Posted on: 24 de outubro de 2025 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Anna Haddad

Aqui nós morreremos. Aqui, na passagem final.

Aqui ou ali, o nosso sangue plantará oliveiras.

DARWISH, Mahmoud. Estado de Sítio.

1. Terra arrasada

Os últimos cem anos da história palestina estão marcados por deslocamentos, desapropriações, exílios e perdas sucessivas. O povo palestino vive sob diferentes formas de ocupação, expulsão, cerco ilegal e violência estrutural, processos que configuram colonialismo de povoamento (settler colonialism), regime de apartheid e um genocídio em curso. Além da expropriação de suas terras, enfrentam também a deliberada distorção e  cooptação de sua história, destituição de sua memória e o enfraquecimento de sua própria humanidade. Desde 2023 o mundo tem visto tudo isso acontecer sistematicamente na tela dos celulares, quase que ao vivo. 

O que fica mais difícil de mensurar pelas telas é a tremenda destruição de terras férteis, a escassez de água potável e o enorme acúmulo de lixo e rejeitos na Palestina. Relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA, 2024)  têm destacado que a destruição da terra agricultável em Gaza ultrapassa o dano imediato das operações militares, configurando um processo contínuo e antigo de degradação ambiental. Estima-se que mais de 39 milhões de toneladas de escombros e resíduos tóxicos se espalharam por toda a Faixa de Gaza, o equivalente a mais de 107 kg de destroços por metro quadrado, uma carga de destruição ambiental sem precedentes na região. 

A escassez de água também não é um fenômeno natural, é resultado direto da ocupação e do bloqueio. O sistema hídrico já se encontrava em colapso antes da escalada atual do genocídio, resultado de décadas de superexploração do aquífero costeiro, poluição crônica e ausência de infraestrutura adequada de saneamento. Israel controla os fluxos de água que entram, o fornecimento de energia elétrica (essencial para o bombeamento e a dessalinização) e a importação de equipamentos para infraestrutura, bem como a permissão de entrada para reparos necessários das estações de tratamento e usinas. Nos últimos anos, a infraestrutura de água e saneamento praticamente colapsou: plantas de tratamento foram destruídas ou ficaram sem energia, resultando no despejo de milhares de metros cúbicos de esgoto bruto no solo, nas águas costeiras e nos aquíferos subterrâneos. O Relatório de 2024 do PNUMA também indica que, para além da falta, a qualidade da água do aquífero foi comprometida pela poluição causada por pesticidas agrícolas e esgoto sem tratamento, fazendo com que os níveis de nitrato atingissem seis vezes o limite recomendado pela OMS para água potável. Se água é vida, os palestinos de Gaza já começam o dia com sede dela, ou sendo gradualmente envenenados.

Chegamos à terra, enfim. No setor agrícola, satélites mostram que mais de 65 % das terras cultiváveis e dos pomares permanentes foram destruídos, danificados ou tornaram-se inacessíveis aos agricultores palestinos, enquanto os solos foram destroçados por veículos de combate, maquinário militar e bombardeamentos, uso de fósforo branco, arranque mecanizado de oliveiras e de outras plantações, plantio deliberado de espécies invasoras como o eucalipto, entre outras milhares de ações criminosas de degradação da terra. Israel inviabiliza a regeneração do ecossistema, destrói o setor agrícola e prototipa um cenário de escassez de vida. 

O que se configura em Gaza, portanto, não é apenas um colapso humanitário, mas uma destruição metódica da ecologia e das condições mínimas de reprodução da vida. Os corpos humanos e os corpos da terra se confundem nas ruínas: ambos bombardeados, ambos sitiados, ambos privados de regeneração.

2. A oliveira como símbolo de sumud

“A erradicação de um setor responsável pela produção de alimentos em uma população que há muitos anos enfrenta a insegurança alimentar coincidiu com a perda de meios de subsistência e com a perda de identidade cultural e de conexão com a terra, como aquela associada às oliveiras de crescimento lento, fontes tanto de nutrição quanto de significado cultural”. 

– Relatório PNUMA 2024

Imagem da oliveira Al Badawi, árvore milenar com aproximadamente 4.000 a 5.000 anos de idade, localizada na aldeia palestina de Al-Walaja, próxima a Belém. Fonte: Reflections: The Olive Tree and the Palestinian Struggle against Settler-Colonialism.

