Posted on: 7 de agosto de 2024 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Imagem: indígenas Guarani e Kaiowa resistem à tentativa de novo massacre conduzida por fazendeiros contra a retomada Yvy Ajere, em Douradina. Fonte: arquivo da Teia dos Povos-MS.

Os Guarani e Kaiowa, no caminho iluminado dos nhanderu e nhandesy – rezadores e rezadoras -, tecem no Mato Grosso do Sul a abertura de um novo espaço-tempo insurgente. Desde julho, 5 retomadas avançam para recuperar das mãos do latifúndio o tekoha. Umas das retomadas pertence à Terra Indígena Dourados Amambaipegua I, no município de Caarapó; a segunda delas é na Terra Indígena Takuara, município de Juti; e, por fim, há três retomadas na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, no município de Douradina. São dias marcados pela guerra do Estado latifundiário contra os povos indígenas que, a nível nacional, também avançaram suas retomadas no Rio Grande do Sul com os Kaingang, no Ceará com os Anacé, no Paraná com os Ava Guarani.

Este processo, inscrito num percurso histórico maior de genocídio – desde o início da invasão europeia contra Abya Yala – também se dá em meio ao florescimento das resistências dos povos, que demonstram o fim das ilusões com as mentiras do Estado e escancara os limites das instituições, amarradas com os interesses dos de cima, herdeiros da colonização. O levante indígena em curso é um guia para o caminho dos que lutam pela vida. A Aty Guasu, grande assembleia Guarani e Kaiowa, em conjunto com as demais instâncias de decisão e articulação coletiva destes povos – grande assembleia das mulheres, da juventude e dos rezadores – são os principais protagonistas dessa resistência.

A Teia dos Povos no Mato Grosso do Sul, irmanada com os Kaiowa e Guarani, brota na terra vermelha guiada pelos Teko Jara, espíritos-guardiões de tudo o que é vivo e dos modos de ser – outros povos diriam encantados.

Nesse broto de revolução, nos unimos às grandes revoltas para servir ao povo em sua marcha por terra, território e autonomia. Afinal, a terra é fundamento, como nos ensina Mestre Joelson. A terra também é nosso corpo, e nós somos o corpo da terra, como nos ensinam os Kaiowa e Guarani. Este é o chamado que nos convocou para a solidariedade ativa e rebelde, na retaguarda das retomadas em curso, em especial, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica. A seguir, apresentaremos um relato de nossa experiência vivida nos territórios e nosso olhar sobre o conjunto de acontecimentos que ainda estão ocorrendo, que alimentam de revolta os corações dos povos da fronteira oeste.

O avanço das retomadas em Douradina e o cerco do latifúndio

Desde o dia 13 de julho, o principal foco da guerra do latifúndio contra os povos indígenas Kaiowa e Guarani se dá nas retomadas da Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, localizada no município de Douradina (MS). A Terra Indígena em questão foi delimitada em 2011 com 12.196 hectares, mas tem o processo atualmente paralisado por armadilhas jurídicas e burocráticas no Tribunal Regional Federal 3 (TRF3), embasadas no mortífero Marco Temporal. No total, a região conta com 7 retomadas, cada uma com larga história de luta: Tajasu Ygua, Guyra Kambi’y, Ita’y Ka’aguyrusu e Gwa’aroka, há mais tempo consolidadas; e as recentemente recuperadas: Yvy Ajere, Kurupa’yty e Pikyxi’yn. No dia 14 do mesmo mês, um indígena foi baleado na perna com bala letal, perseguido por um fazendeiro em Guyra Kambi’y.

Na ocasião, a cerca de 50 metros da retomada Yvy Ajere, foi montado o acampamento de fazendeiros e arrendatários. Indígenas relatam que camionetes de jagunços realizam cercos constantes e monitoram as áreas com seguranças privados e arsenal bélico característico de guerras de contrainsurgência bem conhecidas na América Latina: armas letais e não letais, fogos de artifício, sobrevoos de drones, luzes de alta potência, fumaceiros e bombas. Além disso, o acampamento é apoiado por toda sorte de políticos bolsonaristas a serviço do latifúndio e pré-candidatos, que se estruturam na guerra para busca de votos neste ano eleitoral.

O MPF, neste contexto, busca realizar negociações/conciliações que implicariam, por um lado, o recuo das retomadas; por outro a concessão de somente 150 hectares de terra das 12.196 já delimitadas como Terra Indígena. Os indígenas reafirmaram inúmeras vezes que não irão negociar sua terra ancestral, pois exigem a demarcação total. Os 150 hectares prometidos, no entanto, resultaram em ordem de despejo, que no dia 5 de agosto foi derrubada através de articulação jurídica entre Conselho Indigenista Missionário, Aty Guasu e Procuradoria da FUNAI. As propostas de negociação mediadas pelo Estado entre indígenas e fazendeiros se revelou como uma grande farsa, uma tentativa de conciliação que se resume no velho funcionamento do Estado latifundiário – independente das cores do governo de turno – como serviçal dos grandes capitalistas.

