Texto originalmente publicado em espanhol no portal Desinformémonos
Como toda mulher Munduruku quando fala da resistência de seu povo, Alessandra Korap, Maria Leusa Kaba, Lucinea Karo e Aldira Akay fazem com que seja ouvida não apenas a sua própria voz, mas a de uma multidão — de outras mulheres, de crianças, de homens, de espíritos e outros seres da terra, da floresta, dos rios e igarapés. Pois é pela vida de todos, e pelo futuro de todos, que tecem a resistência (em aliança e composição, em cuidado mútuo, consenso e consideração). Viver e lutar são faces e forças que se alimentam uma da outra na experiência dos Munduruku. Assim, ao refletir sobre a pandemia que afeta o seu povo em múltiplas formas — atingindo tanto os corpos das pessoas como a base da existência das comunidades: seus territórios, seu modo de vida e cultura —, Alessandra afirma, tenaz:
“nós precisamos viver para continuar a luta. Eles vão chegar para tomar o nosso território. É isso que o governo quer, tomar o nosso território, a nossa terra, o que é mais sagrado para nós. Quer fazer esses projetos de morte no nosso rio, na nossa floresta. Acabar com a nossa cultura, acabar com a nossa linguagem, acabar com o nosso bem-viver.”
O povo Munduruku, que hoje soma aproximadamente 15 mil pessoas, habita há séculos o vale do Tapajós, no sudoeste do Pará (além de regiões dos rios Madeira e Xingu, Norte do Mato Grosso e Amazonas). Estão em diferentes terras indígenas, em uma região ampla, por onde também se estende a maior província mineral do mundo em extensão — motivo para o assédio crescente (e histórico) de mineradoras e garimpos. Não bastassem as atividades predatórias sobre o solo, o leito dos rios e as florestas (pois além dos garimpos que se instalam ilegalmente em suas terras, o crime organizado da madeira também os cerca e invade), as comunidades Munduruku também estão no meio de uma encruzilhada de projetos de infraestrutura e logística que buscam atender gigantes do agronegócio e seus parceiros chineses. São tantas as frentes da investida capitalista, quanto são atrozes os modos como incidem na vida das lideranças e de suas famílias, e no próprio povo — como conta Maria Leusa Kaba, coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborun:
“Eu fiquei fora do território seis meses, por causa de ameaça. Foi muito ruim pra mim, mas eu retornei para o território. A gente está por aqui, na frente, e a gente está na organização, para ajudar os caciques, as lideranças, o que eles precisarem, então eu tive que voltar para cá. Mas as ameaças continuam, as mesmas falas, eles vão tentar fazer de tudo para impedir a nossa luta mas a gente vai continuar. Principalmente as mulheres que estão na luta vêm sofrendo ataques, discriminação, ameaças. As mulheres conseguiram se fortalecer pra estar nessa luta; a gente sempre vem dizendo, fazendo carta, denunciando, fazendo ações dentro do território, monitoramento do território, fazendo formação de mulheres, encontro de mulheres, para estar na luta, para mostrar a nossa resistência, para fortalecer a nossa luta do povo Munduruku, na defesa do seu território, na defesa do direito.”
Uma mulher Munduruku não age sozinha; é para projeto coletivo de vida do seu povo, o futuro dos filhos, a proteção da terra e a saúde das comunidades que se voltam: aspectos da luta que é uma só. Nas palavras de Aldira Akay: “As futuras gerações vão ver que foi muito difícil para os pais. A mesma luta que a gente tá vivendo, eles vão viver também. Porque quando eles crescerem, eles vão entender: tudo que os pais faziam, defender o seu território, defender a sua casa, os seus filhos, eles vão viver da mesma forma que nós”. Trata-se de um sentido próprio de autonomia, radicalmente distante do individualismo branco, diretamente ligado aos projetos coletivos de futuro das comunidades e, ao mesmo tempo, enraizado na história narrada, através dos séculos, por anciãs e anciãos. Foi inclusive sobre esses alicerces — os mais velhos, sábios e conhecedores da história, cosmologia e das tradições Munduruku — que a pandemia incidiu dolorosamente. Até outubro de 2020, faleceram por Covid-19 21 Munduruku, a maioria acima de 60 anos de idade.
Lucinea Karo conta:
“Perdi um grande guerreiro que é o meu tio Amâncio, sabedor de histórias… E outros que também já se foram, os anciões. Isso é muito triste. A gente está aqui lutando, contra a Covid, ajudando as nossas aldeias, correndo atrás de alimentação, para que os caciques e os familiares de cada aldeia não venham para a cidade. Porque agora está havendo a segunda onda da pandemia e acontecendo mais mortes, de brancos, de indígenas. Eu já sofri muito com o meu pai, a minha mãe e o meu irmão, que também pegou a Covid, e graças a Deus, melhoraram. A situação do meu pai foi mais difícil, a gente ficava com ele 24h; batalhamos e conseguimos superar. A gente fica triste por causa da morte do meu tio, eu mesma ainda não superei direito, nem meus pais.”
