Neto Onirê
Era 23:37 quando a notícia chegou, a mensagem de Keia veio incompleta, foi apenas um “oi” seguido de “aconteceu alguma coisa com Jhones”. A resposta foi a sequência lógica: “ele morreu? Foi a polícia?”. Alguns minutos de agonia até a confirmação que sim, nosso companheiro foi morto pela polícia em Camamu – Bahia antes dos 30 anos de idade.Virou estatística.
Na cidade, quando contam a notícia, a primeira coisa que se diz é: ” era envolvido?” . Se a resposta for afirmativa, então se considera menos um. Quando negativa, questionam a aparência e com quem andava para, em seguida, justificar que “quem anda com porcos farelos come” ou “me diga com quem andas que eu digo quem tu és”. O ponto central é que normalizaram o extermínio à juventude negra, nossa aparência tem a estética do estereótipo de bandido. Não somos suspeitos, nos rotulam de criminosos e nos sentenciam à morte, execução sumária.
O Estado com a 4ª polícia mais letal do país, onde mais de 80% dos assassinados são pessoas negras, num país onde a cada 23 minutos um jovem negro é morto, devemos nos questionar: “até quando?”. Tenho medo de responder a essa pergunta porque sinto que ainda irá demorar muito até que algo mude concretamente.
A morte é a única certeza que acompanha todos os seres vivos desde a sua concepção, um caminho do qual não se pode fugir, não tem como se esconder, é inevitável. Até pouco tempo atrás não compreendia o motivo de dona Conceição não dormir antes de eu chegar, ou ficar ansiosa quando demorava para mandar mensagem. As mães de filhos pretos descobrem muito cedo os riscos que seus filhos correm. Essas mulheres que enterram os seus filhos não descansam e já andam de sobressalto, a cada dia a mesma agonia. Na TV, nossos assassinatos vendem anúncios, o genocídio de nossa juventude é televisionada como solução para a crise da segurança pública. Nós somos vitimados duas vezes: é em nossos bairros, quebradas, vielas, becos e esquinas que as balas se perdem para encontrar corpos pretos buscando proteção dentro de sua casa. Na rua somos os alvos, os violentos, traficantes, assassinos, somos os que precisam ser mortos para que a “paz” possa reinar, e foi assim que naturalizaram o genocídio.
Nesse texto não tem uma palavras de conforto, ele trata da morte, da bala que nos atravessa todos os dias e das que ficam engatilhadas, fala do cano que mira na nossa cabeça, fala de quem puxa o gatilho e de quem manda puxar. Não houve diferença entre os governos de esquerda, direita, centro ou progressista, todos eles, sem nenhuma exceção, reforçaram as narrativas, as táticas, as estatísticas e as lágrimas de famílias pretas. Se quem ler questionar se estou defendendo bandido, respondo sem hesitar: estou defendendo e defenderei os pretos, e se ele for bandido também defenderei.
O racismo que desumaniza as pessoas pretas e justificou a sua escravidão, hoje as sentencia à morte, à execução sumária, sob os pretextos de ser envolvido, de não ser humano, ser bandido, e que por isso é justo e de bom tom que morra. A exceção é se for bandido branco e morar em bairro nobre, porque nesse contexto ele é suspeito, precisa passar por julgamento, as drogas em sua posse o torna usuário e dependente químico.
A guerra às drogas, o combate ao crime organizado, as ações contra roubo de cargas e todas as outras realizadas pelas PMs e seus governos são ações para controlar a concorrência, servem ao interesse de quem lucra e realmente vive do crime. Nesse momento um homem branco está ganhando dinheiro com o tráfico enquanto um vapor corre para fugir da polícia. Esse mesmo homem tem uma empresa para lavar dinheiro e posta em suas redes sociais: “bandido bom é bandido morto”.
O avião que chegou com cocaína pousou na fazenda do deputado, o avião era do senador, o outro era da FAB. Não tem pista de pouso no favela, foi no Vivendas da Barra que 40 fuzis foram encontrados e NINGUÉM MORREU, NÃO TEVE UMA BALA PERDIDA.
Não acredito que governo nenhum nos ajude, é engano imaginar que virá deles uma solução. É tolice as faixas que pedem para não nos matarem. É preciso organizar nossa revolta, nossa dor precisa dar vida ao enfrentamento da engrenagem de moer corpos pretos.
Precisamos ter a coragem da organização REAJA OU SERÁ MORTA, REAJA OU SERÁ MORTO, politizar nosso extermínio sem fazer politicagem, fazer um standart com nosso luto e colocá-lo na frente de nossa marcha enquanto organizamos escolas em nossas quebradas. Precisamos humanizar os nossos que estão nas celas, tratados como bicho, vistos como demônios, eles também são necessários para nossa libertação.
É necessário que os tambores toquem e os terreiros se abram para cuidar das almas, orientar os Ori. Que façamos ebós. As igrejas que pregam a libertação são bem-vindas, que fortalecem as comunidades e seguem o Cristo. Temos que combater quem explora nossa dor, quem nos aliena e nos convence a seguir de joelhos beijando a mão de quem nos mata.
Temos que ter memoriais para que nossos mortos não caiam no esquecimento e sejam engolidos pelas narrativas de quem organiza o extermínio, não podemos virar estatística, números frios que escondem as dores e as condições que desumanizam nossa existência.
Se não organizar nossa dor e planejar nossa revolta seremos eliminados, ao fim sobrará eles e as baratas.