Posted on: 5 de dezembro de 2020 Posted by: Rafique Nasser Comments: 0

Por Rafique Nasser

No dia 24 de novembro, moradores de Piatã (BA), na Chapada Diamantina, se manifestaram contra a possível implementação de um empreendimento de agronegócio, que tem a intenção de montar uma bataticultura na região dos Gerais. O protesto foi articulado por conta das portarias n° 21.671 e 21.672 (19/10) do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), que concede autorização de manejo de fauna silvestre e desmatamento de 958 hectares de vegetação nativa, na fazenda Piabas, à empresa japonesa Shuichi Hayashi.

No dia 20, a Promotoria de Justiça Regional Especializada em Meio Ambiente, após investigações e denúncias, recomendou ao INEMA o cancelamento das licenças de supressão de vegetação e manejo de fauna e a interdição de atividades decorrentes da autorização.

A manifestação, que aconteceu da rodoviária à câmara de vereadores do município, solicitou, a partir de uma carta entregue a representantes do poder legislativo municipal, uma audiência pública sobre o caso. Na ocasião, com o objetivo de mostrar as potencialidades do trabalho de agricultura familiar das comunidades rurais, foram servidos produtos de pequenos produtores locais.

Numa matéria de autoria coletiva, publicada no dia 30 de novembro, explica-se que o modelo de agricultura proposto pela empresa “se baseia na implantação de monocultivos em grandes extensões de terra, apoiado na mecanização do campo com o uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes e apropriação dos recursos hídricos, se sobrepondo aos modos de vida locais já existentes”. 

Sobre o conflito, conversamos na última quinta-feira (03/12) com o coletivo SOS Bacia do Rio de Contas, que tem atuado de forma organizada em relação à questão.

TEIA –  Vocês podem nos informar um panorama geral sobre o conflito?

SOS BACIA DO RIO DE CONTAS – Entendemos a chegada da empresa Hayashi como uma grande ameaça à segurança hídrica, soberania alimentar e à continuidade da agricultura familiar no nosso município, sendo esta o sustento de dezenas de famílias e uma das principais atividades econômicas desenvolvidas em Piatã. Após diversas ações da empresa, sem a apresentação do projeto que pretendem implantar e sem a possibilidade de diálogo com a sociedade, nós, moradores das comunidades rurais resolvemos nos unir em um grande ato de celebração e manifesto em apoio à agricultura familiar como forma de visibilizar o conflito que vem desde 2013, bem como enfatizar a importância que a agricultura familiar representa para a produção de alimentos saudáveis em nosso município. Aproveitamos o momento para protocolar junto a Câmara de Vereadores uma carta a qual pontuamos os nossos receios e solicitamos a realização de uma audiência pública para que as comunidades possam se manifestar sobre a implantação do projeto, já que os seus impactos ultrapassam os limites da propriedade rural a qual foram concedidas as licenças ambientais. 

TEIA – No dia 24 de novembro ocorreu uma manifestação contra a implantação do empreendimento de agronegócio de batatas na região. Como foi chamado o ato, quem participou e quais os resultados esperados?

SOS BACIA DO RIO DE CONTAS – A partir da manifestação voltamos a tornar público o conflito entre a empresa Hayashi e as comunidades que vem desde 2013, dando voz à sociedade, já que não há até o momento possibilidade de diálogo por parte da empresa, bem como a previsão de uma audiência pública onde todos possam ser ouvidos e expôr a sua opinião.

TEIA – Como se iniciaram as mobilizações coletivas em Piatã? Podem nos informar um breve histórico?

SOS BACIA DO RIO DE CONTAS –  A empresa Hayashi já possui um contexto conflituoso na região desde 2013 quando deu início às obras para a construção de uma barragem localizada no Rio Gritador, importante afluente do Rio de Contas. Naquele momento, a empresa usou como prerrogativa o decreto nº 14.389 de 7/04/2013, que isentava na época o licenciamento ambiental para empreendimentos de combate à seca, com a finalidade de abastecimento humano, devido ao grave período de estiagem que o Estado enfrentava naquele momento.

