
Nos últimos anos, a ´energia´ está no centro dos principais debates que buscam soluções para o eminente colapso climático para o qual o mundo ruma. A ´transição energética´ e as ´energias limpas´, até as críticas estruturais que questionam ´para que´ e ´para quem´ se produz energia, são parte desse debate. Entretanto, é preciso dar um passo atrás e refletir sobre a própria ideia do que é ‘energia’. Esta edição do boletim do WRM pretende contribuir com essa reflexão.
Publicado originalmente no Boletim 275 do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM): “Energia em debate” (https://wrm.org.uy/pt/)
O consumo de ‘energia’ está aumentando no mundo. E não porque centros de saúde e de educação, ou centros de beneficiamento da produção de comunidades de pequenos agricultores em lugares isoladas no Sul global finalmente conseguiram ter acesso à eletricidade. Esse aumento é impulsionado pelo consumo de grandes corporações, com destaque para o chamado setor de tecnologias de comunicação e informação que controlam os chamados Centros de armazenamento de dados. Esses Centros armazenam não só os dados de um celular, mas sobretudo dados muito mais complexos de tecnologias, muitas vezes chamados como ´inovadoras´ como a da ´inteligência artificial.1
Apesar de se falar muito em ´transição´, o que tem acontecido é uma sobreposição das matrizes energéticas. Ou seja, o aumento do consumo de ´energias renováveis e limpas´, não têm reduzido a extração de combustíveis fósseis. Enquanto o ano 2024 foi o ano que as emissões de CO2 e o aumento global da temperatura bateram novos recordes, também as indústrias de petróleo, carvão mineral e gás natural nunca foram tão grandes, elas estão em plena expansão. Cerca de 96% das empresas de petróleo e gás estão explorando novas reservas, e 40% das empresas de carvão mineral estão desenvolvendo ou extraindo carvão em novas minas. Desde 2022, acionistas dessas empresas receberam USD 111 bilhões em dividendos, 158 vezes a mais do que foi prometido nas conferências do clima para os países mais vulneráveis ao caos climático. 2
Hoje em dia, esse ´modelo de energia’ – e a própria ideia de ‘energia’ ´, está ligado direta – ou indiretamente – a praticamente tudo que ameaça comunidades na floresta. Movidos a ‘energia’ e em busca dela, diversos projetos – tanto faz se de ‘energia’ que se diz ‘limpa’ ou não – têm expropriado comunidades e povos de seus territórios em busca de recursos energéticos.
Estes projetos incluem plantações de árvores para produzir ´energia´ e supostamente reduzir o excesso do CO2 do ar; projetos de empresas de ´energia´ do Norte global assumindo controle de florestas em busca dos tais ´créditos de carbono´, ‘recolonizando’ territórios de comunidades que dependem da floresta; a extração de novos campos de petróleo, gás e minas de carvão; a promoção de monoculturas de soja ou dendê para produzir biocombustíveis, inclusive a bio-querosene; uma nova onda de construção de grandes hidrelétricas chamadas de ´limpas´ e de infra-estruturas para escoar essa ´energia´, como os linhões de transmissão; e claro, a corrida frenética por minerais fundamentais para a ´transição energética´, sendo que a maioria deles se encontra em áreas de floresta.3
Modestos avanços celebrados por algumas organizações ambientais europeias, como a recente lei anti-desmatamento da União Europeia, perdem qualquer relevância perante uma realidade como esta em que as maiores corporações do mundo fazem de tudo para manter o modelo de ´energia´. Mantêm funcionando em marcha rápida o motor por trás de um sistema de produção destrutivo e violento que demanda cada vez mais terras e mais florestas para produzir maiores quantidades de ´energia´.
Neste cenário, é necessário não apenas apoiar as lutas de resistência das comunidades que dependem da floresta e de suas organizações de apoio. É urgente também fortalecer outra resistência: a resistência ao conceito de ´energia’ em si. Não só porque essa forma de resistência tem muito menos visibilidade, já que costuma ser realizada por povos e comunidades desconectados dos grandes sistemas de energia, mas também porque ela traz uma contribuição essencial para o debate sobre a crise climática.
Os povos e comunidades que resistem ao conceito de ‘energia’ tal qual o conhecemos, propõem não só outras concepções, perspectivas e experiências sobre o que é ‘energia’- se é que usam essa palavra. O que eles propõem é uma outra forma de estar no mundo. Eles propõem um mundo muito diferente do mundo capitalista ligado ininterruptamente na tomada, propõem um mundo que permitiria, de fato, superar o caos climático que vivemos.
O artigo introdutório deste boletim faz uma reflexão sobre o conceito ‘energia’, de como ele tem sido introduzido na mente das pessoas como a única forma possível de pensar ´energia´. Assim, a única forma de viver seria aquela com ´energia´ abundante. Como o artigo mostra, é justamente isso que resultou na atual sociedade totalmente dependente da ´energia´ e do petróleo – e em todos os problemas decorrentes desse modelo energético que já conhecemos bem.
Os demais artigos são um conjunto de reflexões de comunidades que resistem a esse conceito de ‘energia’ e de organizações de base que refletem sobre o tema. Por exemplo, as reflexões de membros do povo Ka’apor, do Brasil, do povo Sagulu e de uma moradora da Ilha de Roté, ambos da Indonésia, sobre por que recusaram se conectar à eletricidade fornecida por uma empresa de ´energia´. Outro artigo, do Panamá, relata a experiência da comunidade de Caisán na geração coletiva de energia após terem barrado a construção de empresas hidrelétricas no principal rio da comunidade. Um artigo traz reflexões conectando agroecologia e soberania energética, a partir das experiências da Aliança Africana de Soberania Alimentar. Da Ásia, um artigo da Índia, traz as perspectivas sobre o que é energia para o povo Parahia, nas montanhas de Rajmahal Hills, em Jharkhand, que tem travado uma luta histórica por autonomia e em defesa de seu território.
Boa Leitura!Veja o Boletim 275 do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM): “Energia em debate” aqui: https://www.wrm.org.uy/pt/boletins/nro-275
- (1) MIT Technology Review, “Why the climate promises of AI sound a lot like carbon offsets?” https://www.technologyreview.com/2025/04/10/1114912/why-the-climate-promises-of-ai-sound-a-lot-like-carbon-offsets/?utm_source=the_download&utm_medium=email&utm_campaign=the_download.unpaid.engagement&utm_term=&utm_content=04-13-2025&mc_cid=563b863e77&mc_eid=8c52d73384
↩︎ - (2) DW, “Who is funding fossil fuel expansion?” https://www.dw.com/en/who-is-funding-fossil-fuel-expansion/a-70666716
↩︎ - (3) Fern, “Critical Minerals” https://www.fern.org/issues/critical-minerals/ ↩︎