Por Hamilton Borges da Reaja ou Será Mort@
A utopia daquele mundo preto, responsivo e responsável, voluntário e amoroso teve seu final e não existe redenção para nossos sonhos revolucionários. Não posso mais abraçar.
A ideia superior de uma luta coletiva, de um povo em libertação nacional, não pode se dar sem o financiamento do inimigo, o inimigo inventa jargões e nos divide por somas em dinheiro para causar nossa destruição. Antirracismo, empoderamento, tombamento, cancelamento e outras palavras vazias desconsideram décadas de organização e formação política que as militantes pretas nos deixaram como legado para nos dar liberdade, a liberdade se conquista na guerra. Agora o povo se especializa em reality show e fofoca, ser militante é um tipo de ofensa, todos e todas querem mesmo é ser influencer e ativista, a panfletagem diária nos stories de sua comida, sua raiva, sua tristeza e sua alegria, seu banho na praia durante uma pandemia, sendo essa bomba de COVID depositada dentro de casa, contaminando os avós, porque não pode parar um pouquinho com a gozolândia para refletir coletivamente nosso destino enquanto um povo à deriva. Nem os preceitos religiosos são mais os mesmos, é tudo pose, apostilas e fotos de entidades cobertas de luxo, terreiros suntuosos, pretos e pretas vendendo a fé como Tim Tones ou o pregador Edir.
Meu mundo acabou, meu mundo é a aniquilação total de pretos, é fome, dor e o desespero de multidões, loucura, ira, covardia de um tiro de misericórdia num menino de doze anos. Meu mundo é cela repleta, prato vazio e alma furiosa esperando oxigênio para libertar toda dor escondida, meu mundo é retinto, amargo, ressentindo, cheio de problema e conflito, quem não quer conflito se afaste.
Meu mundo são ofensas retribuídas proporcionalmente ao agressor, soco na cara, tiros, e uma boa fuga quando o oponente merecer essa distinção que não dei a ninguém ainda, meu mundo é raivoso, oprimido nas abordagens da polícia porque não adianta o quanto eu envelheça ainda sou o suspeito padrão desses senhores de engenho, ainda sou um preto em fuga. Meu mundo é violento e rude, meu mundo tem o rosto grave e sério e um vocabulário limitado, meu mundo são os escombros da cidade por onde passei, a esperança deixada na vala, a desgraça se engraçando com as meninas e as levando para as esquinas.
Meu mundo acabou e, eu fiquei só com minhas lembranças de um tempo que eu reunia uma horda de ratos, um bando de dejetos humanos que me seguia, meu mundo desconhecia o medo, desconhecia gracejos de internautas valentes.
Meu mundo acabou, como minhas forças que estão cedendo, meus ossos que vão ruindo e meu coração que está secando por baixo de minha pele e minha mente que continua preta, de algum modo triste, fria e só.
Meu mundo são verões pensando em uma tática para educar crianças, modos de alimentar pessoas, jeitos de promover a cultura onde o esgoto transborda, nunca tive tempo para praia, piscina, balada e fotos em iates, meu povo almeja me ver sim, mas como exemplo, esse ativismo capitalista é notório filho do racismo e do ódio entre nós.
Meus irmãos como eu, querem liberdade, comer bem e sem veneno, querem dançar em festas sadias e trilhar um caminho honesto de progresso. Não ostentar, isso não.
Meu mundo acabou, mas eu não quero participar desse mundo imundo de vocês, cheios de opiniões para tudo que tem no lixo da TV, cheios de conselhos de investimentos financeiros para charlar de novo rico enquanto seu povo briga por água potável, olha um livro e não sabe ler, quer um real pro pão e tem que enfrentar o ódio dos brancos no farol.
Esse mundo de vocês é um lixo, como todo esse seu repertório afrocentrado, essa bata cara, seus restaurantes finos e suas teses que ninguém lê, seu mundo é uma distração para os projetos de dominação que nos são impostos, seu mundo quer destruir décadas de um movimento de luta que nos trouxe orgulho.
Meu mundo acabou, mas eu ainda estou vivo ao contrário do que vocês queriam.
Janeiro de 2021.