Artigo de Raúl Zibechi publicado originalmente no Jornal La Jornada (México) em 23/10/2020
Uma das características do capitalismo em sua fase atual de tormenta pandêmica, é o encurralamento de povos inteiros sob diferentes modalidade que, em realidade, perseguem os mesmos objetivos: isolar às e aos de baixo para acelerar a acumulação por espoliação.
Por isso, cada vez que os povos rompem o cerco militar e paramilitar, político e midiático, se convertem em estímulo para os demais, marcam rumos e nos ensinam tudo o que podemos aprender para seguir adiante. Romper o cerco é como defender a vida em um sistema de morte.
Estes dias na Colômbia se realizou a Minga Indígena, Negra e Campesina que partiu do sudoeste, em Cauca, e continuou em Cali, percorreu várias cidades e povos para chegar oito dias depois em Bogotá. Em todo seu percurso, a Minga (trabalho comunitário ou tequio) dialogou com populações que compartilham suas mesmas dores, em um país que sangra pela violência narco-militar-paramilitar, com centenas de líderes sociais assassinados.
O núcleo da resistência são os povos originários de Cauca, agrupados em grande medida no Conselho Regional Indígena de Cauca (CRIC), fundado em 1971 no contexto de uma vasta luta pela recuperação de terras, que resultou na expulsão de grandes latifundiários. O povo Nasa com seus “projetos de vida”, lançados na década de 1990, é um dos melhores organizados da Colômbia.
Os oito povos originários que se agrupam no CRIC se assentam em 84 resguardos (territórios reconhecidos pela Constituição de Colômbia) que são governados por 115 cabildos [conselhos] eleitos pelas populações. Por sua vez os cabidos se agrupam em 11 associações, em nove regiões estratégica de Cauca. [Confira a estrutura organizativa aqui]
Vale o leitor dar uma olhada no mapa onde se assentam os territórios indígenas de Cauca, que ocupam 5 mil quilômetros quadrados povoados por uns 200 mil habitantes. Em algumas regiões, os povos originários coincidem geograficamente com povos negros e campesinos, de tal forma que as experiências e modos de cada um se “contaminem” com as outras.
Além da economia e da justiça “próprias”, como as denominam, a realização de mercados de intercâmbio de alimentos por escambo, sem usar dinheiro, mas com equivalências (não necessariamente trocam um quilo por um quilo, e sim a partir das necessidades), os povos originários formam a Guarda Indígena, uma das maiores criações de autodefesa do continente.
Sete mil guardas controlam, durante a pandemia, a entrada e saída de pessoas e veículos de seus resguardos, “armados” com bastões cerimoniais ou chontas [Marimba de Chonta é um instrumento musical dos negros do pacífico colombiano]. A Guarda está integrada por meninos, meninas, mulheres e homens, autoridades espirituais e culturais, é eleita nas comunidades e se orienta segundo critério de “Guardar, cuidar, defender, preservar, perdurar, sonhar os próprios sonhos, ouvir as próprias vozes, rir as próprias risadas, cantar os próprio cantos, chorar as próprias lágrimas”.
A Minga foi até Bogotá, onde participaram 8 mil membros dos povos originários, negros e indígenas, foi escoltada pelas guardas, com especial protagonismo das mulheres e dos jovens. Foi recebida e acompanhada por milhares de pessoas que vêm resistindo à repressão de corpos militarizados, contra os que levantaram nas jornadas memoráveis de 9 a 11 de setembro, onde se queimaram várias delegacias.
A confluência com os trabalhadores urbanos foi potencializada pela participação da Minga na greve nacional das centrais sindicais no dia 21 de outubro, a quase um ano da revolta social de novembro de 2019, que se iniciou precisamente com uma ampla mobilização sindical que foi ampliada por estudantes e jovens dos bairros periféricos.
Para quem se mostra cético ante as formas de luta dos povos originários, aí está o notável exemplo das Guardas que crescem como “manchas de azeite” se expandindo até outros setores. Na Colômbia já existem mais de 70 mil guardas, incluindo, além das Guardas Indígenas de dezenas de povos (na Colômbia existem 102 povos originários), as Guardas Cimarronas dos povos Negros e as Guardas Campesinas.
Cada povo conta com seus próprios territórios: palenques negros [espécie de quilombos] e zonas de reserva campesinas se somam aos resguardos indígenas, conformando um tapete multicolorido de resistências e dignidades. A Colômbia de baixo vai se articulando com a criação de espaços urbanos, alguns organizados em torno de hortas periurbanas, em cidades como Popayán e grandes metrópoles como Bogotá (Coletiva Huertopía).
Os povos da Colômbia conseguiram romper o cerco, ainda que seguirá a ofensiva paramilitar contra seus territórios, porque o modelo neoliberal de extração não está disposto a retroceder. Um detalhe nada menor: onde governa a direita, a confluência dos de baixo vai mais rápido.
[…] Foto: Minga Indígena na Colômbia. Retirado do site da Teia dos Povos. […]