terra, mas, que não é sinônimo de defesa de uma luta apenas local, ou de um identitarismo. Um dos desafios da soberania pedagógica é justamente construir uma autonomia a partir da interdependência. Interdependência entre seres humanos e mais que humanos que habitam a Terra; entre diferentes conhecimentos para enfrentar o colapso ecológico. A interdependência é contrária a dependência gerada pelo capitalismo que divide e tira a capacidade de agir coletivamente (Stengers & Debaise, 2017). A formação de educandos a partir da dependência característica das práticas verticais da educação bancária, expressa a lógica da estrutura social de opressão e desencadeia políticas e práticas curriculares legitimadoras de um suposto bem comum universal, ao escamotear os saberes populares e as contradições sociais (Freire, 1987).

A educação autônoma como um caminho para tecer interdependência possibilita a unidade: uma articulação que não leva a uma homogeneização, proposta pela Teia, ou a luta por um mundo onde caibam muitos mundos, como anunciam os zapatistas. Debater coletivamente estes e outros desafios torna-se cada vez mais urgente diante do fogo que destrói as terras dos povos aqui e lá. Finalizamos com uma última pergunta que o zapatismo constantemente provoca: “¿Y tu, qué?” (e você, o que vai fazer?).


A Coluna de Educação Popular, um importante espaço de articulação entre saberes e práticas que emergem das lutas cotidianas de comunidades indígenas, quilombolas, camponesas e urbanas. Este espaço surge em um contexto que exige novos olhares e abordagens sobre a educação, reconhecendo a diversidade cultural e as experiências de vida dos povos que compõem nosso país. Dessa maneira damos início a Coluna de Educação Popular, que Ana Paula Morel ficará à frente. 

Ana Paula Morel, como educadora popular e antropóloga, traz consigo uma trajetória rica de experiências em contextos diversos. Sua vivência intensa na experiência zapatista em Chiapas e na atuação na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) a tornam uma referência no campo da educação e das práticas de saúde desenvolvidas em parceria com as comunidades. Atualmente, na Universidade Federal Fluminense (UFF), ela continua sua trajetória de luta pela educação libertária.

Por meio desta coluna, buscamos não apenas refletir sobre a educação, mas também inspirar ações concretas que visem a transformação social, a equidade e a autonomia dos povos. Convidamos todos a se juntarem a essa jornada, pois a educação popular é um ato de resistência e construção coletiva que pode iluminar novos caminhos em nossas sociedades.


  1.  O encontro L@s Zapatistas y las ConCiencias por la Humanidad foi realizado em Chiapas, em 2016 e 2017. ↩︎
  2.  Entidades ancestrais que fazem pontes entre o mundo terreno e o mundo espiritual entre alguns povos indígenas. ↩︎

Bibliografia

BARBOSA, L., & ROSSET, P. Concepções e exercícios da autonomia entre os movimentos indígenas e camponeses da América Latina. Revista Nera, v. 27, n. 2, 2024.

CUSICANQUI, S. “Tenemos que producir pensamiento a partir de lo cotidiano”. Entrevista de Kattalin Barber. Revista El Salto, 2019.

FERREIRA, J. & FELÍCIO, E. Por terra e território: o caminho da revolução dos povos no Brasil. Teia dos Povos, 2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

___________. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

MESTRA MAYÁ. A escola da reconquista. Teia dos Povos, 2022. 

MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012.STENGERS, I. & DEBAISE, D. L’insistance des possibles. Pour un pragmatisme spéculatif. Multitudes, v. 65, p. 82-89, 2017.

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