Posted on: 14 de dezembro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Análise publicada originalmente em inglês pela Academia de Jineologî

Tradução: Florencia Guarche

A hostilidade da Turquia e de suas gangues contra as mulheres revela uma guerra de duas frentes na  Síria. O líder do povo, Abdullah Öcalan, previu para o século XXI: “Ou o socialismo ou a barbárie”.  Essa oposição pode ser interpretada como, por um lado, “Jin, Jiyan, Azadî” (traduzido como: Mulher,  Vida, Liberdade) ou “Homens, Estado, Violência”. 

As forças hegemônicas usaram a terceira guerra mundial em andamento, cujo centro é o Oriente  Médio, para colocar em ação um novo plano na Síria a partir do dia 27 de novembro. De acordo com  informações de fontes locais, desde o verão, as gangues que mantêm campos de treinamento em Idlib  e Rehyanli apresentaram uma nova versão de seu curso: “treinar e equipar”, e depois lançaram seus  recrutas em campo na Síria. 

Os eventos que estão ocorrendo a uma velocidade alucinante nos últimos dias de 2024 indicam como  será o ano de 2025. É claro que, nesse contexto, cada potência hegemônica tem um novo plano  próprio. Será que as forças democráticas da Síria e do Oriente Médio são capazes de proteger seu  povo, suas mulheres, suas culturas, sua natureza e o futuro contra esses planos, independentemente do  desenrolar da situação? Responderemos a essa pergunta no momento oportuno, mas agora vamos  analisar as aspirações das potências hegemônicas que tentam conquistar não apenas nossa terra, mas  também nossos corações e mentes.

De quem é essa guerra?

Quem está por trás desse exército de homens que nós, mulheres, conhecemos bem? Quem os coloca  em ação e o que eles desejam? Os Estados hegemônicos patriarcais, que todos conhecem e dos quais  falam pelo nome hoje, estão mais uma vez tentando dividir o Oriente Médio cem anos após a Primeira  Guerra Mundial. Essa guerra começou em 2011, com o início da guerra civil na Síria. O nível de  conflito e os métodos de guerra mudaram como resultado das guerras por procuração e do envio de  forças paramilitares para lutar nelas.

Sempre que fracassavam, mudavam de nome e de aparência

Desde o início da guerra, os crimes do ISIS, criados por países imperialistas e trazidos para a região,  foram cometidos diante dos olhos do mundo inteiro. A Al-Qaeda evoluiu para a Al-Nusra, que, por sua  vez, evoluiu para o Hayet Tahrir Al Sham (HTŞ) e, posteriormente, para o ISIS1. Depois de serem  derrotados pelo YPJ/YPG2, os remanescentes do ISIS e do HTŞ se renderam à Turquia, sua parceira, e  se uniram a gangues com a mesma mentalidade. Sempre que fracassavam, mudavam de nome e de  aparência. O Exército Livre da Síria (FSA), afiliado à Turquia, foi “treinado e equipado” pelas forças  hegemônicas e, depois, enviado à região sob o nome de Exército Nacional Sírio (SNA). Ele é  composto por cerca de trinta gangues diferentes.

Essa guerra é travada no corpo das mulheres

Onde quer que essas gangues invadissem, elas declaravam guerra contra o corpo das mulheres,  buscando conquistar a região inteiramente. Na Síria, onde a guerra ainda está em andamento, é  impossível reportar com exatidão todos os crimes contra as mulheres por meio de dados ou  estatísticas. Em relatório publicado em 2018, as Nações Unidas declararam que milhares de mulheres  e crianças foram estupradas durante a guerra. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos, com sede no Reino Unido, revelou em relatório que, desde março de 2018, 353.900 pessoas perderam suas  vidas, entre elas 106.000 civis. As 56.900 pessoas desaparecidas e presumivelmente mortas não estão  incluídas nesse número. 

De acordo com a mesma agência, as mortes de cerca de 100 mil pessoas não foram documentadas.  Estima-se que 40% dos mortos sejam mulheres e crianças. Metade dos refugiados sírios são mulheres.  Sabe-se que as mulheres refugiadas na Turquia, no Líbano e na Jordânia são forçadas à prostituição e  vendidas em casamento por dinheiro. 

