Dia 03 de novembro foi dia de chuva muito intensa em Macapá. Precipitação forte, muitos raios, muito trovão. As pessoas se assustaram. A energia caiu. Parecia uma variação comum da energia elétrica para quem testemunhou a tempestade, mas não era: era o começo de 21 dias de apagão do Amapá, o maior apagão em duração da história do Brasil.
Esse apagão afetou a capital, Macapá, e os 16 municípios do Amapá.
Em primeiro lugar, não foi raio nem uma fatalidade o que aconteceu na subestação de energia elétrica. Foi negligência. Um laudo pericial preliminar da Polícia Civil do Amapá já indicava que não foi raio o responsável pela explosão e o Relatório de Análise e Perturbação (RAP) elaborado pelo Operador Nacional de Sistema Elétrico (ONS) registrou um conjunto de falhas das usinas de rede de distribuição que suprem o Estado.
Em um relatório enviado para a Aneel em abril de 2020, o engenheiro elétrico Evandro Cavalcanti, sócio da Gemini SA, admitia que haviam falhas críticas na manutenção da subestação herdadas de negligências da empresa Isolux.
Todo o Amapá ficou sem energia por cerca de três dias. Mas a normalização emergencial não chegou a tempo para todos, nem chegou ao mesmo tempo nas periferias e nas elites. Temos relatos de pacientes de COVID-19 que estavam no respirador e faleceram por falha de energia. Houve rodízio para pacientes de diálise, o que também levou ao óbito de vários pacientes.
A normalização chegou nos primeiros 3 dias para os condomínios de luxo e espaços com centralidade econômica. Bairros como o Zerão e Bailique, periferia de Macapá, ficaram pelo menos 4 dias sem energia.
Vários quilombos urbanos importantes ficaram sem energia por semanas, o que levou a mobilização de grandes campanhas de solidariedade para ajudar essas comunidades a terem acesso a água potável e alimentos, uma vez que o apagão fez com que muita gente perdesse todos os alimentos que tinham guardado.
Campanhas de solidariedade e as negligências contra as comunidades
Em solidariedade aos quilombolas vários coletivos se juntaram para articular solidariedade. O Quilombo Cultural Sankofa, o coletivo Utopia Negra, o Movimento Ancestrais, a Associação de Mulheres Quilombolas Mãe Venina e Ciranda Materna se uniram e conseguiram garantir mais de 2 toneladas de alimentos, mais de 1500 litros de água, 144 kits pra criança e 15 filtros de água instalados para ajudar os camaradas quilombolas a passarem por um momento difícil em que o fornecimento de energia tinha sido interrompido e não havia sido reestabelecido.
“O que mais motivou a gente era fotos e registro das pessoas fazendo fechamento das rodovias reivindicando a garantia do acesso aos direitos”, conta Willy do Quilombo Cultural Sankofa, ”além disso, todo mundo sentiu o apagão e sofreu com a situação. Agora imaginamos como ficou quem vivia mais distante. Foi uma campanha que as pessoas não apenas doavam as coisas também, mas seu tempo, seu esforço, sua presença. No geral as pessoas que colaboraram com a campanha são pessoas de movimentos sociais que compreendem o nosso papel social”.
Os quilombos urbanos passaram por um período de tempo maior que os demais espaços sem ter sua energia normalizada e por isso passaram por várias dificuldades no sentido de ter seu acesso garantido à água potável, por exemplo, e alimentos. Pelo menos uma liderança quilombola, Sérgio Clei de Almeida, professor, de 50 anos, morreu durante o apagão por conta da situação de negligência provocada pelo governo. Isso fez com que, por outro lado e junto a fortes protestos de rua que também ocorreram em paralelo a solidariedade, o Instituto de mulheres negras do Amapá (IMENA) denunciasse o governo Bolsonaro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por violações dos quilombolas.
Também surgiram várias campanhas solidárias espontâneas de ajuda mútua – algumas tiveram mais visibilidade #Ação342 Solidariedade ao Amapá. Outras tiveram menos visibilidade, mais aconteceram com frequência e intensidade como ação de ajuda entre trabalhadores e trabalhadoras.
Conversei com a organizadora de uma dessas iniciativas – que aconteceram aos montes, repito – o Mães Solidárias do Amapá, Alyne Kaiser, 40 anos, jornalista e pedagoga. Ela conta que a campanha de solidariedade das Mães Solidárias eram inicialmente quatro amigas próximas que doavam leite, fraldas, roupas usadas, etc.
Durante o apagão o coletivo mudou de função. Como foi isso? No segundo dia do apagão Alyne conta que “era muito difícil ouvir das pessoas que não tinham nem água potável para beber, ou comida, muitos autônomos não podiam sair para trabalhar e sustentar suas famílias. Muitos perderam a pouca comida que tinha na geladeira porque não tinha como refrigerar”.
Elas sentiram, então, que era necessário se mobilizar porque o poder público não estava dando resposta sobre o retorno de energia nem sobre nada. Foi quando começou a campanha de solidariedade.
