Posted on: 4 de abril de 2021 Posted by: Teia dos Povos Comments: 2

A Comunidade Chico Mendes, do MCP (Movimento das Comunidades Populares), situa-se no Morro do Chapadão, Pavuna, Zona Norte do Rio de Janeiro.
É uma das localidades cariocas mais expostas à violência do Estado, tanto pela ausência crônica de políticas públicas como pela constante presença das incursões policiais.
Neste cenário desolador viceja uma fértil e inspiradora experiência: uma comunidade autônoma, independente, organizada de forma horizontal, com política participativa, ideologia comunitária e economia coletiva.
O objetivo estratégico defendido pelo MCP é lançar as bases de um novo modo de produção, de uma nova forma de vida que tenha a ideia de Comunidade ao centro.

Chegamos aqui em 1994. Hoje é Complexo do Chapadão, na época era Morro do Chapadão. Depois foram nascendo outras favelas em volta, outras comunidades.

Mas o nome oficial é Comunidade Chico Mendes, apesar das pessoas não usarem muito, usam mais Chapadão.

Foi uma ocupação desordenada, ali no início da década de 1990. Não tinha nenhum grupo político à frente. As pessoas foram ocupando. Mas tinha um grupo, não era político, mas que tinha uma certa preocupação. De medir a largura das ruas, assim.

Então, esse grupo conduziu aqui a ocupação até realmente o tráfico tomar conta.

Então nós viemos, minha mãe e eu, aí em 1994. O Gelson iniciou em 1996, na fase MCL (Movimento das Comissões de Luta).

Aqui o nosso forte nunca foi a luta reivindicatória. Sempre foi a organização da juventude. O trabalho começou por aí.

Organizar a juventude principalmente pelo esporte. Esporte, arte e lazer. Esse foi pontapé do nosso trabalho aqui.

Em 1994, criamos um time de futebol ao qual demos o nome de Tiradentes Esporte Clube.
O time seguia os princípios do Movimento na época (MCL) que eram: Independência política; Método Linha de Massas (Democracia Participativa); Autonomia Financeira.
Começamos a organizar atividades nas datas comemorativas para envolver os moradores da comunidade (21 de abril, dia de Tiradentes e  São João).

Em 1997 a gente iniciou a escola.  Veio funcionando até hoje. A gente completou 24 anos esse ano. Uns anos depois a gente começou com a creche também.

É uma escola comunitária, funciona no contra-turno. As crianças vão metade do dia prá escola oficial, pública. E a outra metade ficam com a gente.

Hoje são sessenta e poucas crianças. De 15 a 20 ficam o dia todo, na parte da creche, que são as que as mães precisam trabalhar fora.

Só que não tem aquela idade que na creche oficial é só da criança pequenininha. Aqui é misturado, depende da necessidade das mães.

Então, a escola veio funcionando sempre assim, nesse sentido de ajudar nas dificuldades da criança.  Há muita dificuldade de aprendizado. Até mesmo por conta que muitas crianças são filhos de pessoas que usam droga.

A gente acha que isso também afeta um pouco o desenvolvimento. Às vezes a gente recebe crianças de 10, 9 anos que são analfabetas. Mas que na escola oficial eles estão em série condizentes com a idade. Vão passando de ano, mas não conseguem acompanhar.

Mais de  mil crianças já passaram aqui pela gente. Algumas, infelizmente, a gente perdeu. Quando vira jovem, entra pro tráfico.

As professoras são todas da comunidade. Até hoje já passaram mais de 60 professoras, durante esses vinte e poucos anos.


A partir de 1997, teve início uma escolinha de reforço. Começou com 3 crianças.
Em seus mais de 20 anos, a Escola, que se chama Jardim da Comunidade, já chegou a atingir até 100 alunos. Hoje, tem mais de 40 alunos, de 2 a 10 anos,  e 5 professoras.
A Escola é totalmente autônoma.  Durante todos esses anos, foi mantida pela contribuição das mães.