No dia 22 de julho, passada a primeira audiência de conciliação no MPF, dezenas de camionetes ameaçaram avançar sobre a retomada Yvy Ajere e matar aos indígenas presentes. Nos dias seguintes ao ataque, mantiveram postura ofensiva, invadindo a área de retomada aos gritos e jogando as camionetes por cima das pessoas, suas casas e objetos sagrados.

Ataque do dia 3 de agosto em Pikyxi’yn deixa 10 indígenas feridos

No dia 3 de agosto, foram amplamente noticiados os violentos ataques orquestrados por fazendeiros e pistoleiros contra a retomada de Pikyxi’yn em Douradina. Na ocasião, os ataques ocorrem precisamente no momento da inexplicável retirada da Força Nacional. Como resultado, 10 indígenas Kaiowa e Guarani ficaram feridos, incluindo grávidas, idosas e menores de idade. Até o dia que escrevemos este texto, um indígena permanece em estado grave, ferido com munição letal na cabeça. No mesmo dia, uma camionete disparou contra a retomada Yvu Verá em Dourados; e o Acampamento Esperança, do Movimento Sem-Terra (MST), foi atacado através de um incêndio criminoso. As forças de “segurança” encarregadas, cães de guarda do latifúndio – PM/MS e Força Nacional – se omitem nos momentos desses ataques, mesmo quando estão nas áreas. Os ataques, portanto, ilustram um modus operandi característico de milícia, e estão sendo apoiados pela Frente Parlamentar Invasão Zero (FPIZ), fundada em novembro de 2023 em MS para pressionar a aprovação do Marco Temporal, e do Movimento Invasão Zero, criado em abril de 2023, que já responde por práticas de organização criminosa e incitação ao crime.

Imagem: Retomada Pikyxi’yn, alvo do massacre no dia 03 de agosto, marcha em solidariedade a Yvy Ajere. Fonte: Arquivo pessoal da Teia dos Povos-MS.

Noite do dia 4 de agosto em Yvy Ajere: mais uma tentativa de massacre

No dia seguinte, 4 de agosto, Yvy Ajere se torna palco de um violento ataque. Neste local, desde sua retomada no dia 13 de julho, são constantes as provocações e ameaças de morte dos fazendeiros acampados. Como forma de autodefesa, os Kaiowa e Guarani estabeleceram uma linha de segurança com cordas e hastes de madeira, cujos limites também protegiam um chiru e um yvyra’i, objetos sagrados de importância central para a existência destes povos. Este ato foi imediatamente condenado pelos fazendeiros, que propagandearam falsamente que se tratava de uma expansão da retomada e exigiram a retirada imediata das hastes afirmando verbalmente ao Ministério Público Federal que, caso contrário, “não poderiam garantir o que iria acontecer depois”. A corda se tornou justificativa para um ataque.

A partir das 18h, os fazendeiros iniciam uma brutal ofensiva para a retirada das hastes de madeira com uma invasão de homens a pé, com caminhonetes e tratores. Com foguetes, rojões, bombas e carros, atacaram a comunidade resultando em um ferido, com considerável atraso da Força Nacional para agir, apesar da proximidade das viaturas. O ataque durou 40 minutos. Indígenas poderiam ter morrido nesse cenário de guerra frontal e assimétrica. Os fazendeiros, ainda, atearam fogo no território e utilizaram um trator para derrubar a linha de segurança dos indígenas, destruindo também um chiru e um yvyra’i, objetos sagrados para os Kaiowa e Guarani. Os indígenas afirmam que, ao destruir esses objetos, coisas terríveis irão se abater sobre aqueles responsáveis por esse ataque. Na retomada, ninguém recuou, e a posição das casas segue firme e inabalável. Ao longo dos ataques, as rezas das nhandesy e nhanderu faziam ecoar a força de suas vozes, dos mbaraka e dos takuapu, instrumentos de cabaça e bambu respectivamente utilizados pelos homens e mulheres que rezam. As rezas fizeram parte da autodefesa e mantiveram o espírito de luta incandescente.

Imagem: Yvyra’i na retomada Yvy Ajere. Fonte: Arquivo pessoal da Teia dos Povos-MS.

Neste mesmo dia, estiveram presentes diferentes instituições: além da própria Força Nacional com efetivo incrementado, o Ministério Público Federal (MPF), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), ainda em decorrência dos ataques do dia 3. A despeito da presença de todas essas instituições, os fazendeiros realizaram mais uma tentativa de massacre. Os Kaiowa e Guarani, por outro lado, seguem reafirmando sua digna rebeldia e justa posição frente a verdadeira face do Estado para fazer valer seus direitos. Não se negocia o tekoha. Por terra e território, autodemarcação já!

Imagem: Indígenas Kaiowa e Guarani em frente a linha de ataque dos fazendeiros em suas camionetes, com presença da Força Nacional. Fonte: Arquivo Pessoal da Teia dos Povos-MS.

