Posted on: 25 de novembro de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

por Thais Giselle Diniz Santos1

Nos últimos anos, o Brasil tem vivenciado uma crescente onda de fechamento das escolas do campo, um fenômeno que, além de comprometer o acesso à educação de milhares de crianças e jovens, ameaça a permanência das comunidades rurais em seus territórios, tornando-se, assim, uma questão de interesse para toda a sociedade. A construção das escolas do campo no Brasil demonstra que não existe separação entre as lutas pela terra e pela educação quando se trata da realidade dos povos que se territorializam de acordo com necessidades de existência. Na medida em que a terra é garantida juridicamente pelo regime da propriedade privada, em detrimento dos direitos territoriais, a própria existência dos povos tradicionais e assentados da reforma agrária não resta, de fato, garantida. 

Uma rede de políticas públicas são necessárias para garantir a dignidade destes povos e comunidades e sem dúvidas a educação do campo é uma das mais importantes delas. A existência de escolas adequadas para a realidade dos povos indígenas, comunidades tradicionais e assentados da reforma agrária permite a construção pedagógica que vai além do mero ensino, com educação voltada à realidade específica, à preservação dos conhecimentos tradicionais e a pertinência cultural às crianças e jovens rurais.

Não obstante esta importância, segundo estudo publicado pela Uerj, de 2018 a 2021, aproximadamente 4.000 escolas rurais foram fechadas, o que corresponde a 63% do total de escolas fechadas no país e o estado da Bahia foi o que mais fechou escolas do campo no Brasil. Embora a justificativa para essa redução seja, em grande parte, o corte de gastos, esse fechamento representa uma ameaça ao direito fundamental à educação e ao território.

As escolas do campo são um dos principais alicerces dos trabalhadores rurais e desempenham um papel essencial para a sobrevivência e autonomia de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores familiares e outras comunidades tradicionais no Brasil. Elas são muito mais do que locais de ensino: são espaços de resistência cultural, preservação de saberes ancestrais e, para muitas dessas comunidades, a principal forma de garantir que suas crianças possam continuar vivendo em seus territórios, longe da pressão urbana e da marginalização social.

A Educação do Campo como Pilar da Resistência

A educação do campo não se resume à formação acadêmica. Ela está intimamente ligada à luta pela terra, pela preservação ambiental e pela afirmação de identidades culturais. Para as comunidades rurais, a escola representa um espaço que possibilita a circulação do legado de conhecimentos essenciais para a manutenção de seus modos de vida. Quando uma escola do campo é fechada, não se perde apenas um prédio ou uma sala de aula, mas uma estrutura fundamental para que essas famílias possam resistir às pressões que buscam deslocá-las de seus territórios e a existência de escola próxima acaba sendo um dos fatores mais determinantes para a permanência das famílias nos territórios.

Historicamente, a educação rural no Brasil foi moldada por uma visão utilitarista, voltada para a formação de mão de obra que atendesse às necessidades do latifúndio. Durante a ditadura militar, a lógica da “extensão rural” passou a tratar os camponeses como pessoas carentes de assistência estatal e com pouca ou nenhuma voz ativa nas políticas que os afetavam. Esse modelo reduzia a educação a uma formação técnica voltada para as exigências do setor agropecuário empresarial, sem levar em conta as realidades sociais e culturais dos povos do campo.

A partir dos anos 1990, movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) começaram a contestar esse modelo e a exigir uma educação que respeitasse as especificidades das comunidades rurais, com foco na valorização dos saberes locais, da cultura e da relação com a terra. Movimentos dos povos indígenas e quilombolas foram fundamentais nas reivindicações de educação adequada às realidades comunitárias. Em 1997 o Setor de Educação do MST, durante o 1º Encontro Nacional dos Educadores na Área de Reforma Agrária reivindicam a educação de qualidade e culturalmente adequada aos trabalhadores rurais mediante o modelo da política pública da “educação do campo”, em contraste com a “educação rural” com raízes no modelo assistencialista do desenvolvimentismo agrário próprio da ditadura militar. A proposta desta política pública busca também se contrapor ao histórico que estrutura a questão agrária brasileira, quando no meio rural a educação fornecida aos filhos dos trabalhadores dos “donos das terras” era uma benesse coronelista. Em contraponto, o movimento que culminou na formulação da educação do campo propõe um modelo pedagógico que se adapta às realidades dos povos tradicionais e valoriza suas formas de organização social pela construção democrática da escola.

