Por Mariana Cruz
É tempo de plantar. Quando o céu escurece, é tempo de plantar. Quando há luta por fazer, o tempo é de plantar. Em abril, o mês em que se completou 24 anos do brutal assassinato de Galdino, 25 anos do massacre de Eldorado de Carajás e 521 anos de resistência indígena nessa terra chamada Brasil, a Teia dos Povos realizou a 1ª pré-jornada de agroecologia de 2021. Chegou pelo convite da Pajé Rita Muniz e sua família, na Aldeia Água Vermelha, e encontrou portas abertas em sua casa e olhos e corações atentos no território dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, a T.I. Caramuru-Catarina Paraguassu.
Se a gente não planta, o chão não dá
Era uma quinta-feira, abril em lua crescente. No escuro da noite, depois de uma viagem íngreme e tortuosa, desembarcaram homens e mulheres, dos mais jovens aos mais velhos. Sem terras do Assentamento Terra Vista deixaram suas casas e roças para, em mutirão, contribuir com o sonho e a luta de Rita, de seu povo e de seu território. Em suas palavras, “o que eu quero é isso, que nós tenhamos abundância pra gente cuidar de todo mundo que tiver que ser cuidado por nós”. A caravana, diminuta pelos tempos de pandemia, terminou de aportar quando, logo em seguida, chegaram as mudas, sementes e ferramentas que trouxeram em um caminhão. Assim que o sol raiasse, pelos três dias seguintes, o trabalho conjunto daria forma concreta à construção de uma roça em sistema agroflorestal.
Glauber, filho de Pajé Rita, Pâmela e Kiune, do Terra Vista, trabalham durante o mutirão. Teia dos Povos, 2021.
Árvores centenárias, na maioria nativas da Mata Atlântica, aliaram-se a bananeiras, cacaus, cupuaçus. Múltiplas mãos prepararam cuidadosos berços para que elas, agora pequenas mudas, cresçam, floresçam e frutifiquem, zelando umas das outras. Ao redor dessa assembleia florestal, as mesmas mãos indicaram o caminho para que os pés de frutas façam a guarda. Plantadas em linha e entre a estrada e as demais árvores, as pitangas, tangerinas e eugênias darão frutos aos que chegarem para uma visita e aos que pedirem uma pausa no trabalho da roça. Enquanto elas não crescem, ainda haverá o tempo e o espaço para plantar milho, batata, feijão e ervas medicinais à vontade. Até o capim, testemunha viva e insistente dos pastos que invadiram a Mata nativa, tem seu lugar garantido. Roçado para dar espaço ao cultivo, ele volta para a terra em forma de cobertor.
Esquema ilustra variedades plantadas em uma das linhas do SAF. Produção coletiva, Teia dos Povos, 2021.
É tempo de plantar! E o tempo da mata ensina a não se afobar. “Não é questão de pressa. É jeito. É paciência”, orientou Mestre Joelson Ferreira. A ele e à sua longa e profunda experiência com o cultivo de plantas e revoluções, Pajé Rita recorreu quando decidiu reflorestar o entorno de sua morada. Antes de ligar para ele, no entanto, muitas águas rolaram, como se diz. Há mais de uma década, ela decidiu abandonar a criação de gado, prática um tanto recorrente na região. A primeira tarefa que realizou foi cercar uma área próxima ao Rio Água Vermelha. Bastou impedir a entrada de vacas dos vizinhos para que a ação de passarinhos e outros habitantes das matas próximas fizesse o restante. O encapoeiramento tornou o rio mais vivo, mais forte e abundante. A partir de então, com água jorrando livre e dando de beber a quem tinha sede, ela poderia se dedicar a outras ações.
No início de 2020, ela decidiu iniciar o plantio de alimentos e árvores ao redor de sua casa, de modo a ir experimentando essa relação com a terra que chamamos agricultura. Foi “tirada de doida”: “você, mulher e depois de velha, vai resolver plantar?!”. O espanto e a descrença de pessoas conhecidas não a intimidaram. É tempo de plantar! E ela semeou: plantas que alimentam, plantas que curam, flores. De lá para cá, ela contou, a luta foi grande. E já colheram muito tomate, hortaliças, feijão, quiabo, milho, aipim.