Eles se tornaram os mensageiros da morte, enquanto as mulheres se tornaram as guardiãs da  vida

Em todas as cidades, distritos, vilas e aldeias que essas gangues invadiram, deixaram para trás pessoas  decapitadas e mulheres estupradas, sendo tratadas como pilhagem de guerra. Eles devastaram a  natureza. Saquearam casas e ninguém, além das forças curdas, lhes disse para parar. Somente as forças  curdas lutaram e os detiveram. A partir disso, surgiu a resistência das mulheres e de todas as  comunidades contra essas gangues. Homens e mulheres se uniram contra essas gangues. Com o poder  do intelecto e da ação do paradigma democrático, ecológico e de libertação das mulheres do líder do  povo Abdullah Öcalan, com a cultura de resistência de 40 anos do PKK e com a linha de 30 anos do  movimento de libertação das mulheres por trás deles, os curdos estavam prontos para enfrentar essas  forças de frente. Ao mesmo tempo, com suas conquistas em todas as frentes em que lutaram,  espalharam a palavra de que o Oriente Médio não precisa de forças obscuras. 

Enquanto essas gangues e seus patrocinadores levavam morte e massacres a todos os lugares que  alcançavam, o movimento de libertação das mulheres levava vida e liberdade a todos os lugares por  onde passava. A filosofia de vida foi coroada com a Revolução de Rojava e com a Revolução das  Mulheres de Rojava. Passo a passo, ela cresceu, da representação igualitária à coliderança3, da  autodefesa à participação na Administração Autônoma, tornando-se um modelo para as mulheres do  mundo. 

Na guerra civil síria, o povo de Rojava não escolheu nem as potências estrangeiras nem o regime  antidemocrático sírio. Eles optaram pelo terceiro caminho, baseado no paradigma da “Autonomia  Democrática” e da “Nação Democrática”4, desenvolvido pelo intelectual Abdullah Öcalan, e iniciaram  a Revolução de Rojava em 2012. Passo a passo, expulsaram as forças do regime sírio de suas cidades e  declararam cantões autogovernados. Foram criados sistemas de autodefesa e autogoverno. Em 4 de  abril de 2013, foi anunciada a formação das Forças de Defesa das Mulheres (YPJ), a força de  autodefesa das mulheres. A Revolução de Rojava tornou-se um modelo alternativo no Oriente Médio e  continua se desenvolvendo até hoje. Com essa resistência e o conhecimento de representação  igualitária e autodefesa, Rojava se tornou um exemplo de convivência e, assim, assumiu a  responsabilidade histórica associada a essa visibilidade, enquanto o mundo inteiro a observava. Isso  causou um grande impacto, especialmente entre as mulheres. A borboleta da liberdade voou de Rojava  e deixou seu selo no século XXI com a fórmula mágica de “Jin Jiyan Azadi” no Curdistão Oriental5,  fazendo com que esse slogan se tornasse universal. Essa mágica, no caminho da liberdade das  mulheres, carregou o significado e o símbolo de que o século XXI se tornaria o “século das mulheres”,  como afirma Öcalan em Beyond State, Power and Violence6. Da Indonésia à Índia, do Quênia à  Catalunha e Abya Yala (América Latina), esse se tornou o método e o slogan da luta do povo contra o  colonialismo. 

“Exportação de gangues” contra o modelo de Rojava

Em oposição a esse modelo de autonomia democrática de Rojava, que se tornou uma referência no  Oriente Médio, as ideologias fanáticas religiosas, nacionalistas e sexistas da modernidade capitalista  foram colocadas em movimento. O Estado turco surgiu por iniciativa própria como representante  dessas ideologias. Ele trouxe gangues de dentro e de fora para implementar políticas misóginas,  fundamentalistas islâmicas e racistas-fascistas no território sírio. A exportação dessas gangues não se  limita à Síria, mas também se estende à Líbia, ao Sudão, à Somália e a muitas outras partes do mundo onde a Turquia atua. Seu objetivo era disseminar políticas hostis às mulheres e aos diferentes povos do  mundo. Como esse não é o nosso tópico, não nos aprofundaremos muito nele, mas os interessados  podem pesquisar em que lugares da África as gangues do Estado turco estão instaladas e como  cometem crimes contra a população. Todos sabem que o Estado turco é um dos maiores financiadores  e apoiadores da Guerra Civil da Síria. As relações econômicas e petrolíferas com as gangues jihadistas vieram à tona, assim como os laços ideológicos com essas gangues estão detalhados em muitos  documentos de organizações internacionais. 

