
João Emanoel Lima de Oliveira
Professor de História – Mestrando da Universidade Federal do Ceará
Divulgador da História do Nordeste – Instagram / Tiktok: @profjoaoemanoel_historia
O cinema brasileiro tem contribuído bastante com os historiadores, especialmente quando aborda o obscuro e turbulento período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985). Graças a obras cinematográficas, tanto o nome quanto a luta de Eunice Paiva estão sendo amplamente divulgados, não apenas em território nacional, mas em várias partes do mundo. Eunice Paiva, além da perda do marido, assassinado pelo mecanismo repressivo do Regime militar em 1971, também sofreu prisão, perseguição e cerceamento de vários direitos, dentre eles o de sepultar Rubens Paiva, o pai de seus 5 filhos.
Entretanto, o filme “Ainda estou aqui” não é a primeira obra que traz à tona as dores, angústias, traumas e lutas de uma viúva perseguida pelo Estado ditatorial. Há 41 anos, no ano de 1984, o diretor Eduardo Coutinho lançava uma obra-prima do cinema documental brasileiro. Era o filme “Cabra marcado para morrer”. A princípio, seria um filme dedicado a contar a história do paraibano e líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em 2 de abril de 1962. Contudo, a obra apresentou e tornou célebre a figura de sua viúva, que após a morte do marido se tornou a primeira líder de uma Liga Camponesa no Brasil: a paraibana Elizabeth Teixeira.
O projeto “Cabra marcado para morrer” havia sido planejado para ser um filme de ficção baseado em fatos e começou a ser rodado ao final de fevereiro de 1964. Contudo, só pôde ser concluído em 1984, uma vez que suas gravações foram interrompidas pelo exército um dia após o Golpe Empresarial-Civil-Militar de 31 de março de 1964. O filme contaria a história de luta de João Pedro Teixeira, o “cabra marcado para morrer”, um dos fundadores da Liga Camponesa do município de Sapé, no Estado da Paraíba.
As Ligas Camponesas foram organizações de trabalhadores do campo, surgidas em Pernambuco, ao final da década de 1940. A primeiras ligas surgiram sob influência de setores voltados à conscientização de trabalhadores rurais dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que foi considerado ilegal em 1947. Como não existia previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro para a sindicalização no campo, os movimentos camponeses do Brasil, em especial no Nordeste, atuaram debaixo de restrição jurídica entre os anos 40 e início dos anos 60 do século XX. Apesar disso e como forma de contornar as restrições, no dia 1º de janeiro de 1955, foi criada a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP), numa propriedade rural chamada Engenho Galileia, no município pernambucano de Vitória de Santo Antão. Foi popularmente chamada de Liga Camponesa do Engenho Galileia.
O Engenho Galileia era habitado por cerca de 140 famílias camponesas que arrendavam a terra do proprietário Oscar de Arruda Beltrão. Em virtude da expulsão arbitrária (e violenta) de uma dessas famílias, a do arrendatário José Hortêncio, em maio de 1954, um grupo de moradores do Engenho, entre eles o próprio José Hortêncio, José dos Prazeres, Paulo Travassos e José Francisco de Souza (Zezé da Galileia) criaram a SAPPP. Esta Sociedade beneficente de auxílio mútuo era uma Pessoa Jurídica de Direito Civil, de composição não sindical, uma estratégia astuta dos criadores da Sociedade, uma vez que este tipo de organização era prevista legalmente no Código Civil. A Liga Camponesa do Engenho Galileia tinha por principal meta criar um fundo de ajuda a todas famílias, além de erguer uma escola na propriedade, adquirir implementos agrícolas e reivindicar assistência técnica do governo.
Sendo alertado que criação da Liga era um foco de subversão, o proprietário do Engenho requereu judicialmente o fim da SAPPP e requereu do Estado amparo legal para expulsar todas as demais famílias da propriedade. Diante da represália, os membros da Liga buscaram na cidade do Recife uma ajuda jurídica para resistir à investida de Oscar de Arruda Beltrão. Foi então que receberam o suporte jurídico do deputado estadual do Partido Socialista Brasileiro (PSB), o advogado Francisco Julião.