O Impacto do Fechamento das Escolas

O fechamento das escolas do campo não é apenas uma questão de redução de custos, como é frequentemente alegado pelos gestores públicos. Este reflete uma visão reducionista da educação, que a trata como um gasto e não como um investimento fundamental para a manutenção das comunidades rurais. Para muitas famílias do campo, a educação é um dos fatores definidores da permanência, pois mesmo diante de dificuldades econômicas, sociais e até produtivas estas optam por permanecer no território se seus filhos estão acessando educação de qualidade.

Quando uma escola rural é fechada, a comunidade perde uma das principais fontes de estabilidade e identidade. A escola não é apenas um local onde se aprende a ler e escrever, mas um espaço que fortalece os laços comunitários e permite que as crianças e jovens se conectem com sua história e com sua cultura. Sem uma escola próxima, as crianças se veem forçadas a se deslocar longas distâncias, muitas vezes em condições precárias, e acabam sendo afastadas do contexto social e cultural de suas famílias. Além disso, a falta de transporte adequado e as dificuldades de acesso às escolas tornam-se obstáculos significativos para o direito à educação. Este processo empurra as famílias para os meios urbanos e para a marginalização.

A desintegração de uma escola do campo, por mais que possa parecer um evento isolado, tem efeitos devastadores para a comunidade como um todo. A escola é vista como um símbolo de resistência e continuidade, e a perda desse espaço é frequentemente sentida de maneira profunda pelas famílias. Ela representa não apenas o fim da educação formal, mas também o enfraquecimento da própria luta pela terra e pelos direitos territoriais.

A Luta pela Terra e pela Educação: Conflitos e Desafios

As escolas do campo enfrentam uma resistência histórica, alimentada por interesses políticos e econômicos que buscam centralizar o poder e os recursos em áreas urbanas, ampliando as terras “desocupadas” de suas gentes no meio rural e “livres” para a exploração econômica, em detrimento das populações rurais. O fechamento das escolas é apenas uma parte dessa disputa mais ampla pela terra. A Constituição Federal de 1988 garante a proteção dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, mas, na prática, essa proteção muitas vezes não é efetiva. Esses povos enfrentam conflitos fundiários constantes e correm o risco de desterritorialização, o que coloca em risco não apenas suas terras, mas também seus modos de vida e culturas. O fechamento das escolas do campo no Brasil representa mais um ataque estratégico no contexto de avanço de agentes econômicos sobre as terras e os recursos naturais, do qual decorre a desterritorialização dos povos e comunidades rurais.

Além disso, o fechamento das escolas do campo está intimamente ligado a uma visão que trata a terra apenas como um bem econômico, desconsiderando sua importância social, cultural e ambiental. A luta dos povos do campo não é apenas uma questão de terra, mas também de reconhecimento de seus direitos culturais e educacionais. As escolas do campo são essenciais para a preservação das identidades desses povos, e sua continuidade é uma condição vital para que essas comunidades possam resistir às pressões externas e continuar existindo em seus territórios.

Racismo Educacional e a Visão Urbanocêntrica

O fechamento das escolas do campo também está relacionado a um fenômeno que pode ser descrito como racismo educacional. Muitas vezes, essas escolas são tratadas como “isoladas” ou “distantes”, e as dificuldades enfrentadas por elas são minimizadas, como se fossem um problema menor. No entanto, essa visão urbana desconsidera as especificidades das comunidades rurais, que têm necessidades e realidades muito diferentes das áreas urbanas. Ao caracterizar as escolas rurais como “dispendiosas” ou “com poucos alunos”, se ignora o valor que essas instituições têm para as comunidades e para a sociedade como um todo, ao permitir a perpetuação social e cultural de uma coletividade. Esta visão constitui o que chamamos de “racismo educacional”.