A Al-Nusra, derrotada pelo YPJ, reapareceu com o nome de HTS

Nesses dias, com o processo que começou com a ocupação de Aleppo, muitas partes, incluindo os  países europeus, viram o HTS, nome atual da Al-Qaeda e da Al-Nusra, como o candidato “moderado” ao governo sírio. Os primeiros ataques dessa organização foram realizados na região de Serêkaniyê  contra o Rojava, e foram derrotados pelas forças de autodefesa, que incluíam o YPJ. Com a ajuda dos  Estados imperialistas e das forças hegemônicas regionais, o ISIS surgiu e foi lançado na Síria. Em  outubro de 2014, eles atacaram o cantão de Rojava, mais precisamente a cidade de Kobanê. O YPJ se  organizou como uma força de autodefesa e assumiu seu lugar na guerra para defender Kobanê..  Quando Kobanê foi libertada, a primeira bandeira hasteada foi a do YPJ. A YPJ, que conta com  milhares de mulheres organizadas para a autodefesa, lutou contra o ISIS em Manbij, Tabqa, Raqqa e  Deir ez-Zor, desempenhando um papel importante na libertação dessas cidades. 

Em Afrin, a frente de liberdade das mulheres foi atacada

Em 20 de janeiro de 2018, o Estado turco, com a aprovação das potências hegemônicas, atacou o  cantão de Afrin. O envolvimento do Estado turco com as forças paramilitares utilizadas na Síria ficou  escancarado com o ataque e a sequente invasão do território de Afrin. Cerca de 25 gangues do ISIS  também participaram dos ataques, sob o nome e a bandeira de Exército Livre da Síria (SNA). O  mundo inteiro assistiu a esse ataque brutal do Estado contra uma pequena cidade. Afrin foi ocupada  pelo Estado turco e suas gangues em 18 de março desse mesmo ano. Assim como em qualquer outro  lugar, o mesmo aconteceu em Afrin: os primeiros alvos dos invasores foram as mulheres. O Estado  turco e suas gangues afiliadas divulgaram um vídeo da tortura realizada no corpo da combatente do  YPJ, Barîn Kobanê. A partir dessa filmagem, ficou claro o quanto o Estado turco e suas gangues  afiliadas são brutais e odiosas contra as mulheres. Um número desconhecido de meninas foi  sequestrado em Afrin. Mulheres foram estupradas. Os incidentes contra as mulheres aumentam a cada  dia. 

A Organização de Direitos Humanos Efrin declarou que 30% dos ataques na cidade são contra  mulheres e relatou que muitas delas ainda são meninas. O relatório afirma que 500 mulheres foram  assassinadas de diferentes maneiras e 60 mulheres foram agredidas sexualmente. De acordo com o  relatório, o destino de milhares de mulheres que foram sequestradas pela “polícia militar” pertencente  ao Estado turco não é conhecido, algumas dessas mulheres foram libertadas em troca de resgate.  Depois que a cidade foi ocupada, 500.000 pessoas, metade das quais eram mulheres, deixaram a cidade porque sabiam como as gangues eram brutais e continuaram suas vidas nos campos de  refugiados de Shehba-Til Rifat. Em particular, os membros da Gangue do Sultão Murat cometeram  muitos atos brutais contra as mulheres curdas em Afrin. Na cidade onde a demografia foi alterada, as mulheres e os curdos não permaneceram. Milhares de mulheres foram estupradas, elas não podem sair  sem a permissão dos homens e os crimes das gangues estão se expandindo7