Elas então fizeram um chamado por doações pela internet. Alyne conta: “O apoio veio de Amapaenses e de brasileiros. Muita gente doou. Foram 8 mil e 255 reais doados. Tudo investido em cestas básicas e água potável. Foram mais de 500 pacotes de água. 200 cestas básicas entregues. Através de vakinha virtual e com contas bancárias individuais também”.
O coletivo atuou em lha de Santana, Região da Pedreira, Santana, Mazagão Matapi, Anauerapucu. Em Macapá, Baixada Pará, Congós, Goiabal, Marabaixo, Pacoval.
A campanha durou 22 dias de doação, articulação e compras. “Queria agradecer a todos os seguidores, as pessoas que doaram, sem eles a gente não conseguiria ter garantido um pouco de água pras famílias que foram prejudicadas pelo apagão. Queria agradecer ao grupo #SOSAmapá que se dispuseram a espalhar a notícia também”.
Se os danos do apagão não foram piores, foi por ter havido muita campanha de solidariedade como essa e ajuda mútua pela base dos trabalhadores na sociedade amapaense.
#SOSAmapa e os protestos
“A partir do quarto dia do apagão em bairros da periferia como o Zerão, por exemplo, em Macapá” conta Irlan em vídeo divulgado pelo Canal Transe “, e o pessoal percebeu que não ia voltar a energia tão cedo. Começaram os protestos”.
Na primeira semana de protesto aconteceram mais de 65 protestos nos 16 municípios do Amapá contra a crise energética – por vários motivos. Em alguns lugares, por exemplo, queriam normalizar a energia apenas no condomínio de luxo do bairro – e retirar da rua principal do bairro que era povoado por gente pobre. Em outros lugares, o racionamento não funcionava.
O #SOSAmapa surge em meio a essa movimentação quando ativistas de mídia que tem acesso a alguma energia elétrica decidem se dividir, registrar e divulgar esses protestos na periferia de Macapá.
Foi por causa dessas pessoas, em geral midialivristas, que se espalharam as imagens da repressão da tropa de choque contra os protestos no Brasil inteiro quando a mídia falava que a energia no Amapá tinha “acabado de normalizar”.
O movimento passou a instrumentalizar a hashtag #SOSAmapá para gritar que NÃO ESTAVA NORMALIZADO, para divulgar que o racionamento não estava funcionando e não era um jeito razoável para ninguém sobreviver e para continuar divulgando os protestos que continuavam acontecendo.
De acordo com registro da Polícia Militar do Amapá, no começo da terceira semana do apagão no Amapá tinham acontecido pelo menos 110 protestos contra a crise energética.
O Ministro Bento Albuquerque foi recebido com protestos da população e teve que se esconder no hotel enquanto o presidente Bolsonaro agendava sua visita para sábado. O Presidente, quando chegou para apertar o botão ligando as geradoras, também foi recebido com protestos tanto do movimento sindical e popular quando dos militantes da frente #SoSAmapá.
Depois de 21 dias e muito protesto, acabou o racionamento.
Mas então tudo voltou ao que era antes?
A Frente #SOSAmapá mantém-se unida e tem perfil no twitter e no instagram onde seguem divulgando denúncias e suas ações. É importante fortalecer seus meios de comunicação para enfrentar o apagamento que o Amapá enfrenta na mídia tradicional e mesmo nos meios alternativos de comunicação. E lá que divulgaram que o Bairro do Bailique, por exemplo, continua sem ter seu fornecimento de energia normalizado.
Ninguém foi responsabilizado pelo que aconteceu durante esses 21 dias de apagão.
O TRF-1 derrubou no dia 20 de novembro a decisão que afastava a direção da Aneel e da ONS por conta do apagão.
Bolsonaro editou duas Medidas Provisórias: A MP 1010 que isenta a população do Amapá por 30 dias pela conta de luz e a MP 1011 que garante um crédito de R$80 milhões para Companhia Elétrica do Amapá – o pretexto é que o apagão foi uma fatalidade e que portanto não deve ocasionar prejuízos nem para a sociedade (por meio de tarifa mais alta para todos) nem para as empresas (por meio de prejuízo nos seus balanços).
O Tribunal de Contas da União e o Ministério Público entraram com ação pedindo sequestro de bens das empresas concessionárias da energia elétrica no Amapá ao invés de onerar o poder público.
Não havendo responsabilização, não há garantia que a negligência não vai continuar. Nos últimos dias os geradores adicionais de energia foram retirados e mais uma vez se houver uma falha crítica na subestação, haverá apagão.
Vai depender da comprovada capacidade de organização e solidariedade dos trabalhadores urbanos e rurais e das populações periféricas do Amapá que eles consigam sobreviver aos próximos tempos. Não há garantias nem do poder público, nem dos capitalistas que seguem explorando a energia elétrica do estado.
Victor Hugo Viegas
Jornalista e funcionário da Universidade Federal de Goiás. Atualmente está atuando junto à comissão de comunicação do movimento #SOSAmapá.
vídeo:
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