*Por Ademir Antônio e Erahsto Felício
Nas últimas décadas os efeitos das mudanças climáticas, fruto do modo de produção e dominação capitalista ao redor do globo, começaram a ficar mais agudas. Em nosso país, todas as regiões têm sentido essas alterações. Irregularidades pluviométricas como estiagens, secas, chuvas torrenciais e enchentes vão se alternando. Para os povos das águas, dos campos e das florestas o cenário vai ficando dramático à medida que as safras ficam comprometidas por essas alterações extremas. Para os pobres da cidade o reflexo vem com a elevação do preço dos alimentos, que tem sua principal origem na agricultura praticada por camponeses, caiçaras, quilombolas e indígenas.
No Brasil e no mundo, a agricultura modificou seu modelo depois da chamada Revolução Verde, que inseriu no pós-segunda guerra mundial, maquinário bélico e produtos químicos como mote para garantir o lucro das grandes empresas capitalistas desse tipo de produção, reforçando o domínio dos grandes donos de terras e expandindo ainda mais a exploração da terra e dos bens comuns. Esse modelo associado ao capitalismo financeiro, jogatina na bolsa de valores, especulação de commodities, ficaria conhecido a partir da virada do século XXI como “agronegócio”. Subsídios dos Estados-Nação vieram para poluir as águas, desertificar áreas, derrubar as florestas e matar rios, numa implacável luta contra o modo de vida dos povos originários e tradicionais e contra a biodiversidade.
O pós-guerra entre as nações da Europa-Japão-EUA significou na América Latina, na África e nos países pobres, o que poderíamos chamar de 3° guerra mundial, contra a natureza e contra a vida das populações. Quantos milhões de pessoas foram mortas para que esse modelo de agricultura se implantasse e se expandisse pelo planeta? Dificilmente poderíamos mensurar, mais difícil que calcular isso, é calcular a perda do patrimônio genético, em pouco mais que meio século.
Os impactos disso são as mudanças climáticas atuais, que tendem a se aprofundarem caso não exista uma intervenção socialista que freie esse avanço sobre o que ainda resta de bens comuns e que venha no sentido de restaurar ecossistemas, e reconectar os povos com suas terras, suas florestas, suas águas e seus territórios.
Enquanto a luta revolucionária no campo das esquerdas perdeu fôlego e foi se urbanizando com a sociedade, no campo a reação a esta 3ª guerra foi a (re)construção de movimentos campesinos, de povos originários e tradicionais que aliavam a luta por terra e território à conservação dos biomas que estavam inseridos. As ilhas de conservação no mar da devastação são também onde os povos têm erguido suas moradas e semeado uma nova sociedade que se harmoniza com a Mãe Terra.
Regionalizando esse debate
O Rio Grande do Sul, ficou conhecido por ser uma das primeiras regiões a organizar sua produção agrícola a partir dessa lógica de guerra. Maquinário pesado e pacotes de agrotóxicos e fertilizantes são adotados em larga escala ainda nos anos 1960, fortalecendo a monocultura de soja e milho do latifúndio existente. O modelo de sucesso para poucos, gerou inúmeras contradições, a maior delas, possivelmente, foi a formação da Encruzilhada Natalino, no final dos anos 1970, de onde surgiria o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Por outro lado, cresceria o latifúndio, acumulando riquezas na base da superexploração da terra e das pessoas, além de destruir populações rurais inteiras no Rio Grande do Sul. Essas práticas agrícolas iriam se espalhar pelo país numa marcha que não fica devendo em nada para a tese do Destino Manifesto da colonização dos EUA. Latifundiários gaúchos e também famílias agricultoras de origem europeia, com base numa ideologia ruralista se alastrariam como praga subindo pelo oeste catarinense, centro e oeste do Paraná, alcançando em pouco tempo Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amazonas, Pará, Rondônia e avançando ainda para além das fronteiras nacionais, chegando a regiões da Bolívia e de outros lugares. Quem não ouviu falar dos conflitos protagonizados pelos brasiguaios no Paraguai? O grande escândalo é que essa marcha não parou. A Amazônia é o último obstáculo a ser transposto pelo Espírito de Blairos Maggis da vida. Enquanto isto, eles fingem que as queimadas na Amazônia e no Pantanal são obra desses “índios e caboclos”. Pelo caminho que passam vão criando novas frentes. O impacto é avassalador sobre o solo e o bioma. Onde o relevo é acidentado eles alteram as serras e os acidentes geográficos para que se possibilite ir com maquinário aonde a anos atrás ninguém imaginou que se pudesse fazê-lo.