Os assassinos de Hevrin Khalef8 estão em Aleppo

Em 9 de outubro de 2019, o Estado turco e as gangues afiliadas ao ISIS, incluindo o Exército Nacional  Sírio (SNA), lançaram uma ofensiva de invasão contra as cidades de Rojava de Serêkaniyê e Girê Spî.  O Estado turco e suas gangues cometeram crimes de guerra contra centenas de mulheres. Vamos  relembrar alguns deles. O alvo inicial dos invasores foram novamente as mulheres. Em 12 de outubro,  a copresidente do Partido do Futuro as Síria (Syrian Future Party), Hevrin Khalef, sofreu uma  emboscada em seu veículo e foi assassinada na estrada M4. As gangues publicaram seus crimes em  contas de mídia digital. Nos relatórios da ONU, foi mostrado que Hevrin Khalef foi assassinada pela  gangue Ahrar Sharkiye. Essa gangue, pertencente ao Estado turco, juntou-se à guerra em Aleppo  atualmente. 

Em 26 de outubro, o corpo da combatente do YPJ Amara Rênas foi torturado e essa violência foi  filmada por gangues mercenárias afiliadas ao Estado Turco9. Os grupos que realizaram e gravaram a  sua tortura a compartilharam em contas de mídia digital. De acordo com os dados recebidos pela  Organização de Direitos Humanos da Região de Cizre, muitas mulheres foram sequestradas de  vilarejos na região de Girê Spî. Além disso, véus pretos foram impostos às mulheres,  independentemente de sua religião. Em Serekaniyê, onde pessoas de diferentes grupos étnicos e  religiosos viviam juntos pacificamente antes da ocupação, 5 mulheres chechenas, 50 árabes e 120  curdas foram sequestradas pelas gangues do Estado de ocupação turco entre 2019 e 2022, de acordo  com relatórios de organizações de direitos humanos. 

Aqueles que se banqueteiam com os lobos choram com os pastores 

Na Síria, onde vidas humanas são reduzidas a mercadorias e comercializadas com fins lucrativos sem  consideração pela humanidade, certas forças – que foram participantes ativos na causa da guerra – publicam periodicamente relatórios sob o pretexto dos Direitos Humanos, apresentando o balanço do  conflito. Esses mesmos poderes, que personificam o provérbio “Aqueles que se banqueteiam com os  lobos e choram com os pastores”, revelando sua hipocrisia ao publicar relatórios que expõem como  essa geografia foi transformada em um inferno. 

O chefe da Comissão de Investigação da Síria da ONU, Paulo Sérgio Pinheiro, em uma entrevista  concedida em 2023, admitiu que o Estado turco e suas gangues afiliadas atacaram as áreas curdas e  disse: “Em Afrin, Serekani e seus arredores, o Exército Nacional Sírio pertencente ao Estado turco  toma pessoas como reféns, comete atrocidades e crimes de guerra como tortura e estupro contra as  pessoas. Muitas pessoas foram mortas em ataques aéreos e terrestres. Além disso, nas áreas curdas, os  saques, a invasão das casas das pessoas e o deslocamento de pessoas continuam ininterruptos. Todas as  sociedades nesses locais e as culturas existentes estão sendo atacadas. Os patrimônios da UNESCO  foram saqueados e destruídos com escavadeiras.” 

Nessa região, eles não podem facilmente fazer o que quiserem

Deve-se afirmar claramente que os dados estatísticos cronológicos que apresentamos acima são a  ponta do iceberg para mostrar quem está lutando contra quem na Síria atualmente. Apesar de todos os  ataques de ocupação, deslocamentos, mudanças demográficas, estupros, assassinatos, sequestros e  aprisionamento de mulheres, a revolução de Rojava permaneceu de pé. A Administração Autônoma do  Norte e Leste da Síria (AANES) provou que a trindade homem-Estado-violência10 no Oriente Médio  não é o nosso destino. Como parte dessa linha de resistência, sem dúvida a luta que está ocorrendo nas  montanhas do Curdistão tem uma grande conexão com a linha de autodefesa dos povos e das  mulheres. O Estado turco e suas forças de apoio tiveram que perceber mais uma vez que não podem  fazer tudo o que querem tão facilmente nessa região, especialmente no Curdistão. 