Entre a cruz e a espada, o mbaraka abre caminhos

O MPI, ao posicionar-se como um dos mediadores em meio aos tensionamentos causados pelos ruralistas, chega sob escolta da Força Nacional à reunião com os indígenas. Através de sua Assessoria Jurídica, pautaram possível negociação para “pacificação” da conjuntura, referente a retirada dos limites físicos (a corda e as estacas) estabelecidos pelos indígenas. Sabemos, no entanto, que a autodefesa através do estabelecimento de limites físicos de segurança está muito longe de representar um ato de violência. As propostas de negociação e pacificação refletem, deste modo, a própria violência do agrobanditismo estatal/institucional, ao sugerir que os indígenas são violentos por delimitarem a área de retomada com cordas e estacas, um dia após o acontecimento de um massacre no qual 10 indígenas ficaram feridos com balas de borracha e armas de fogo.

Entretanto, o discurso da pacificação também é usado por Eduardo Riedel, governador do Mato Grosso do Sul e ex-presidente da FAMASUL, condutor do Leilão da Resistência em 2013. Não acreditamos na paz com a permanência de uma guerra desigual e cotidiana, que obscurece os territórios dos que lutam pela terra. Com a agenda do MPI no dia 6 de agosto na retomada, percebe-se que as instituições se movimentam de acordo com a pressão exercida pela luta de base. É assim que se abre, com facão, os labirintos em Brasília que tentam nos enganar.

A cada dia fica mais cristalino: os vínculos orgânicos do governo Lula com o latifúndio corporativo abrem espaço para flexibilização das leis de forma a querer negociar o fundamental e dissuadir os povos em luta por seus direitos. E isso é parte da própria estrutura do Estado, balcão de negócios dos grandes capitalistas. Por isso, não há atalhos através das instituições. A única garantia de vitórias é a luta organizada e combativa do povo pelo povo, para o próprio povo.

Enquanto isso, a “audiência de conciliação” sobre a Lei 14.701/2023 e o Marco Temporal seguiu o roteiro esperado: os membros da mesa de conciliação, atuando verticalmente e em defesa dos interesses do latifúndio – inclusive membros da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), indicados por Arthur Lira – podem definir por votação se o Marco Temporal irá prevalecer, caso não exista consenso. Os indígenas, a APIB, suas organizações de base e advogados defensores afirmam que têm sido violadas as condições de participação paritária na audiência e que podem romper sua participação nestes espaços caso a Lei 14.701/2023 e seus efeitos não seja suspensa até a data da próxima reunião. A corte ameaça que se não houver participação dos indígenas irão decidir segundo a maioria, reforçando uma lógica tutelar e assimilacionista do projeto colonizador, renegando as autonomias dos povos e suas organizações, direitos originários e mecanismos de consulta prévia, livre e informada, garantidos pelo direito internacional e a própria Constituição Federal.

A solução está sendo construída pelos povos da terra

Em meio a reunião da comissão, os indígenas no Mato Grosso do Sul, de norte a sul do estado, bloqueiam diferentes rodovias. Em São Paulo, os Mbya guarani realizam manifestação contra o Marco Temporal e, ao mesmo tempo, em solidariedade aos parentes Kaiowa e Guarani. O vigor e conteúdo dessa lei é um dos elementos que agudiza a violência contra os territórios indígenas, por fazer parte do desmonte da legislação que exige a acumulação capitalista no presente contexto, para poder saquear livremente os territórios ainda não integrados ao mercado global. A solidariedade insurgente é uma de nossas armas. Ainda, não por um acaso, as casas de lona preta erguidas pelos Kaiowa e Guarani se sobrepõe ao milho transgênico de monocultura e o envenenamento dos agrotóxicos, que pouco a pouco serão retirados para dar lugar às kokue, roças tradicionais, que não são voltadas pro lucro: trazem de volta os teko Jara. Temos certeza que, em breve, o milho branco – avati morotī– vai rebrotar nessas terras para o grande canto-reza-dança do batismo do milho se multiplicar e evitar o fim do mundo.

Não esperamos nada do Estado e dos capitalistas. Enquanto os herdeiros da colonização legislam, massacram e enganam, passo a passo os Kaiowa e Guarani fazem a autodemarcação de sua terra através das retomadas, fartos da espera de 20 anos pela demarcação. Seguimos a toada da música:

Agora nós vamos pra luta

A terra que é nossa ocupar!

A terra é de quem trabalha A história não falha, nós vamos ganhar

Jaá hega de tanto sofrer

Já chega de tanto esperar

A luta vai ser tão difícil

Na lei ou na marra nós vamos ganhar!

Retomar a terra, destruir o latifúndio!

Teia dos Povos de Mato Grosso do Sul

07 de agosto de 2024

Imagem: Nhandesy rezam frente ao cerco paramilitar de fazendeiros e jagunços, de onde foi realizado o ataque do dia 4 de agosto. Fonte: Arquivo pessoal da Teia dos Povos-MS.

A matéria publicada no Quilombo Invisível fornece maiores informações dos acontecimentos que antecedem o presente texto. Ver: https://quilomboinvisivel.com/2024/07/28/um-novo-tempo-de-retomadas-territorios-ancestrais-guarani-e-kaiowa-na-terra-indigena-panambi-lagoa-rica-enfrentam-o-terror-estatal-latifundiario/.

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