“A gente não parou, por mais que a tristeza viesse”, conta também Alessandra Korap. “Eu tive que tomar remédio fortíssimo para dormir, porque a cabeça estava doendo demais, eu não estava conseguindo nem pensar direito. Mas no outro dia eu acordei e pensei: precisamos levantar, precisamos porque é muito povo precisando da gente”. As associações Munduruku do alto e médio Tapajós (mais de 15 organizações) conseguiram, de forma independente, agir para a proteção das suas próprias comunidades.
É novamente Alessandra quem explica:
“A gente fez tanto trabalho de levar informação, e fazer panfleto com as mulheres, com as associações; e a gente levou cesta básica, tivemos ajuda, e foi distribuindo. A gente foi fazendo oficina de pomada, eu tive que aprender a fazer sabão para ser distribuído nas aldeias. E quando vieram as primeiras mortes eu fiquei muito triste, todo dia eu acordava e tinha alguém morrendo, alguém contraiu Covid. A gente muitas vezes não estava mais conseguindo dormir, e eu estava tão desesperada… Eu ficava pensando: onde foi que nós erramos? Por que as pessoas não ouvem? Mas eu percebi que não era assim. Porque tem muita entrada no território, muitas invasões. É pista clandestina, pessoas indo para explorar, para tirar ouro, e aí não era culpa nossa. Mas o culpado maior também era o governo federal, porque era um líder que devia orientar as pessoas e infelizmente estava falando coisa errada, falando que era para as pessoas voltarem a trabalhar, não ficar isoladas, que era só uma gripezinha… Ele falava na mídia, a mídia passava, as pessoas assistiam, iam passando adiante.”
“Neste momento da pandemia, ninguém tem segurança”, diz Aldira, que também explica:
“Os invasores [madeireiros, garimpeiros, grileiros] estão sempre invadindo as nossas terras. Com o coronavírus piorando, eles acham melhor fazer esse trabalho sujo no nosso território, de derrubar e roubar as madeiras, pois ninguém está fazendo fiscalização. Não adianta a gente fazer denúncia para esses órgãos, que se dizem defensores dessas áreas. Quem defende somos nós: nós que queremos preservar a nossa natureza, a nossa casa, e fazer fiscalização no nosso território, com os nossos guerreiros, nossos filhos, nossos caciques. A gente não tá dependendo mais desses órgãos. O governo mesmo que manda essas pessoas invadirem as nossas terras. Para o presidente nós não somos nada, ele não está nem aí para os indígenas que defendem a terra, que querem ver os seus filhos crescendo.”
Lucinea Karo complementa: “várias empresas que querem comprar os pedacinhos da nossa terra, querem invadir, querem fazer exploração. A gente está lutando para que a terra Sawre Muybu seja demarcada primeiro: estamos nós na luta”. Localizada no Médio Tapajós e com uma população de aproximadamente 800 pessoas, a TI Sawre Muybu é o principal alvo de requerimentos de pesquisa minerária da empresa Anglo American — aliada de Bolsonaro desde antes das eleições de 2018.[1] Em 2016, o governo brasileiro reconheceu a tradicionalidade da ocupação Munduruku nessa TI, publicando os estudos técnicos da Funai; no entanto, o processo de regularização fundiária dessa terra (que ainda precisa passar pelas etapas de declaração, demarcação física, homologação e registro) está paralisado.
“A nossa luta é muito grande pelo nosso território, pela demarcação, pela defesa dos direitos, contra os empreendimentos”, diz por fim Maria Leusa Kaba, que reforça o ponto de que o povo Munduruku é um só, a luta é uma só:
“A gente está morrendo de Covid, está sendo contaminado por mercúrio, está morrendo de malária, com o aumento dessa invasão dentro do território. Mas o nosso território é muito grande, e a nossa luta é muito grande. É pela demarcação onde ainda não está demarcado, o médio Tapajós… A nossa luta defende esses territórios todos, não importa onde seja. E a gente vai aprendendo, principalmente nós, mulheres. Com a nossa visita ao México, em 2017, a gente foi lá e aprendeu como pode seguir a nossa luta, uma experiência de visitar os povos que são autônomos.”
“A gente quer continuar e quer mostrar a existência e a nossa autonomia. Então a gente está aí, mesmo num momento de pandemia, os pariwat [não-indígenas] são invasores, não querem respeitar, continuam invadindo, eles sabem que estão trazendo doenças para nós, eles sabem que estão fazendo invasão. A gente continua aqui incentivando as mulheres, incentivando os homens, fortalecendo o trabalho das mulheres, geração de renda, produção, fortalecendo a comunicação nas aldeias, para as mulheres dialogarem mais entre si, passando informação tanto para nós quanto para outras aldeias, as aldeias isoladas. A gente trabalha coletivo, nossa luta é única. Eu queria falar isso, que a gente vem incentivando as outras associações também para estar nessa luta, buscando fortalecer a nossa luta.”
[1] ver a denúncia na reportagem ““Strategic Partners”: Britain’s secret lobbying of Bolsonaro for Big Pharma, Oil and Mining”, disponível em