O conceito de que a mera presença na escola seria suficiente para garantir a educação das crianças do campo é um equívoco que reflete a visão reducionista e urbanocêntrica que prevalece em muitas políticas públicas. A educação do campo exige uma abordagem específica, que considere as condições de vida, as necessidades culturais e os desafios logísticos das comunidades rurais.

O Papel das Políticas Públicas e a Necessidade de Proteção Legal

Os marcos da gestão democrática das escolas presente na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), além de outras normativas como a Resolução CNE/CEB Nº 1 de 2002, garantem direitos importantes para as escolas do campo, como a gestão democrática, a adaptação pedagógica às necessidades dos povos rurais e destaca a necessidade de “propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas“ (art. 13, II da Resolução CNE/CEB Nº 1 de 2002). No entanto, na prática, essas diretrizes nem sempre são respeitadas, e muitas escolas enfrentam resistência para se manter funcionando de acordo com os parâmetros legais estabelecidos. A Convenção nº 169 da OIT, que assegura os direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, também reforça a necessidade de que as políticas educacionais atendam às especificidades dessas comunidades, mas essa exigência ainda não é plenamente atendida.

Um exemplo claro dessa resistência pode ser visto no caso de algumas escolas de assentamentos rurais, que enfrentam desafios não apenas logísticos, mas também culturais, ao tentar implementar os modelos educacionais estabelecidos pela legislação. Mesmo com a proteção legal, essas escolas frequentemente enfrentam uma resistência institucional que reflete a dificuldade em reconhecer as especificidades dos povos rurais como parte do patrimônio cultural e social do país.

O Futuro da Educação do Campo

O Projeto de Lei 3.091 de 2024, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, busca garantir a proteção das escolas do campo contra o fechamento e reforçar sua importância como elemento de resistência cultural e de preservação dos direitos territoriais das comunidades rurais. No entanto, a proposta ainda enfrenta desafios políticos e a falta de apoio de algumas esferas do governo, que continuam a priorizar a lógica do corte de gastos em detrimento da proteção e valorização das comunidades rurais.

O artigo 28 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional dispõe que o fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas deve ser “precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar.”. Essas exigências não têm sido atendidas e os fechamentos arbitrários e apressados continuam a ocorrer, sendo alvo de contestações judiciais, como no caso julgado em 2024 pela Vara da Infância e Juventude de Terra Roxa, no Paraná. Neste caso, foi concedida uma liminar em ação civil pública determinando a reabertura de uma escola do campo que havia sido fechada de forma irregular.

A educação do campo, como um movimento social, não é um modelo único, mas uma abordagem flexível que reconhece a diversidade de saberes, culturas e realidades presentes nas áreas rurais. As escolas do campo são fundamentais para garantir que as futuras gerações de povos e comunidades tradicionais possam permanecer em seus territórios e preservar suas culturas. Sem uma educação de qualidade, a vida no campo se torna cada vez mais insustentável, e as comunidades enfrentam o risco de desaparecimento cultural e territorial.

Em tempos de emergência climática, em que a preservação da terra e das florestas se tornou uma questão global, as escolas do campo desempenham um papel vital. Elas são a linha de frente na luta pela sustentabilidade ambiental e pela manutenção dos modos de vida que respeitam a natureza. Valorizar a educação do campo não é apenas uma questão de justiça social, mas uma necessidade para o futuro do Brasil e do planeta.

  1. Advogada popular, Professora Adjunta do curso de direito e do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), apoiadora da articulação “Teia dos Povos” na Bahia. ↩︎

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