Apesar de muitos relatos sobre as Ligas Camponesas atribuírem erroneamente a criação da Liga do Engenho Galileia ao deputado Francisco Julião, tal informação não procede, e o próprio Francisco Julião a rejeita em seu livro “Que são as Ligas Camponesas?”, publicado em 1962. A Liga Camponesa do Engenho Galileia foi fruto da luta, resistência e astúcia dos camponeses de Vitória de Santo Antão. Contudo, a participação de Francisco Julião foi marcante, porque além de ter pleitear na justiça a permanência dos “galileus” (como eram chamados os camponeses) na propriedade, ele também contribuiu para apresentar, em 12 de junho de 1957, o Projeto de Lei para desapropriação do Engenho Galileia, de autoria do Deputado Carlos Luiz de Andrade, na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Após 2 anos tramitando e sendo reivindicado por frequentes manifestações camponesas em Recife, a Lei Estadual de desapropriação do Engenho Galileia foi sancionada no dia 14 de fevereiro de 1960. A desapropriação do Engenho Galileia é um marco na história das reivindicações camponesas, considerada uma das mais importantes vitórias na luta pela reforma agrária na história do Brasil.
A luta dos “galileus de Pernambuco” inflamou camponeses de outros Estados do Nordeste. Ainda durante a tramitação do projeto de desapropriação do Engenho Galileia, outras Ligas Camponesas se formaram em outros Estados do Nordeste. Na Paraíba foi criada, no ano de 1958, a Associação de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Sapé, ficando conhecida como a Liga Camponesa do município de Sapé. Um de seus fundadores e primeiro presidente foi o ex-sindicalista e operário, João Pedro Teixeira.
João Pedro Teixeira era casado com Elizabeth Altino Teixeira desde 1947. Viveram nas dependências de um Engenho, em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Pernambuco, até o ano de 1954. Naquele ano, decidiram mudar com seus 6 filhos para Sapé, numa propriedade do pai de Elizabeth. Até o ano de 1962 eles tiveram mais 5 filhos.
A Liga de Sapé cresceu rapidamente, atingindo 7 mil sócios no ano de 1962, se tornando a maior Liga Camponesa do Nordeste. A liderança de João Pedro Teixeira atraía cada vez mais adeptos por meio da conscientização dos trabalhadores rurais. Havia uma real expectativa de que a luta das Ligas resultaria em melhorias das condições de trabalho e vida dos camponeses da região. À medida que ganhava o respeito e a adesão dos camponeses, João Pedro Teixeira despertava o ódio dos latifundiários da região, em especial do chamado “Grupo Várzea”, formado por usineiros e oligarcas, vários deles detentores de cargos políticos. O “Grupo Várzea” foi apontado como o principalmente núcleo de perseguição à Liga Camponesa de Sapé, especialmente contra a pessoa de João Pedro Teixeira. Entre 1958 e 1962, João Pedro sofreu ameaças, ataques à sua residência e prisões arbitrárias.
No dia 2 de abril de 1962, João Pedro Teixeira foi assassinado em Sapé, emboscado por dois policiais militares, Antonio Alexandre da Silva (vulgo “Gago”), Francisco Pedro da Silva (conhecido como “Chiquinho”) e um vaqueiro de nome Arnaud Nunes Bezerra, funcionário do usineiro e suplente de Deputado Estadual, Agnaldo Veloso Borges. Em março de 1963, a instrução processual foi concluída, apontando que os mandantes do assassinato de João Pedro Teixeira foram Aguinaldo Veloso Borges, Pedro Ramos Coutinho e Antonio José Tavares, todos grandes proprietários e membros do Grupo Várzea, e a autoria material atribuída aos dois policiais ao do vaqueiro citados. Nenhum deles foi condenado. Aguinaldo Veloso Borges, em uma ação conjunta com outros suplentes da Assembleia Legislativa da Paraíba e do deputado titular, mesmo sendo o quinto suplente, assumiu o cargo de deputado e foi premiado com a imunidade parlamentar ainda em abril de 1962. Os policiais foram inocentados por unanimidade em 1965 pelo tribunal do júri.
Grandes manifestações aconteceram em João Pessoa e em Sapé, algumas semanas após o assassinato de João Pedro Teixeira. A imprensa repercutiu aquelas manifestações. Naquela que ocorreu em Sapé, Elizabeth Teixeira se fez presente, com seis de seus onze filhos. Ali também estavam presentes alguns membros da União Nacional dos Estudantes e entre eles, o então estudante e futuro diretor de “Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho. Surgiu ali então a ideia do projeto de um filme que narraria a trajetória de João Pedro Teixeira e da Liga Camponesa de Sapé.