O saldo desse modelo não tem como ser positivo. Populações tradicionais destruídas, terras indígenas invadidas e desequilíbrio ambiental generalizado. Se compararmos as paisagens do campo por onde passou essa marcha, em pouco mais de meio século, é possível atestar a devastação e o cenário de terra arrasada. Não tem mais floresta, é soja e milho transgênico a perder de vista.
É preciso barrar o avanço da marcha da morte no seu fronte principal: apoiando os indígenas e populações amazônicas para que resistam em seus territórios, ao passo que aqui, onde já passaram, se amplie a luta para retomar territórios e regenerar o ecossistema a partir do pouquíssimo que sobrou.
A volta que o mundo dá
Hoje nós estamos olhando a região Sul do Brasil enfrentar uma crise hídrica que já chega nas grandes cidades. A região metropolitana de Curitiba já enfrenta racionamento neste ano. Estamos falando de um Rio Grande do Sul que possui 103 municípios com estiagem. E apesar da seca ser uma realidade concreta da região, o modelo de agronegócio que produziu e produz esta seca ainda não está em crise. Há claramente uma alienação provocada pela publicidade do latifúndio que faz agricultores debaterem a seca junto ao Estado, mas não proporem a mudança do modelo de produção de alimentos. Com isto, as ações paliativas dos governos não surtem efeito na reversão da situação ambiental e climática, mas na acomodação ideológica dos agricultores ao modelo destrutivo.
As causas da seca são conhecidas. O próprio Governo Federal, comandado também pelo latifúndio, admite em um de seus órgãos do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Segundo o CEMADEN, o desmatamento da Amazônia é o responsável pela seca nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Alguns intelectuais explicam a tese dos Rios Voadores que são formados pela umidade do bioma Amazônico e viajam em nuvens para o centro-sul do país. Quanto mais queimadas e desmatamento, menor a umidade e menor a capacidade das chuvas chegarem a estas regiões. O impacto se estende para além do Brasil atingindo Paraguai, Uruguai e Argentina.
Como dizem os mais velhos, parece que a terra nos está fazendo aprender pela dor. E é por esta razão que não temos como nos furtar da reflexão política tampouco da necessidade de fazer avançar outras formas de produção de alimentos mais respeitosas com a terra. E isto é sobre uma ética com a natureza. Se ela tem sido tão generosa por tanto tempo conosco e agora nos parece avisar sobre as novas condições de vida nela, talvez tenhamos que ir até ela ofertar cuidado, subir florestas, plantar água e cuidar da biodiversidade. Porque a seca não é um problema apenas para a produção de alimentos para nós. A seca é a diminuição das condições de vida para a fauna silvestre, nossas pequenas criações e para toda a complexidade da vida que pulsa em nossos territórios.
A saída, não há dúvida, está na luta pela terra. A retomada da terra e o plantio das florestas é a maior defesa da vida contra a destruição dos biomas pelo monocultivo. E sabemos que precisaremos de muita comida e geração de riqueza para convencer nosso povo a sair da beira do agronegócio, para largar de mão este “desenvolvimento” assassino. No lugar da monocultura, temos que fortalecer os sistemas agroflorestais. No lugar das máquinas, a grande cooperação desde baixo da agricultura tradicional dos povos, que respeita a terra, os bichos e as plantas. No lugar do veneno do agrotóxico, a ciência da agroecologia, o conhecimento dos biomas, das plantas e de suas boas interações com outras plantas e bichos. Então precisamos gritar numa luta rebelde: Agroecologia ou seca! Agrofloresta ou morte!
*Ademir Antônio é trabalhador da terra e agroecologista no Rio Grande do Sul
*Erahsto Felício é educador e da Divisão de Comunicação da Teia dos Povos
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