Segundo o Instituto de Pesquisa Aplicada de Jerusalém (ARIJ) estima que 2,5 milhões de árvores foram arrancadas desde 1967, um terço delas oliveiras, e o restante composto por outros tipos de árvores frutíferas, incluindo cerca de 34 mil tamareiras. Esse massacre das oliveiras se intensificou com o aumento de colonos ilegais ao longo dos anos, e escalaram de forma ainda não mensurada após 7 de outubro de 2023. Assistimos milhares de cenas de militares e colonos ilegais israelenses vandalizando, cercando e destruindo plantações de oliveiras, enquanto impediam, atacavam e matavam camponeses palestinos que tentassem acessar suas plantações. 

Imagem extraída de Palestinian Return Center. Íntegra da reportagem aqui.

Rehab Nazzal, em seu trabalho Reflexões: a oliveira e a luta palestina contra o colonialismo de povoamento (Reflections: the olive tree and the Palestinian struggle against settler-colonialism), descreve imagens de quando voltou a Belém em 2015, na Cisjordânia ocupada ilegalmente, e vê a mudança brutal de seus lugares de memória:

“Trilhas que atravessavam olivais nas colinas palestinas de Belém ou Jerusalém estão desaparecendo, substituídas por colônias, “zonas de segurança”, “zonas de tiro”, “zonas de contenção” ou “áreas de lazer de colonos”. Oliveiras palestinas milenares são “degoladas”, queimadas, arrancadas, roubadas, vendidas ou transplantadas para colônias judaicas pelas forças israelenses e por colonos armados.”

Economicamente, qualquer impacto sobre a colheita de oliveiras reverbera fortemente, seja em termos de rendimento familiar, de economia local ou de exportação. Estimativas apontam que cerca de 80.000 a 100.000 famílias palestinas dependem da colheita de oliveiras para parte de sua subsistência (Al Jazeera, 2021; Mongabay, 2023). As oliveiras são capazes de sobreviver às condições climáticas mais severas, incluindo seca e solo pobre, e de crescer nas montanhas e nos wadis (vales) palestinos e do sul do Líbano. Por isso, mais do que uma árvore relevante para a soberania e segurança alimentar dos palestinos, a oliveira simboliza raiz, resiliência e identidade. É uma expressão de permanência teimosa e amorosa na terra, mesmo sob o peso da destruição. 

Nazzal continua sua análise descrevendo a sensação de assistir à destruição de várias oliveiras de sua vizinhança, na cidade cristã de Beit Jala. O objetivo da ocupação israelense era criar uma zona de segurança e construir um trecho do Muro do Apartheid:

Imagem extraída de Reflections: the Olive Tree and the Palestinian Struggle against Settler-Colonialism


“Testemunhar o linchamento de oliveiras antigas foi doloroso e chocante. A exterminação do povo colonizado se estende aqui, diante dos meus olhos, para o massacre de sua cultura e das árvores que sustentam a própria vida humana. O uso dos termos “linchamento” e “massacre” para descrever o arrancamento das oliveiras palestinas é deliberado, com o intuito de sugerir que atos genocidas também incluem outros seres vivos. Minha experiência nos impulsiona a repensar nossa percepção sobre os direitos da natureza, inclusive das árvores frutíferas, e a reconhecer a necessidade de criar agência para esses monumentos vivos.”

Sumud é um conceito palestino e árabe, que nasceu de um sentimento íntimo de conexão com a terra. Embora hoje tenha diferentes interpretações, trata-se de lidar, todos os dias, com a sensação de perder o chão, perder suas raízes, de ser desumanizado e ainda assim encontrar esperança para seguir vivendo. Embora a terra siga sendo fundamento de sumud, The Third Way, de Raja Shehadeh, publicado em 1982, revelou uma faceta diferente do conceito: sua dimensão espiritual e humana. Esse aspecto tem recebido cada vez mais atenção ao longo dos anos, à medida que as pessoas começaram a olhar para além das preocupações práticas e econômicas impostas pela vida sob ocupação.

Segundo Toine van Teeffelen na obra Sumud: a alma do povo palestino, reflexões e experiências (Sumud: soul of the Palestinian people – reflections and experiences), “a necessidade de permanecer firme na terra continua sendo central para o conceito de sumud, mas é o cultivo de uma determinada mentalidade que está em seu cerne, não a localização física nem as estratégias de libertação, por mais importantes que sejam.”