Vídeo produzido pela Divisão de Comunicação da Teia dos Povos registra a 1ª Pré-Jornada de Agroecologia de 2021
“Essa luta, ela foi cravada em uma conversa minha com meus filhos e essa ligação que a gente tá tendo em relação a reflorestar e plantar foi exatamente na busca que a gente quer conquistar o nosso território por inteiro, por completo. Tudo que eu estou plantando aqui é preparando mesmo o terreno porque a gente esquenta a luta pela frente. E esse reflorestamento tem muita, muita raiz. Então, se ela tem muitas raízes, a gente tem que começar a plantar”
Pajé Rita Muniz
Receber da terra comida e cura não é um sonho apenas de Rita. Ver todo o território coberto de matas, tampouco: “Esse sonho um dia foi o sonho daqueles que vieram antes de mim”. Para Rita e seu povo, a riqueza da alimentação e a potência da medicina estão conectadas diretamente à vida da mata. Seu irmão, o Cacique Manezinho, afirma que “Sobre a natureza nós conhecemos uma boa parte. A gente curou muita gente, defendeu muita gente da morte através do nosso conhecimento tradicional, que é um conhecimento importantíssimo”. Por isso, conforme nos contou ela e seus irmãos, a tristeza causada pela destruição de suas fontes de vida foi um dos motivos para própria retomada do território.
A gente via os clamores
A T.I. Caramuru-Catarina-Paraguassu, localizada no sul baiano, abrange os municípios de Pau Brasil, Camacan e Itajú do Colônia. Atualmente, compreende 54 mil hectares de terras autodemarcadas e, desde 2012, reservadas pelo Estado Brasileiroi. Ali, vivem indígenas das etnias Kariri-Sapuyá, Baenã, Kamakã, Tupinambá, Gueren, Pataxó, reunidas sob o etnônimo englobante Pataxó Hã-hã-hãe. A história deste povo e do território remonta à ação do extinto “Serviço de Proteção ao Índio”. Em meados dos anos 1920, o SPI construiu um “posto de atração” para indígenas que viviam e circulavam pela região. Este confinamentoii forçado, por sua vez, tem suas próprias raízes em outras violências provocadas pelo Estado ao longo dos quatro séculos anteriores: aldeamentos, trabalho escravo e massacre de povos indígenas foram a condição para o dito “desenvolvimento” econômico do estadoiii.
Decreto de 1926 institui Reserva Indígena de 50 léguas quadradas.
A criação da reserva não impediu que essas violências continuassem. A área reservada aos indígenas foi sistematicamente invadida por fazendeiros com o apoio do próprio governador da Bahia e intermédio do SPI. A intrusão provocou a expulsão de muitos indígenas. Aqueles que resistiram, tiveram que lidar com agressões de muitas ordens. Limitados a uma porção ainda menor do território, foram impedidos de viver segundo suas tradições, dar continuidade a seus rituais, circular e realizar suas atividades de caça, agricultura e troca.
“Isso aqui era coberto de mata, era uma coisa muito linda. Uma natureza viva, aonde os índios gozava dessa riqueza e dessa natureza”. Assim era o território no início do século XX, segundo a lembrança dos troncos velhos, os antepassados de Cacique Nailton, Cacique Manezinho e Pajé Rita. Seus avós conheciam muito profundamente a região, e foram acolhidos pelos Pataxó Hã-hã-hãe quando, na década de 1930, precisaram fugir de Olivença, onde a matança de indígenas e o roubo de suas terras se intensificava.
As serras da atual T.I. Caramuru-Catarina-Paraguassu foram, por séculos, território de caça para o povo Tupinambá, etnia a qual pertence a família de Nailton, Manezinho e Rita. Aqui, “no vale da soberania alimentar dos povos, era como se fosse o mercado onde tem muita alimentação, ela era um mercado natural de onde a gente tirava o sustento”, relata Cacique Nailton. Este tempo, no entanto, ele não alcançou. Em sua infância, “a gente via os clamores. Muitas vezes eu via minha mãe chorando depois que saiu da terra e a gente, às vezes, não sabia nem porquê”. Como sua família, muitas outras tinham parentes espalhados por todo o país.
Os constantes conflitos com os fazendeiros que arrendavam partes do território interditavam a vida do povo e da mata. Cansado da tristeza que essa situação gerava, Nailton e outras lideranças da T.I. passaram a reunir o povo disperso para reclamar as terras a que tinham direito. Não confiaram apenas em petições e despachos burocráticos. Entre 1982 e 2012, inúmeras ações de retomada foram realizadas pelos indígenas diretamente nas fazendas que estavam dentro dos limites da T.I. O governo federal reconheceu a demarcação dos 54 mil hectares apenas depois de expulso o último fazendeiro: “a gente foi o nosso próprio procurador, fizemos a nossa própria desintrusão”, completou o Cacique.A Aldeia Água Vermelha, onde hoje vive a Pajé Rita, foi retomada pelos indígenas logo após o assassinato de Galdino. Em abril de 1997, ele havia ido a Brasília para tratar de assuntos relacionados ao território. Sem ter onde dormir, passou a noite em um ponto de ônibus da cidade, onde foi incendiado e morto por 5 homens, todos eles filhos da elite. Assim que seu corpo foi plantado no cemitério Pataxó Hã-hã-hãe, os presentes saíram em marcha para realizar a ação. “Essa área aqui foi conquistada em memória de Galdino”, reafirmou Rita.
