Por Gabriela Moncau , de Dourados (MS), especial para o Joio.
A comitiva da Teia dos Povos percorreu de van o trajeto entre Bahia e Mato Grosso do Sul para apoiar retomadas indígenas e experiências alternativas à monocultura.
Indígenas Guarani Kaiowa em territórios cercados pelo agronegócio no Mato Grosso do Sul receberam cem quilos de sementes de milho crioulo em uma ação da Teia dos Povos entre 29 de outubro e a última quarta-feira (5). Em uma van que viajou do sul da Bahia até a região de Dourados (MS), moradores do assentamento Terra Vista e membros da Rede de Sementes da Teia dos Povos fizeram a entrega e realizaram mutirões de plantio em seis áreas Guarani Kaiowa. Entre elas a Terra Indígena (TI) Guyraroka, que se tornou o núcleo central do conflito fundiário na região desde que, em 20 de setembro, teve parte do território retomado.
A Teia dos Povos é uma articulação de povos, comunidades e organizações sociais e urbanas. A van chegou de Arataca (BA) a Caarapó (MS) poucos dias depois de os indígenas de Guyraroka avançarem sobre a sede da Fazenda Ipuitã, em 25 de outubro. Foi a segunda vez em cerca de um mês que ocuparam a sede da propriedade e, como na primeira, foram brutalmente reprimidos pela Tropa de Choque da Polícia Militar, que agiu sem ordem judicial. Na ocasião, parte do imóvel e um maquinário de plantio de soja foram incendiados.
Ainda com feridas de bala de borracha no corpo, lideranças Guarani Kaiowa receberam, ao mesmo tempo, a caravana da Teia dos Povos e uma comitiva interministerial do governo federal com o intuito de negociar uma “trégua”.
Pela manhã, as lideranças da retomada pediram um prazo para responder a proposta vocalizada pelas autoridades de que, em troca de os indígenas não ampliarem a retomada territorial, os fazendeiros pulverizem agrotóxico a uma distância de 250 metros da comunidade. De tarde, na roça da escola de Guyraroka, onde justamente enfrentam a dificuldade de cultivar alimentos por conta do veneno despejado pelas fazendas, as crianças Guarani Kaiowá participaram do plantio das sementes vindas da Bahia.

Em mutirão, braquiárias são arrancadas na mão, já que dias antes a Polícia Militar enterrou ferramentas de trabalho dos indígenas com uma pá escavadeira. Foto: Gabriela Moncau.
Composta por 20 pessoas e articulada por uma organização local com apoio da Próspera Social, a comitiva da Teia dos Povos visitou comunidades que estão em luta contra a expansão agrícola do monocultivo da soja e do milho transgênicos. Algumas por meio da retomada de territórios sobrepostos por fazendas, outras na resistência contra o arrendamento de lotes dentro de território indígena.
Além de Guyraroka, sementes foram entregues em duas áreas da TI Panambizinho, demarcada em 2004. Também foram distribuídas nos tekohas (“lugar onde se é”, em guarani) Laranjeira Nhanderu, Guyra Kamby’i e Tajassu Yguá, que integram a TI Panambi Lagoa-Rica, ainda na luta por demarcação.
“Transitamos por áreas onde estão famílias Kaiowá e Guarani que são contra o arrendamento e que solicitam ajuda de apoiadores, principalmente os dispostos a botar o pé no chão e fazer este intercâmbio entre experiências de resistência”, salienta Hildy Costa Cruz, uma das envolvidas na atividade. A expectativa é que em cerca de 95 dias já seja possível colher o milho plantado em mutirão.
Aliança por meio da soberania alimentar
“O objetivo da caravana foi levar sementes e, ao mesmo tempo, construir uma aliança”, explica o mestre Joelson Ferreira, fundador da Teia dos Povos, assentado do Terra Vista e membro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) há quase 40 anos. “Porque nosso entendimento é que nesse momento histórico não tem saída para nenhum povo se quiser fazer a luta sozinho.”
Quando enchentes submergiram o norte de Minas Gerais e o sul da Bahia, em dezembro de 2021, o assentamento Terra Vista recebeu e distribuiu cerca de 2.500 toneladas de sementes. “Foi uma coisa muito importante. Em vez de a gente amenizar a situação com cesta básica, entendemos que era preciso devolver a semente que o povo tinha perdido. É preciso semear e repartir para garantir a soberania dos povos. Quando um não tiver, o outro tem”, conta Joelson.