Com a repercussão da morte de João Pedro, a viúva foi então convidada a ir à Brasília, onde em 2 de maio de 1962 depôs numa Comissão Parlamentar de Inquérito que prometia apurar a violência e repressão no campo. Aqueles debates contribuíram para o que veio a se tornar o Estatuto do Trabalho Rural, aprovado em 1963, dentro dos projeto das Reformas de Base do governo João Goulart. Segundo a própria Elizabeth Teixeira, o presidente João Goulart lhe encorajou a assumir a presidência da Liga Camponesa de Sapé, substituindo seu marido assassinado. Ela aceitou e se tornou a primeira mulher a dirigir uma Liga Camponesa na história do Brasil.
Contudo, ainda naquele ano de 1962, outro duro golpe se abateria sobre Elizabeth Teixeira, tão ou mais avassalador quanto o assassinato do marido. Sua filha mais velha, Marluce Teixeira, então com 18 anos de idade, tiraria a própria vida em dezembro daquele ano, após ingerir arsênico.
Elizabeth Teixeira, apesar das perdas, prosseguiu à frente da Liga de Sapé. Atuou como liderança rural de 1962 a 1964. Chegou a se candidatar ainda em 1962 para uma vaga na Assembleia Legislativa, mas não conseguiu se eleger. Entretanto, ajudou não apenas a aumentar o número de sócios da Liga Camponesa de Sapé, como também a criar outras Ligas Camponesas em municípios vizinhos, como a Liga Camponesa de São Miguel de Taipú.
Em fevereiro de 1964, aquele grupo de estudantes, que haviam presenciado o protesto ao assassinato de João Pedro Teixeira, retornou a Sapé. Iniciaria ali a execução do projeto pensado em 1962 e começaram as filmagens do filme “Cabra Marcado para Morrer”. Evidentemente, não detalharei aqui sobre as filmagens dirigidas por Eduardo Coutinho. Se o fizer, estragarei a experiência magnífica que é assistir uma obra tão memorável para aqueles os debutantes e iniciados na obra. Para os que já assistiram, estaria aqui sendo apenas repetitivo. Nada que for escrito aqui chegará perto do brilhantismo do filme.
O que convêm lembrar é o ocorrido no dia primeiro de abril de 1964, logo após o Golpe Civil-Militar, quando um destacamento do exército invadiu o Engenho Galileia, em Pernambuco, lugar que serviu de locação para as filmagens. Uma série de conflitos haviam impedido a gravação em Sapé, na Paraíba. Parte da equipe de filmagem foi presa e alguns equipamentos apreendidos. Falava-se na imprensa que um “filme subversivo feito pelos cubanos barbudos” havia sido impedido pela revolução. Elizabeth Teixeira, que atuaria no filme, fugiu com parte da equipe e retornou a Sapé. Contudo, sua vida que já era dura e sofrida até então, se tornaria quase insuportável nos eventos que se seguiram.
Ela foi presa. Sua casa, incendiada. Passou 8 meses na prisão, sendo posta em liberdade em dezembro de 1964. Quando saiu, a notícia dos assassinatos de outros dois líderes da Liga Camponesa de Sapé, Pedro Inácio de Araújo e João Alfredo Dias (o “Nego Fuba”) fez Elizabeth temer pela vida de seus filhos e demais familiares. O regime iniciado em 64 tinha por objetivo apagar do mapa as Ligas Camponesas e sua presença seria um risco para as pessoas próximas. Acompanhada de apenas dois dos filhos e entregando os demais aos cuidados de parentes, Elizabeth fugiu. Após peregrinar por Paraíba e Pernambuco, se refugiou em 1965 no município de São Rafael, sertão do Rio Grande do Norte. Temendo ser encontrada, mudou seu nome para Marta Maria da Costa. Nos 17 anos seguintes, ninguém da família e nem as autoridades sabiam do paradeiro de Elizabeth Teixeira. Apenas os dois filhos que lhe acompanharam, Abraão e Carlos, sabiam que Maria Marta era Elizabeth Teixeira.
Os 17 anos do ostracismo de Elizabeth Teixeira coincidiram com os 17 anos em que as gravações do filme de Eduardo Coutinho ficaram paralisadas. O diretor não deu por encerrado o projeto iniciado em 1964. Em 1981, ele retornou ao Engenho Galileia e a Sapé, na busca por remanescentes do projeto original. Percebeu então que poderia finalizar sua obra, não mais como filme de ficção, mas como um documentário. O nome do filme, contudo, não mudou.