Durante um período de 25 dias, as obras se seguiram e 6 comunidades, aproximadamente 30 famílias, foram diretamente impactadas, uma vez que começaram a receber água com lama na torneira de suas casas. Diante desta situação, foi feita uma denúncia ao INEMA, que após fiscalização no local, embargou a obra por falta de licença de supressão de vegetação, visto também que a mesma não se enquadrava no decreto citado acima, já que a barragem que pretendiam, e ainda pretendem construir, é uma barragem privada com a finalidade de irrigação. Desde esse período as comunidades rurais atingidas e próximas ao empreendimento se mobilizaram e se uniram buscando os seus direitos de participação ativa na decisão da implantação do mesmo, pois os impactos gerados pelo empreendimento ultrapassam os limites da propriedade rural a qual está sendo instalado e apresentam um risco real a manutenção das atividades desenvolvidas nas comunidades rurais já existentes. Em junho de 2020 a empresa Hayashi retornou ao Gerais de Piatã realizando a abertura de uma estrada que segue paralela ao Rio de Contas sem nenhuma autorização prévia para supressão de vegetação nativa junto ao INEMA. Em 19 outubro de 2020 o INEMA concedeu as licenças de n° 21.671 e 21.672 para o manejo de fauna silvestre e supressão de 958 hectares de mata nativa, respectivamente, na Fazenda Piabas. Ao observarmos o retorno da empresa, e a mesma forma de atuação, sem participação e diálogo com as comunidades já existentes, nós moradores resolvemos retomar os encontros e debates realizados em 2013 trazendo o questionamento sobre a atuação da empresa e os riscos que ela representa para a manutenção das nossas atividades. Após o Ministério Público Estadual recomendar o imediato cancelamento das portarias concedidas pelo INEMA devido a ilegalidades no processo de licenciamento ambiental resolvemos nos manifestar contra a instalação do empreendimento respaldando a recomendação do Ministério Público Estadual. 

TEIA: A região é a nascente de três bacias hidrográficas do Estado. Qual a importância delas para a população da região e da Bahia como um todo? Como o empreendimento em questão as põem em risco? 

SOS BACIA DO RIO DE CONTAS – O empreendimento situa-se bem próximo à unidade de conservação estadual ARIE Nascentes do Rio de Contas, região que, além de ser considerada uma das principais áreas de recarga hídrica para o Estado da Bahia, apresenta uma rica biodiversidade com representantes da fauna endêmica e ameaçadas de extinção. A região dos Gerais de Piatã é caracterizada por ser uma elevação de topo plano, alagadiça, onde toda a sua extensão é uma importante zona de recarga para os seus rios, ainda pouco volumosos por estarem próximos às suas nascentes, mas fundamental para a drenagem de água no estado baiano, pois é nela que encontramos as nascentes de três importantes bacias hidrográficas estaduais (Contas, Paraguaçu e Paramirim). Rios que, sem exceção, cruzam as regiões mais áridas do Estado e cumprem a importante função social de abastecimento hídrico humano e de uso produtivo. É, ainda, uma área de reconhecida fragilidade ambiental, com vegetação de campos rupestres e cerrado, de raízes profundas, fundamentais para a infiltração de água nos lençóis freáticos. Contrapondo toda a sua importância ambiental e social, a empresa Hayashi pretende implantar nessa região um empreendimento para a produção de batata no modelo de agricultura convencional e intensiva em grandes extensões de terra, apoiado na mecanização do campo com o uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes e apropriação dos recursos hídricos, se sobrepondo aos modos de vida locais já existentes. A entrada do agronegócio na região pode trazer profundos impactos sociais e ambientais, interferindo nas dinâmicas naturais da área, com a perda da biodiversidade e o comprometimento dos recursos hídricos, tendo em vista que o cultivo de batata demanda grandes quantidades de água e uso de agrotóxicos, interferindo também na qualidade e na disponibilidade das águas para o abastecimento humano, bem como para o desenvolvimento de uma das principais atividades econômicas do município, que é a agricultura familiar. Pressionados pelo contexto desses grandes polos, pequenos agricultores tendem a migrar para os centros urbanos, sendo inseridos num contexto sem identidade cultural.

TEIA – Qual o papel que o poder público, tanto estadual quanto municipal, exerce no contexto do conflito? 