O 7 de outubro e a legitimação da violência 

Exatamente nesse momento, todas as forças patriarcais fascistas do Estado em todo o mundo estão  travando uma nova guerra para dividir a região com a violência ilimitada da mentalidade masculinista dominante. Pelas mãos do Estado turco, o guardião da hegemonia no Oriente Médio, eles estão mais  uma vez tentando manter essa geografia mergulhada na violência. Na verdade, a faísca que deu início  a esse processo foi o conflito Hamas-Israel em 7 de outubro e, desde então, o atropelo da dignidade  humana e o uso ilimitado da violência têm sido cada vez mais legitimados. Em resumo, as forças  dominantes nessa guerra concordaram, fornecendo apoio secreto umas às outras, com a mensagem  implícita: “Não importa o que vocês façam às pessoas e às mulheres, ninguém os  responsabilizará”. Outro aspecto desse acordo é o aprofundamento do patriarcado. As forças do  sistema, por meio de seu envolvimento direto em guerras por procuração e do uso de milícias de  gangues como intermediárias, estão exercendo violência sem limites contra a humanidade, com o  objetivo de cultivar o patriarcado e o domínio masculino acima de todos os outros valores. 

As mulheres conhecem a verdade sobre essas gangues que se escondem por trás de sua nova  imagem

É necessário entender a verdadeira face da guerra que começou em 26 de novembro de 2024 contra  Aleppo, continuou com a ocupação de Hama e Homs e levou à queda do regime de Assad em  Damasco. As potências hegemônicas revitalizaram o HTS e o SNA, dando-lhes uma nova imagem.  Eles querem sufocar a região da Revolução de Rojava, que floresceu com as lutas e os esforços das  mulheres, e transformá-la em um inferno. Há um ditado que diz: “Nas guerras, a verdade é assassinada  primeiro”. 

Hoje em dia, em meio à poeira e ao caos, nos mapas há uma corrida para adquirir terras. Nesses  mapas, nas telas, há lugares marcados com um ponto e são dadas instruções para sua captura. Milhões  de pessoas vivem nesses lugares, representados simplesmente como pontos em um mapa e, na mente  do homem dominante, não há nenhuma preocupação com esses milhões de pessoas ou com a situação  das mulheres nesses lugares. Ninguém se importa com a situação dos milhões de pessoas que vivem  lá, especialmente a situação das mulheres. Tudo o que importa são os espólios a serem obtidos pelos  jogadores externos. Essa memória mais antiga dessa terra, a doença que a assola há tanto tempo, só  aumenta o apetite imperial por mais.

Desde o início da guerra civil na Síria, em 2011, essa imagem se tornou familiar. Agora ela se  apresenta novamente como um renascimento de manadas de homens em guerra cujas barbas foram  aparadas um pouco mais. Mas não importa quanto trabalho de imagem seja feito, todas as pessoas que  vivem nessa região, especialmente as mulheres, reconhecem por experiência própria a misoginia na  mentalidade dessas manadas de homens que se manifesta na hostilidade contra as mulheres. Mesmo  que eles se apresentem em uma imagem recém-colorida. 

O passado e o futuro estão colidindo no presente 

Na Síria e em todo o mundo, a terceira guerra mundial em curso deve ser analisada pelas lentes da  política de guerra, em que, além dos aspectos econômicos e relacionados a interesses, a maior luta está  entre duas filosofias de vida opostas. Independentemente dos acontecimentos desde 2011, os esforços  para voltar ao ponto de partida persistem. No entanto, o progresso feito até agora mostra claramente  que nenhuma outra força na região representa o povo e as mulheres, além da Administração Autônoma  do Norte e Leste da Síria (AANES), das Forças Democráticas da Síria (SDF) e das Unidades de  Proteção das Mulheres (YPJ). Todos esses modelos organizacionais representam uma incorporação  atual da resistência histórica de milhares de anos. A memória social coletiva do passado e as  aspirações para o futuro estão no “presente”, presas em um intenso conflito. 

Essa geografia, onde a cultura agrícola das mulheres de Til Khalaf 11se chocou há milhares de anos  com a cultura patriarcal de Al-Ubeyd12, tornou-se um campo de batalha. É uma geografia que foi e é  simultaneamente dedicada a promover sociedades igualitárias, mas que, ao mesmo tempo, estabeleceu  sistemas de escravidão. Ao compreender as lições do passado e os eventos atuais, temos a chance de  moldar um futuro mais brilhante. 