Abu Srour é uma figura importante da resistência cultural palestina. Ele é diretor do Centro Cultural Ruwwad, localizado no campo de refugiados de Aida. Sua trajetória é analisada por Teeffelen na obra mencionada como exemplo vivo do que chama de sumud pessoal, a perseverança e o compromisso de permanecer ou retornar à terra, mesmo diante da diáspora forçada:

“Deixe-me te dar um breve resumo do que é sumud. Sumud é continuar vivendo na Palestina, rindo, aproveitando a vida, se apaixonando, casando, tendo filhos. Sumud é também continuar os estudos fora, conquistar um diploma e voltar para cá. Defender valores é sumud. Construir uma casa, uma casa bonita, e pensar que estamos aqui para ficar, mesmo quando os israelenses a destroem, e então construir outra, ainda mais bonita que a anterior, isso também é sumud. O simples fato de eu estar aqui é sumud. Reafirmar que sou palestino, onde quer que eu esteja, é sumud. Reafirmar que você é um ser humano, e defender a sua humanidade, é sumud.”

– Abu Srour em entrevista para a obra Sumud: Soul of the Palestinian People

Nesse sentido, cuidar das oliveiras é cuidar de tudo o que ainda resiste: é restaurar o gesto ancestral de permanecer. Em cada muda plantada há uma recusa silenciosa, uma afirmação de existência. Sob o cerco, o plantio vira oração; o cuidado, insurreição. O sumud é esse alicerce espiritual que transforma a persistência cotidiana, o simples ato de cultivar a terra, de insistir no retorno, em linguagem política.

3. Terra e território: arquivos vivos de memória coletiva

A terra e o território são mais do que recursos econômicos: constituem arquivos vivos de memória coletiva e campos de resistência cultural contracolonial, espaços onde se inscrevem disputas simbólicas, políticas e espirituais. Em contextos de colonização e exílio, eles não apenas delimitam espaço: eles narram. Cada sulco no solo, cada oliveira arrancada, cada nascente contaminada, torna-se uma inscrição no corpo da história. O território é, assim, uma escritura em disputa: uma superfície onde se escreve e se apaga o mundo, e onde as relações são reconfiguradas.

Na Palestina, a destruição da terra é também a destruição de um modo de existir. Ao explodir pomares, pavimentar vales, represar rios e erguer muros sobre as colinas, o projeto colonial não visa apenas ocupar o espaço, mas reescrever a própria ontologia do território. Essa perspectiva desloca o olhar do rendimento econômico para a centralidade da terra como base fundamental de sumud.

Contra essa geopolítica da ruína, o povo palestino tece, cotidianamente, uma contra-cartografia da vida: mapas feitos de afetos, histórias, cultivos, mutirões e caminhadas. Cada ato de plantar, resistir e reconstruir é um gesto de reinscrição simbólica, uma forma de reivindicar a memória da terra como direito inalienável.

Como lembra Abdelmalek Sayad, a migração forçada e o deslocamento não se limitam à perda do espaço físico, mas implicam a ruptura de um elo ontológico: a separação entre o ser e o lugar que o produz. O território, portanto, não é apenas cenário da existência, mas condição dela. Daí o caráter insurgente dos esforços palestinos de permanecer e cultivar: trata-se de restaurar o vínculo entre corpo, solo e história, constantemente corrompido pela violência colonial.

Essa dimensão relacional, que articula vida, espiritualidade e ecologia, aproxima o conceito palestino de sumud daquilo que Arturo Escobar chama de territorialidades vivas, práticas que afirmam o território como espaço de mundo, e não de propriedade. O território deixa de ser um bem a ser controlado e torna-se um corpo coletivo de saberes, vínculos e interdependências, onde se dão as possibilidades de futuro.

Reocupar, replantar e cuidar da terra, portanto, são formas de inscrever de volta o comum, devolver à natureza e à memória o que o poder tentou apagar. 

4. Tempo de colheita: mutirões de resistência


Entre os meses de outubro e novembro, quando as azeitonas amadurecem, aldeias inteiras na Palestina se organizam em jornadas coletivas para a colheita. É o tempo de al-‘ouneh (العونه), palavra árabe que significa “ajuda mútua”, uma prática ancestral semelhante ao mutirão que atravessa séculos de dominação, guerra e ocupação.

Imagem extraída do mini-documetário Agroresistance in Palestine, produzido pelo Baladi – Rooted Resistance, projeto multimídia focado na resistência agroecológica e na luta por soberania alimentar na Palestina.