 SOS BACIA DO RIO DE CONTAS – No atual conflito não temos nenhum respaldo, nem mesmo a manifestação por parte de representantes da Prefeitura Municipal de Piatã, nem posicionamento do INEMA sobre as sucessivas denúncias feitas pelos moradores locais e sobre a recomendação feita pelo Ministério Público para o cancelamento das licenças ambientais, e esse foi um dos grandes motivos pelo qual resolvemos nos manifestar no ato em apoio à agricultura familiar, aproveitando do espaço público para expôr os nossos receios quanto aos impactos negativos que a chegada deste empreendimento representa para o nosso município, enfatizando ainda a importância da agricultura familiar para as comunidades rurais que dela dependem e para a sociedade como um todo.

TEIA: O INEMA concedeu à empresa Shuichi Hayashi a autorização para desmatamento de cerca de 950 hectares de vegetação nativa na Fazenda Piabas. Mas a promotoria de justiça regional especializada em meio ambiente emitiu uma recomendação para que o INEMA volte atrás na decisão e cancele as licenças de supressão de vegetação e manejo de fauna. Como vocês analisam essa situação jurídica?

SOS BACIA DO RIO DE CONTAS – Para nós, moradores, as licenças concedidas pelo INEMA possibilitam o aumento da vulnerabilidade ambiental e social na região, pois não levam em consideração as realidades e demandas locais, a expressividade da agricultura familiar no município e a fragilidade ambiental do Gerais de Piatã. O INEMA deveria emitir as licenças com profundo conhecimento local e critério ambiental, pois os impactos causados por essas empresas ultrapassam os limites da propriedade e são irreversíveis, representando uma grande ameaça aos recursos naturais e à sociedade. A manifestação do Ministério Público por meio de uma recomendação embasada em critérios técnicos enfatizando também a importancia e relevancia ambiental dessa área como zona de recarga hídrica traz uma grande esperança para nós produtores que somos contra a instalação do empreendimento, mas sabemos que não é suficiente, pois o INEMA e a empresa Hayashi ignoraram a recomendação e seguem avançando com o desmatamento.  

TEIA: Quais as relações da conjuntura em piatã com a presença do agropolo de Mucugê e Ibicoara? 

SOS BACIA DO RIO DE CONTAS – Piatã tem sido alvo da expansão do agropolo que já apresenta bem consolidado na região de Mucugê e Ibicoara, assim como seus impactos. É sabido que na citada região, em decorrência da implementação do agropolo, houve uma significativa mudança na dinâmica populacional, já que houve um grande êxodo rural, como consequência, dentre outros fatores, do acesso aos recursos naturais para os agricultores familiares, principalmente à água. Esse movimento citado acarretou em uma grande concentração fundiária e em uma diminuição significativa na variedade de alimentos produzidos. A grande demanda de água nos cultivos gerou uma pressão sobre a bacia do Paraguaçu. Entre 2000 e 2010, nos períodos de seca, houve uma diminuição da vazão do rio em 55%. Atualmente, há relatos de moradores locais de que o rio fica interrompido em vários trechos por não ter vazão suficiente. Segundo uma pesquisa obtida em uma investigação conjunta pela ONG Repórter Brasil, da Agência Pública e da organização suíça Public Eye, no período entre 2014 e 2017, a água de Mucugê apresentou uma grande concentração de agrotóxicos, sendo considerada uma das piores da Bahia. Além disso, após a chegada do agropolo na região houve uma explosão de violência no distrito de Cascavel, devido à grande pressão populacional que as empresas proporcionaram nos núcleos urbanos. Há também, no mesmo distrito, uma grande quantidade de relatos acerca do odor de podridão em decorrência dessa produção. De fato, há uma grande preocupação quando cruzamos as informações acerca dos impactos gerados pelo agropolo em Mucugê e Ibicoara, e que podem vir a acontecer em Piatã, já que a cidade é produtora de cafés premiados, morangos de exportação e possui uma feira riquíssima em diversidade produtiva. É também local reconhecido pela incrível beleza cênica, abrigando chapadões deslumbrantes, cachoeiras, pinturas rupestres e a possibilidade de implementação de um turismo de base rural. Acreditamos em outra forma de desenvolvimento para o município, pautada na agricultura familiar e no ecoturismo, sendo possível gerar empregos de forma mais sustentável, tanto econômica, quanto ecologicamente, contribuindo também para a distribuição de renda. A implantação do agropolo pode prejudicar ambas possibilidades de desenvolvimento, interferindo diretamente na qualidade e na quantidade da água que seria usada para esses fins, concentrando mais terra e expropriando culturas centenárias que ocupam a região.

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