Socialismo ou barbárie

O líder do povo Abdullah Ocalan declarou: “No século 21, prevalecerá a barbárie ou o socialismo”.  Podemos interpretar isso no sentido de: “Ou Jin Jiyan Azadî (mulheres, vida, liberdade) ou “Homens,  Estado, Violência” prevalecerão. As guerras hegemônicas são essencialmente sempre sobre capital e  poder com base na regência da mentalidade masculina dominante. De acordo com essa mentalidade, o  dinheiro e o poder representam o principal objeto do conhecimento humano, da fala e de toda forma de  vontade humana. Os grupos que permanecem fora do poder, os “outros”, como a sociedades e as  mulheres, são objetos que podem ser explorados de todas as formas possíveis. O deslocamento de  milhões de pessoas de suas casas e terras, separando-as de sua socialização e cultura, quebrando suas  esperanças e espalhando-as por todos os cantos do mundo; tudo isso é realizado com intenção  deliberada. Indivíduos e comunidades destituídos de fé, esperança e espiritualidade tornam-se  vulneráveis a todas as formas de males. Hoje, a guerra na Síria revela as tragédias com as quais  convivemos: esforços para dissolver a força do tecido social e apagar a memória histórica. Por meio  dessa guerra, há uma tentativa de transformar as pessoas em inimigos de si mesmas e de destruir o  futuro da sociedade, por meio da raiva e do desespero. 

Com o conhecimento de que aqueles que resistem são os que realmente criam a história, a partir de  agora está claro que a saída dessa crise é possível com o paradigma democrático e ecológico baseado  na liberdade das mulheres, e os sinais disso estão surgindo dia após dia.