Em 2013, foi criada uma Rede de Amigos da EJC. São simpatizantes que contribuem para melhorar a renda dos professores, mas respeitam a autonomia da Escola.
Em 2009, criamos um espaço coletivo para tomar conta das crianças cujas mães saíam para trabalhar.
Hoje, cerca de 15 crianças que permanecem no espaço em tempo integral e 3 cuidadoras.

Durante a pandemia, no início a gente parou. Não por fiscalização, porque aqui o Estado não chega. O Estado aqui só entra quando tem operação policial.

Mas paramos pelo próprio povo. Começou haver questionamento, o pessoal com medo.

E nós ficamos quase três meses sem funcionar.

Fizemos campanha prá poder manter. Como a escola é autônoma, a gente sobrevive da contribuição das mães e de uma rede de apoio.

Nós temos uma rede, a gente chama de Rede de Amigos da Escola. Professores, pessoas de classe média, que acreditam nesse projeto de educação popular, comunitária. E contribuem prá ajudar.

Nesse período, a gente reforçou essa campanha, essa rede, prá poder manter as pessoas que dependem desse dinheiro pra sobreviver.

Mas isso dura uns três meses. Depois as próprias mães começaram a exigir que a gente retornasse.

Porque a aula on-line não funciona, pelo menos aqui onde estudam em escola pública. As crianças estavam com muita dificuldade de estudar em casa as apostilas que a Prefeitura manda.

Então a gente voltou.

Fizemos um termo de responsabilidade pras mães assinarem. E se tenta. Uso da máscara, o álcool gel, todas as medidas. A gente sabe que com criança é difícil. Até mesmo com adulto é difícil. Mas a gente tenta fazer o possível.

O GIC teve início no dia 10 de maio de 2003 com 14 investidores e um investimento inicial de 135 reais. Hoje, participam 420 investidores e 29 membros que se reúnem quinzenalmente.
A movimentação financeira passa de 900 mil (maio/2020). A maioria dos empréstimos é para moradia e geração de renda.
O rendimento do GIC é dividido em 3 partes (Fundo Social, Despesas, Caixa Nacional do MCP).
O trabalho da comissão administradora é totalmente voluntário.
 

Em 2003 teve início o Grupo de Investimento Coletivo (GIC). Já nessa virada da estratégia, com a  idéia de criar grupos coletivos.

O GIC é um banco popular, na verdade. As pessoas depositam seu dinheiro, e esse dinheiro é emprestado dentro da própria comunidade.

Os juros que no banco comum seria o lucro do banqueiro, aqui fica na comunidade. É dividido em três partes. O Fundo de Despesa, o Fundo Social, que é prá ajudar com saúde, morte, INSS, e uma terça parte vai prá o Caixa Nacional do Movimento, ajuda com passagens, encontros.

Esse grupo foi um dos que mais cresceu. Aqui hoje ele tem uns quatrocentos e poucos investidores, são pessoas que investem.

E tem um grupo de membros, que são os que decidem a vida do jeito. Se reúnem de quinze em quinze dias. Decidindo os empréstimos e também discute outras questões. Discutem o jornal, discutem outras atividades.

A gente faz um almoço coletivo todo último domingo do mês.

No ano passado (2020) tudo isso deu uma parada, no início da pandemia. Por uns três, quatro meses. Depois aos poucos foi voltando. Porque o próprio pessoal não aguentava mais ficar em casa. Achava que tinha que se reunir. Então a gente foi voltando, de máscara e tal. E hoje a gente mantém as reuniões.

Com esse dinheiro do GIC, com esses empréstimos, o que mais se faz é moradia, é compra de casa e terreno e reforma.

Tem ajudado muita gente a ter sua casa própria, porque nos bancos é muito difícil pegar empréstimo. Além da burocracia, também tem os juros. Os juros são altos e dificulta pro pessoal.

Além da moradia, depois vem a geração de renda. Que pode ser coletiva ou familiar. Nós gostaríamos que fosse mais coletiva, mas como nossas pernas ainda são curtas.

A gente tem um mercadinho ativo, tem uma loja de material de construção. Mas daria prá ter muito mais. Precisaria ter mais militantes, mais gente.

