Posted on: 28 de novembro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Muito se fala em “autocuidado”, mas frequentemente isso é tratado de maneira individualista e até alienante. Porém nós acreditamos que cuidar da saúde é um ato de resistência. Se eles nos querem doentes, porque isso enfraquece nossa capacidade de lutar e enche os bolsos da indústria farmacêutica, cuidar da nossa saúde e da saúde da nossa comunidade será uma prioridade. Ter saúde é essencial pra resistir e transformar o mundo, pra amar, festejar e ter uma vida plena. 

Esse é o primeiro texto da série “Te cuida, compa!”*, onde compartilharemos conhecimentos e ferramentas de cuidado individual e coletivo. Nessa primeira troca, falaremos de diabetes, a “epidemia silenciosa” que mata uma pessoa a cada cinco segundos no mundo.

Você provavelmente conhece alguém que tem diabetes. Talvez você também tenha essa doença.  Na lista de países com maior incidência de diabetes no mundo, o Brasil ocupa o 5º lugar. São quase 17 milhões de pessoas diabéticas, segundo a Federação Internacional de Diabetes. Pra entender como chegamos nessa situação é preciso entender o funcionamento do nosso metabolismo, quais fatores causam o seu desequilíbrio e o que mudou na maneira como as pessoas se alimentam hoje.

Quem convive com uma pessoa que tem diabetes, ou é pré-diabética,  já ouviu falar de  “glicemia alta”, ou seja, de ter “muito açúcar (glicose) no sangue”. Mas vamos começar do início. 

Glicose é a principal fonte de energia dos seres vivos, o grande combustível do nosso organismo. Nós conseguimos ela através da alimentação. E, um fato curioso, o maior “consumidor” de glicose no nosso corpo é o cérebro. Apesar de representar menos de 2% do nosso peso, o cérebro consome 20% da energia que o corpo fabrica a partir da glicose. Só isso já deveria ser suficiente pra gente não cair na armadilha de demonizar o carboidrato (e idolatrar proteínas). Mas vamos continuar essa aula fascinante sobre o funcionamento do metabolismo, lembrando que as explicações são resumidas e que escolhi usar uma linguagem acessível pra que a gente consiga entender sem dificuldades.

Imagine que você acabou de fazer uma refeição. Durante a digestão, os carboidratos presentes na comida são convertidos em glicose (açúcar). Em seguida, a glicose passa do intestino pra corrente sanguínea, depois viaja pra dentro das células, fornecendo energia pra elas funcionarem. Mas tem um detalhe importante: a glicose só consegue entrar nas células com a ajuda de insulina. Insulina é um hormônio produzido pelo pâncreas. A principal função desse hormônio é abrir a “boca” da célula pra glicose poder entrar e ele faz isso se conectando ao receptor de insulina que tem ali. Pense assim: a insulina é a chave e o receptor de insulina é a fechadura que, quando se encontram, abrem a boca da célula pra glicose entrar. 

Veja como o corpo é perfeito: você come, ao digerir a comida o carboidrato é transformado em glicose, a glicose entra no sangue, o pâncreas recebe então um sinal pra produzir insulina, a insulina abre a boca das células e a glicose, que estava no sangue, entra nas células. 

Quando dizemos que “a glicemia está alta”, isso significa que ao invés de entrar nas células, a glicose está ficando dentro do sangue. Isso é ruim porque provoca inúmeras consequências negativas pra saúde. Mas por que isso acontece?

Já ouviu falar de “resistência à insulina”? Isso acontece quando o pâncreas produz insulina, mas ela não consegue abrir a boca das células pra fazer a glicose entrar. E por que não consegue? Porque o receptor de insulina da célula foi dessensibilizado e não responde mais. Agora vem a parte mais importante dessa história, que eu gostaria que você não esquecesse: gordura saturada, gordura trans e LPS (compostos produzidos por um tipo de bactéria) dessensibilizam os receptores de insulina. 

Na prática, acontece o seguinte. Quando nossa alimentação é rica em carnes, laticínios, ovos (gordura saturada) e em alimentos ultraprocessados (gordura trans) e, ao mesmo tempo, é pobre em vegetais (ou seja, tem pouca fibra, o que favorece as bactérias que produzem LPS), nossos receptores de insulina vão se entupindo. Com os receptores entupidos,  fica cada vez mais difícil levar a insulina pra dentro das células e a glicose permanece alta no sangue, o que, como já foi dito, causa muitos problemas de saúde. Então apesar do pâncreas continuar produzindo insulina, ela não consegue mais abrir a célula pra glicose entrar. É isso que chamamos de resistência à insulina. Essa condição pode se transformar em pré-diabetes e em diabetes do tipo 2, a forma mais comum de diabetes e que representa 90% dos casos no Brasil.

É importante dizer que resistência à insulina é perigosa porque mexe no metabolismo como um todo. Ela aumenta a produção de colesterol e de gordura no fígado, além de aumentar as chances de desenvolver pressão alta, doenças cardíacas, vários tipos de câncer e quadros demenciais. 

Percebe agora a necessidade de saber exatamente como o metabolismo funciona e o que está realmente por trás da resistência à insulina, que causa diabetes do tipo 2? Quando não entendemos direitinho isso tudo, caímos na armadilha de demonizar o carboidrato (porque é fonte de glicose), chegando até a cortar os alimentos que promovem saúde, como frutas e feijão, e seguir entupindo nossas células de gordura saturada e trans, ou seja, de carnes, laticínios e ultraprocessados. Não podemos confundir os sintomas do diabetes do tipo 2 com a causa. 

No próximo texto falaremos sobre como as desigualdades sociais aumentam as chances de desenvolver diabetes e outras doenças crônicas e compartilharemos práticas alimentares que ajudam a ter um melhor controle da glicemia. Já adianto que o carboidrato não é o demônio que pintam por aí. 

Até lá, te cuida, compa. 

(Esse texto foi escrito de maneira colaborativa por uma cozinheira, uma nutricionista, uma dentista e um médico. Nós fazemos parte da UVA – União Vegana de Ativismo e nos interessamos por saúde coletiva.)

*O título, assim como a inspiração pra escrever essa série, vieram do livro do ativista e médico Eneko Landaburu “Cuidate, compa! Manual para la autogestion de la salud”.

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