  1. NOTA DE TRADUÇÃO (N.T.): Estado Islâmico do Iraque e do Levante. ↩︎
  2.  N.T.: Unidades de Proteção do Povo (YPG) e Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ) – são grupos armados revolucionários de origem curda que operam principalmente no norte da Síria, no território conhecido por Rojava (Oeste, em  idioma curdo). AS YPG foram formadas em 2011, durante a Guerra Civil Síria, como o braço armado do PYD (Partido da  União Democrática), um partido político curdo que atua na Síria. As YPG são compostas majoritariamente por curdos, mas  também incluem membros de outras etnias e religiões da região, como árabes e cristãos assírios. As YPG/YPJ ganharam  destaque internacional durante a luta contra o Estado Islâmico (ISIS) em 2014 e são uma força fundamental na libertação de  mulheres e crianças sequestradas pelo ISIS e pela recaptura de territórios controlados pelo grupo fundamentalista islâmico,  incluindo a cidade de Kobane (2015) e a autoproclamada capital do grupo, Raqqa em 2017. Durante esse período, as  YPG/YPJ somaram esforços na formação de uma coalizão militar (Forças Democráticas da Síria – SDF) que contou com o  apoio do exército dos Estados Unidos. A coalisão recebeu apoio aéreo, armas e suporte em campo na luta contra o ISIS.
    ↩︎
  3. N.T.: De acordo com o contrato social do Governo Autônomo do Norte e Leste da Síria, toda instituição, organização ou  centro comunitário onde há cargos de liderança representativa deve haver, obrigatoriamente, uma correpresentação do gênero  oposto. Ou seja, todos os cargos de liderança no autogoverno curdo é um cargo coletivo formado por um homem e uma  mulher, em pé de igualdade em sua liderança. 
    ↩︎
  4.  N.T.: Texto completo disponível em: https://bibliotecaanarquista.org/library/abdullah-ocalan-nacao-democratica ou em  versão impressa editada pela Editora Terra Sem Amos. 
    ↩︎
  5. N.T.: Rojava, em kurmancî – um dos idiomas curdos – significa “Oeste” ou “por do sol”. Faz referência à parte do Curdistão  que se encontra sob ocupação do Estado nacional sírio. O norte do Curdistão, conhecido como Bakur, diz respeito ao  território ocupado pela Turquia, o leste, Rojhilat, ocupado pelo Irã e o Sul, Başûr, controlado pelo Governo Regional do  Curdistão (KRG), uma entidade política sem independente que negocia a administração do norte do Iraque. O Governo  Regional do Iraque e o autogoverno de Rojava não possuem uma relação próxima e apresentam projetos políticos distintos, o  primeiro (KRG) aspirando pela independência do Curdistão em um Estado-nação independente e o autogoverno em Rojava, manifestando-se pela autonomia democrático para além dos limites e do controle dos Estados. 
    ↩︎
  6.  N.T.: Livro publicado em 2022 pela Editora PM Press. 
    ↩︎
  7.  N.T.: Mais informações, em inglês, podem ser encontradas em Syria: Abuses, Impunity in Turkish-Occupied Territories,  Abuses and Impunity in Turkish-Occupied Northern Syria, além do Missing Afrin Women Project e na agencia de Direitos  Humanos Human Rights Watch. 
    ↩︎
  8. NOTA DE TRADUÇÃO: Hevrin Khalef, foi uma política curda conhecida por seu trabalho em direitos das mulheres e  união de diferentes grupos sírios. Ela foi brutalmente assassinada em outubro de 2019 pela milícia Ahrar al-Sharqiya, durante  uma ofensiva militar turca no norte do país. Diversos relatórios e investigações confirmam que ela foi retirada de seu veículo,  espancada e morta a tiros. Este incidente ocorreu durante a operação militar turca “Primavera da Paz” que resultou em  deslocamentos em massa e abusos de direitos humanos. A ONU, bem como organizações como a Anistia Internacional, tem documentado este caso como exemplo de graves violações de direitos humanos na região. Em 2021, os EUA sancionaram a  milícia Ahrar al-Sharqiya por crimes contra civis, incluindo o assassinato de Khalef, além de abusos como tortura e  sequestros, destacando a impunidade que prevalece para esses grupos apoiados pela Turquia. Mais informações e acesso ao  relatório com mais detalhes em Rojava Information Center. 
    ↩︎
  9. N.T.: Você pode encontrar mais informações na agência de noticias JINHA. ↩︎
  10. N.T.: Para mais informações sobre esta tríade de poder, consultar ÖCALAN, Abdullah. Libertando a Vida: A Revolução  das Mulheres.
    ↩︎
  11.  N.T.:A cultura Til Khalaf, também conhecida como Halaf, é uma antiga cultura arqueológica ocorrida no período Neolítico  tardio e no Calcolítico, que floresceu entre aproximadamente 6.100 e 5.400 a.C. na região do Crescente Fértil, abrangendo  partes da Síria, Turquia e norte do Iraque. Til Khalaf é um dos locais mais representativos dessa cultura e se encontra  atualmente situado no território do que hoje é a Síria. A importância da cultura de Til Khalaf reside em ser uma das primeiras  a apresentar evidências de uma sociedade organizada, com especializações em arte e arquitetura. Suas inovações  influenciaram culturas subsequentes na região do Oriente Médio. As mulheres desempenharam um papel fundamental nessa  cultura e sociedade, especialmente no que diz respeito aos avanços na agricultura, domesticação de animais e no desenvolvimento de atividades econômicas e domésticas (distribuição de alimentos e administração de recursos comunitários). ↩︎
  12.  N.T.: A cultura de Al-Ubaid (ou Ubaid) se desenvolveu entre os anos 6.500 e 3.800 a.C. na Mesopotâmia. Esta cultura é  frequentemente descrita como uma sociedade hierarquizada que exibia características iniciais de patriarcado. Essa cultura foi um marco na transição para civilizações mais organizadas, centralizadas e hierarquizadas, como a sociedade Suméria. Os  vestígios arqueológicos apontam a um modelo social que dava ênfase a papéis de gênero diferenciados, estruturas de poder  centralizadas e os primeiros indícios da construção de hierarquias. Acredita-se que a cultura Ubaid representa o início de  sistemas sociais e econômicos que se tornaram dominantes nas civilizações posteriores, como a Suméria. A transição de  sociedades igualitárias para modelos hierárquicos e patriarcais está ligada ao desenvolvimento urbano, da formação de  Estados e da emergência de instituições religiosas organizadas e centralizadas. ↩︎

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