Agora o pessoal individualmente, nas famílias, eles fazem muita coisa com o dinheiro do GIC. Montam padaria, montam um sacolão, salão de beleza, manicure, van prá transporte.

Aqui na comunidade tem muita coisa que já foi feita com esse dinheiro do GIC.

A discussão que a gente faz é essa importância do dinheiro circular dentro da própria comunidade. Ao invés da gente devolver tudo pro capitalista, quando recebe, deixar uma parte aqui prá ajudar a comunidade.

E esse é o trabalho mais forte.

O mercadinho já tem um bom tempo que funciona, mas tem dificuldade de crescer. Tem três pessoas que trabalham, tiram uma renda dali. Mas falta um pouco de empreendedorismo para o coletivo. Que a gente tem que ser empreendedor no coletivo.

E a loja de material de construção é mais nova, de 2014. Vem se mantendo, tem uma questão econômica boa. Tem cinco pessoas que trabalham. Dividem por horas trabalhadas. A gente tenta reforçar essa questão do coletivo, da democracia participativa, tomar decisão junto.

Não é fácil! Mas essa é a tentativa.

Grupo de Vendas Coletivas – GVC
Desde 2001, temos um Mercadinho Coletivo. Três pessoas trabalham e recebem por hora trabalhada.
O lucro mensal é de dois salários mínimos. O número de clientes é, em média, 150 famílias.

Tem um outro grupo que funciona aqui, num processo de educação, disciplina, distribuição de tarefas, muito interessante. É o Grupo das Compras Coletivas.

Esse grupo se junta prá comprar na CEASA. Tem uma vantagem de 30%, em função do fato de poder comprar um volume elevado.

E aí entra o GIC nessa história, financiando prá cada mês. No final do mês o grupo paga e renova a compra. E aí vai.

Essa experiência ela tem uma origem. A gente aprendeu muito na história da Mina de Morro Velho, que é uma história pouco conhecida.

Na Mina de Velho os funcionários conseguiram quebrar toda a economia do município. A partir desse tipo de experiência. Foi preciso envolver o Estado. O Estado interviu prá poder não quebrar os comerciantes da cidade.

Essa experiência tem um potencial muito grande.

Grupo de Transporte Coletivo – GTC
Começou pela necessidade de levar as crianças que ficavam na Creche Comunitária até as escolas municipais. Primeiro, isso era feito a pé.
Em 2015, um companheiro nos apoiou com a doação de uma kombi. Então, passamos a transportar também outras crianças que não são da creche.
A kombi também ajuda no frete para as compras coletivas e compras para o Mercadinho Coletivo.
No final de 2019,visando a segurança no transporte das crianças, conseguimos comprar uma van.

Temos também o Grupo do Transporte. O grupo que faz o transporte das crianças da creche pras escolas. Tem uma van e uma Kombi. E aí constitui um grupo de motoristas. Participam também nas compras coletivas. Auxiliam na logística.

Algumas famílias se reúnem prá comprar junto, uma vez por mês no CEASA.  Fazem uma lista. Depois tem reunião, prá dividir as tarefas. Então, algumas pessoas fazem uma lista geral, outras vão no dia das compras e depois quer separação.

 É bastante tarefa, mas é uma vantagem. Tem uma economia. E também tem a vantagem do coletivo.

Todo mês aí tem de dez a quinze famílias e grupos. Aí o mercadinho também entra, a loja também aproveita pra comprar, prá fazer a compra coletiva.

A única questão que a gente precisaria evoluir é que hoje a gente compra a comida que todo mundo come. Temos conversado inclusive com o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) no sentido de tentar avançar na questão da alimentação saudável.

Tem um grupo de ginástica também, são algumas idosas que fazem. Já existia há um tempo. Depois parou e voltou justamente na pandemia, com a necessidade da preocupação das pessoas de se exercitarem. Três vezes por semana, estão juntos fazendo a ginástica.

E tem as Festas Juninas, que no nosso caso é julinas.

Essas festas conseguem mobilizar. Porque a comunidade está lá no meio de uma população de quarenta mil habitantes.