Eduardo Coutinho encontrou vários dos habitantes de Sapé e ex-membros da Liga Camponesa que haviam participado das gravações de “Cabra Marcado para Morrer”. Contudo, faltava encontrar Elizabeth Teixeira. Por intermédio de Abraão, o filho que então morava no município de Patos, na Paraíba, o diretor finalmente a encontrou no município de São Rafael, então sob o nome de Marta Maria. Se mantinha graças a serviços de faxineira, lavadeira e professora alfabetizadora. Nela, não havia sido apagada a chama da luta política. Elizabeth a mantinha acesa auxiliando o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Rafael. A história do documentário é amplamente conhecida: Eduardo Coutinho reencontrou os demais filhos de Elizabeth Teixeira e, em virtude do processo de abertura iniciado no governo de João Figueiredo, ela finalmente pode reassumir seu nome de batismo. Na última cena do filme, vemos uma espécie de ressurreição de Elizabeth Teixeira: “nunca esmoreci, nunca esqueci a luta”, afirmou ela na cena final.
Desde então, Elizabeth Teixeira tem participado ativamente de iniciativas e lutas pelos trabalhadores rurais. Tendo estabelecido residência em João Pessoa, capital da Paraíba, em casa comprada pelo próprio Eduardo Coutinho, têm comparecido a diversos encontros e assembleias de movimentos rurais, se posicionando como uma memória viva de um período em que as bases do movimento organizado no campo se estabeleceram. A história das Ligas Camponesas se confundem com a história de Elizabeth Teixeira. O Memorial das Ligas Camponesas existe em função dela e como forma de perpetuar sua luta. A sede se encontra na casa onde morou com João Pedro Teixeira e filhos, no município de Sapé.
No dia 13 de fevereiro de 2025, Elizabeth Altino Teixeira completa 100 anos de idade. A ditadura lhe tirou muito. Mas não a tirou de nós. E ela nos deu muito: principalmente esperança àqueles que lutam até hoje pela reforma agrária. Contar ainda com Elizabeth Teixeira é um sopro de alento e ela é um símbolo de que ainda vale a pena lutar, por mais dura que seja a repressão daqueles que usurpam a terra – o bem que é de todos.
O jornalista Xico Sá, em coluna publicada no dia 6 de janeiro de 2025 no Jornal cearense Diário do Nordeste – parafraseando o título do filme brasileiro de Walter Sales indicado ao Oscar – afirmou que Elizabeth Teixeira “ainda está aqui”. Já em matéria de 16 de janeiro de 2025 do site do Memorial das Ligas Camponesas, Elizabeth Teixeira é chamada de uma “mulher marcada para viver”. Peço permissão para pegar emprestado estas paráfrases.
Não sei se é destino, mera coincidência ou se a história às vezes nos presenteia com pequenas gotas de justiça. Apenas sei que estamos diante de um momento em que os nomes de duas grandes guerreiras e sobreviventes de nosso mais recente regime ditatorial estão em evidência. O nome de Eunice Paiva, chegou até Hollywood. Neste pequeno texto, pretendo ajudar a espalhar ainda mais o nome de Elizabeth Teixeira. Eunice Paiva, nos deixou no ano de 2018. Já Elizabeth Teixeira, a “mulher marcada para viver”, para nossa alegria e celebração, “ainda está aqui”.
VIVA! VIVA! 100 vezes VIVA a Elizabeth Teixeira.
Referências e Obras Consultadas:
1) Filme: Cabra Marcado para Morrer (1984) – Direção: Eduardo Coutinho
2) Engenho Galileia – Disponível em: https://memorialdademocracia.com.br/conflitos/pe.
3) Memória Histórica: Dossiê Grupo Várzea parte IV: Ligas Camponesas e Golpe Civil-Militar (1959-1964) – Disponível em: https://www.brasildefatopb.com.br/2021/05/08/dossie-grupo-da-varzea-parte-iv-ligas-camponesas-e-golpe-civil-militar-1959-1964
4) Elizabeth Teixeira, uma mulher marcada para viver – Disponível em: https://www.ligascamponesas.org.br/elizabeth-teixeira-uma-mulher-marcada-para-viver/
5) A questão agrária no Brasil: História e natureza das Ligas Camponesas (1954-1964) – Organização: João Pedro Stedile
6) Que são as Ligas Camponesas? – Autor: Francisco Julião
7) As Ligas Camponesas – Autora: Elide Rugai Bastos
8) Violência entre (des)iguais: memórias silenciadas nas lutas da Liga Camponesa de Sapé-PB (1962-1964) – Dissertação de Mestrado (UFPB) – Autora: Juliana Ferreira Alves
9) Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco – Autor: Antônio Callado.