Anastácio Peralta, liderança Guarani Kaiowá, recebe sementes de mestre Joelson Ferreira dentro de casa de reza. Foto: Gabriela Moncau.
A Teia dos Povos já fez ações de entregas e trocas de sementes com os povos Maxakali, Tupinambá, Pataxó e Guarani, além de comunidades quilombolas e assentamentos da reforma agrária. “Quando a gente leva a semente, a gente vai de mão cheia, não vai dialogar com palavras, mas com algo concreto. E saímos com o coração cheio de esperança por ver que, com a dificuldade e o sofrimento, tem gente lutando”, relata Joelson.
Sementes crioulas
As sementes levadas ao Mato Grosso do Sul passaram por testagem da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) em janeiro de 2025, que constatou serem 100% crioulas, livres de contaminação por agrotóxicos ou transgênicos. Das variedades Milho Guarani Azul, Milho do Bem Virá Colorido e Milho Crioulo Branco, as sementes foram produzidas sob orientação do mestre Valmir Oliveira Lima, conhecido como um guardião do milho.
“Já é um conhecimento antigo da minha família. Meus avós cultivavam milho cateto, que é milenar. Eles chamam aqui de milho branco, é sagrado para os Guarani. A maioria dos milhos que os povos originários cultivam é o milho mole, como a gente chama. E a gente trouxe alguns outros, o milho duro, o que o povo na Bahia usa para fazer mungunzá”, explica Valmir.
Gaúcho e descendente dos povos Guarani e Charrua, Valmir se mudou de Santa Maria (RS) para o Assentamento Terra Vista no final de 2023, com o objetivo de produzir sementes crioulas. Sua ida na caravana ao Mato Grosso do Sul foi um retorno: cerca de três décadas antes, viveu por sete anos no estado, trabalhando como operador de trator e colheitadeira.
“Fui embora em 1993 porque não aguentava mais veneno. Consegui ser assentado no Rio Grande do Sul e voltei às origens. Foi quando comecei a trabalhar de novo com agroecologia, que é o que faço até hoje”, sorri. Dessa vez, foi ao Mato Grosso do Sul fortalecer experiências que buscam, por ironia do destino, impedir o avanço das colheitadeiras de soja.

Mestre Valmir Lima entrega sementes para liderança Guarani Kaiowá Ezequiel João e sua família, na retomada Guyra Kamby’i. Foto: Gabriela Moncau.
Espíritos de longo alcance
Xiru Karai, que significa “dono dos animais”, é o nome do tekoha onde vive Anastácio Peralta, indígena pesquisador e membro do conselho da Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowa. O cerca de um hectare cuidado por ele dentro da TI Panambizinho, por onde atravessa um rio, com horta e árvores frutíferas, é como um oásis em meio à planície da monocultura. Com o arrendamento, a maior parte do território cedeu à soja ao longo dos últimos cinco anos.
“Hoje nós estamos tentando não só retomar a terra, mas nossos alimentos, sementes, rezas, cantos. Nossos conhecimentos, né? Entendemos que a terra está precisando dessas tecnologias espirituais, porque está sendo destruída por esse modelo de colonização”, aponta Anastácio.

Dona Adelaide, rezadora Guarani Kaiowa, observa o plantio do milho na retomada Tajassu Ygua. Foto: Gabriela Moncau.
“E não somos só nós indígenas os prejudicados por esse modelo. A natureza, todos os seres são. A terra está doente, com febre, e as autoridades políticas sem condições de enxergar isso. Eu digo que eles têm espírito de curto alcance”, sintetiza Anastácio.
“Os rezadores sempre falam que a gente precisa ter um espírito de longo alcance. Você tem que enxergar além dos prédios e além das montanhas. Isso as autoridades competentes não conseguem enxergar, só veem os artiguinhos que eles escreveram. Então precisamos retomar o Brasil, mesmo”, defende Anastácio.
“É uma inteligência ancestral valorizar as sementes crioulas. Se você cura a terra, você cura também a gente. Então quem faz esse tipo de troca é um aliado importante na vida de qualquer povo que queira viver”, resume Anastácio Peralta: “Semente esparrama a vida. Então, carrega futuro.”
Matéria originalmente postada em: https://ojoioeotrigo.com.br/2025/11/territorios-guarani-kaiowa-cercados-por-soja-e-agrotoxico-recebem-100-kg-de-sementes-crioulas/