Com as outras atividades, a gente atinge um número insignificante em relação a essa maioria. Mas com essas Festas Juninas a gente consegue levar a mensagem do MCP prá um grande número de pessoas.

E a gente consegue reunir em torno de 500/600 pessoas nessas festas. Mas envolver mesmo. Todas as famílias, as crianças. E várias pessoas que assumem tarefas.

É uma festa organizada pela comunidade, não só pela militância, ou pelo movimento. O pessoal da comunidade coloca barracas também, não só nós do MCP.

Já são 26 anos consecutivo, nunca falhou. Infelizmente não fizemos ano passado. E não vamos fazer esse ano também por causa da pandemia.

Um fato marcante é que o Morro do Chapadão sempre foi (e é cada vez mais) dominado pelo crime organizado. Isso dificulta a vida do povo por causa da violência durante as operações (incursões) policiais ou  confrontos com facções rivais.
Fora isso,  não há interferência no nosso trabalho. Acreditamos que é porque temos muita ligação com o povo e mantemos neutralidade com relação ao tráfico.
Na Comunidade não vendemos e nem consumimos qualquer tipo de droga, inclusive bebida alcoólica.
Acreditamos que não basta apenas denunciar a violência, é preciso construir alternativas.

Essa experiência não nasceu por acaso e nem é isolada. É orientação nacional do MCP.

Estamos ligados a outras Comunidades  Populares no RJ e em outros Estados. Participamos de Encontros para troca de experiências entre as Comunidades e debatemos as matérias do Jornal Voz das Comunidades (JVC).

Nosso objetivo em curto prazo é resolver as necessidades mais imediatas do povo (explorados e oprimidos): econômicas, sociais e culturais. Em médio prazo, nosso objetivo é criar o Poder Popular para conquistar um Governo Popular de baixo para cima.

Em longo prazo, nosso objetivo é construir uma Sociedade Comunitária (Projeto Redondo) para substituir o Sistema Capitalista (Projeto Pirâmide).

ver também: Diários da Pandemia #43: Movimento das Comunidades Populares (MCP)

Inessa Barbosa Lopes
Militante histórica do MCP, filha de dois militantes extremamente centrais na trajetória do movimento – Janduí de Lima Barbosa, uma das principais responsáveis por organizar a Comunidade Popular Chico Mendes (uma das maiores no país) e João Carlos Lopes, principal teórico e organizador do MCP

Gelson Alexandrino de Souza
Militante histórico do MCP, desde a fundação do Sindicato de Trabalhadores Rurais em Boqueirão dos Cocos (PB) em 1968, participa ativamente de toda a trajetória do movimento até os dias de hoje


sobre Caminhar para a Autonomia:

  • aborda casos concretos de comunidades e territórios com lutas e experiências em seu processo de conquistar autonomias;
  • um passo além dos Diários da Pandemia, até mesmo porque muito embora a pandemia prossiga é impositivo florescer territórios para além dela;
  • envolve também um diálogo com o livro “Por Terra e Território: os Caminhos da Revolução dos Povos no Brasil”, com as caminhadas que este propõe, para divulgar não só situações já existentes como aquelas que surjam a partir de sua leitura.

acesse a série completa: aqui


2 People reacted on this

  1. Exemplos que dar energias, experiências construídas através da lutas.
    Comunidade Chico Mendes ( Morro do chapadao rj) quilombolas, trabalhadoras sem terra, resistências indígenas.
    Teia dos povos, resistências populares, experiências do plantio de alimentos saudáveis, água potável.
    Alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, para o próprio sustento, e dividir com os mais necessitados.
    Este é o caminho, unidade dos povos, com objetivos claros,e ações coletivas dos trabalhadores, em busca de um mundo melhor para todos, vivendo em uma sociedade justa, fraterna e igualitária..
    Este é o caminho que devemos buscar !!!!!

    1. Valeu, Cesar!
      Salve a luta, o talento e a sabedoria da Velha Guarda de Manguinhos, guardiões de nossa cultura popular.
      Viva a Revolução dos Povos no Brasil!

Leave a Comment