Assim como o mutirão constitui uma das formas mais antigas de trabalho coletivo no Brasil, articulando cooperação, solidariedade e ritualização da vida rural, de modo semelhante, na Palestina, o al-ʿouneh estruturou-se como arranjo comunitário enraizado em vínculos de parentesco, vizinhança e reciprocidade aldeã. Famílias, vizinhos e comunidades inteiras se reúnem para colher as oliveiras, preparar o azeite, cuidar da terra e proteger uns aos outros das incursões de colonos e das forças de ocupação. Esse período, marcado pela festa e pela vigilância, é também um tempo político, um tempo suspenso em que o trabalho manual se transforma em ritual de resistência, amor e continuidade.

A prática é retratada na série semibiográfica Mo, protagonizada pelo comediante Mohammed Amer, que performa uma versão fictícia de sua vida como refugiado palestino em Houston, Texas. No último episódio, intitulado “Um chamado de Alá”, Mo consegue voltar para a Palestina junto com a família em época de colheita, e seu sonho de mutirão e comunhão com os seus finalmente se realiza ao redor de muita azeitona, zaatar, sálvia, zaatar, familiares, amigos e ao som de Alā Dalʿūnā (“vamos ajudar” ou “vamos juntos”, derivado do árabe على دلعونا / ʿalā dal‘ūnā), uma canção folclórica muito popular no Levante, principalmente Líbano e Palestina. 

على دلعونا وعلى دلعونا

زيتون بلادي أطيب زيتونا

زيتون بلادي واللوز الأخضر

والمرمية ولا تنس الزعتر

“Vamos juntos, vamos ajudar,

As azeitonas da minha terra são as mais saborosas,

As azeitonas da minha terra, e as amêndoas verdes,

E a sálvia do campo, não te esqueças do za’atar.”

Imagem da série Mo, do Netflix.

Entre o al-‘ouneh palestino e o mutirão que pulsa nas comunidades camponesas e nos territórios de luta no Brasil, há um parentesco profundo. Ambos nascem da necessidade de sobreviver e permanecer através da cooperação, mas também do desejo de viver bem em comum. São práticas de solidariedade enraizadas na terra, que não se reduzem à economia, porque afirmam outra temporalidade e outro horizonte de existência. No mutirão, assim como em al-‘ouneh, o trabalho se converte em gesto espiritual: plantar, colher, guardar, partilhar, cuidar: tudo é parte de uma mesma coreografia de sustento e reciprocidade. Atos de sumud.

Imagens de mutirão de colheita de milho crioulo no Assentamento Terra Vista, liderado pelo Mestre Valmir e integrantes da Rede de Sementes da Teia dos Povos

A colheita, então, deixa de ser apenas o fim de um ciclo agrícola e se torna um rito de permanência, o momento em que o povo se reencontra com a terra e com sua própria memória. Cada cesta de azeitonas, como cada roça de cacau cabruca, é uma promessa de continuidade.

Nesses gestos compartilhados, a terra volta a ser comunal. O tempo se reabre. A vida insiste. A noção de patrimônio cultural imaterial permite compreender essas práticas agrícolas não apenas como técnicas produtivas, mas como modos de vida, cosmovisões e narrativas que definem e protegem coletividades. 

Do lado de cá do mundo, a Teia dos Povos junto com a Glac, reedita e lança o clássico de Clóvis Caldeira, de 1956: Mutirão, formas de ajuda mútua no meio rural. Para contribuir com a impressão e garantir o seu exemplar, clique aqui. Na Palestina, a luta segue. Agora, em época de colheita de azeitonas, comunidades inteiras, organizações sociais e populares locais e da diáspora convocam pessoas de todo o mundo a se somarem aos mutirões de colheita, em apoio à resistência palestina. Se você se interessou e quer saber mais, clique aqui.

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سورة البقرة (Al-Baqarah) 2:153

يَا أَيُّهَا الَّذِينَ آمَنُوا اسْتَعِينُوا بِالصَّبْرِ وَالصَّلَاةِ إِنَّ اللّٰهَ مَعَ الصَّابِرِينَ


yā ayyuhā l-ladhīna āmanū ista‘īnū biṣ-ṣabri waṣ-ṣalāh, inna llāha ma‘a ṣ-ṣābirīn

“Ó vós que credes, buscai auxílio na paciência e na oração; em verdade, Deus está com os perseverantes”.

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Seguimos juntos, na luta.

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