Pajé Rita e seus irmãos iniciam o plantio de árvores durante a atividade. Teia dos Povos, 2021
Ela e seus irmãos escutaram a história dos antigos e a levam consigo, recontando-a e refazendo-a junto das novas gerações e em aliança com outros povos – parentes de outras etnias, quilombolas, sem terra. Durante a pré-jornada, depois de uma manhã dedicada ao plantio de árvores, Mestre Joelson os entrevistou. Esta não foi, no entanto, a primeira vez que se encontraram. A longa e profunda trajetória de aliança, resistência e luta por território deste povo foi – e continua sendo – uma inspiração fundamental para a Teia dos Povos.
Registro do 1º mutirão da Teia dos Povos, realizado em 2013 na Baixa Alegre, dentro da T.I. Acervo Teia dos Povos.
Em 2013, sem terras, indígenas e quilombolas se reuniram na Baixa Alegre, uma outra localidade da T.I., a convite de Cacique Nailton para realizar o “1º mutirão solidário” da articulação. Na ocasião, abriram uma roça de milho e feijão e “Cacique Nailton reafirmou a importância das sementes crioulas. Ele falou sobre as retomadas e questionou: ‘se a gente não tivesse comida’, como ia mobilizar o povo pra ir pra luta?’”. Essas são as lembranças de Deysi Ferreira, jovem liderança da Teia dos Povos. Ela compartilhou essas palavras enquanto trabalhava na roça que sem terras e indígenas abriram à convite de Pajé Rita, na primeira manhã da pré-jornada de 2021.
O tempo da lágrima já passou
Ao longo dos anos que separam uma atividade da outra, muitos encontros foram promovidos pela aliança de que é feita a Teia dos Povos. Nelas, as experiências de resistência vivenciadas em tempos e espaços diferentes somam-se para dar contorno aos sonhos de quem, hoje, sabe que a luta ainda não acabou. “Reconquistar o território por inteiro”, como enfatizou Rita, passa por recompor a mata também porque é onde vivem os Encantados. Esses “guerreiros do mato”, nas palavras de Cacique Manezinho, “vêm reforçando que a gente tenha pulso firme nesse trabalho. Esses matos é importantíssimo, é onde eles moram e é onde eles vêm nos visitar para nos orientar”. Neste contexto, o “Vale da soberania dos povos” oferece abundância e alimentação não somente às pessoas, mas também fortalece os rituais e as relações com os Encantados, o que é fundamental para suas estratégias de luta.
Vista parcial da roça em construção. Foto: Priscila Marques, 2021.
A nossa bandeira de luta é tá cuidando, plantando, se preparando pra avançar, né? A luta não acabou e nem acabará. Agora não é mais tempo de tristeza, o tempo da lágrima já passou! Agora é o tempo da ação e de preparar, se preparar pra começar uma luta que é nossa e essa luta vai ser começada por nós de novo. A minha mãe, o meu irmão, a juventude iniciou essa luta pelo território, mas ainda falta muita coisa. E tanto eu, como os meus filhos, nós tamos todos os dias acordando nos preparando.
Pajé Rita Muniz
Ao combinar o plantio de espécies florestais ao de plantas para alimentação e remédio, a roça aberta durante a pré-jornada é parte desse processo de preparação. Novamente, Mestre Joelson orienta: “Roça de índio e de sem terra tem que ser pequena; roça grande é coisa de fazendeiro, de preguiçoso”. Ao jeito e à paciência, deve-se juntar a astúcia. Sendo uma estratégia de luta, a área não precisa ser grande e nem deve ser distante, dois fatores que dificultam que ela tenha continuidade. Mais importante que tamanho, é sua capacidade de ser cuidada e, assim, multiplicar-se e criar fartura. Se ela crescer e frutificar, o exemplo circula. Por isso, ela foi feita próximo à casa e à estrada, de modo a inspirar quem quer que esteja precisando apenas de um exemplo para iniciar a ação. É que “a gente faz o debate também através das plantas”, comentou Joelson.
Cacique Manezinho, Mestre Joelson e Cacique Nailton
Jequitibás, ipês. Cacau e cupuaçu. Amescla, Jurema, Capim de Aruanda. Sementes, mudas e ramas. O chamado ao plantio foi feito por Pajé Rita Muniz à Teia dos Povos. As experiências, palavras e plantas cultivadas em Terra Vista a visitaram para somar ao que ela própria, sua família e seu povo já têm realizado. Quando a caravana finalmente partiu, os sem terra levaram de volta mudas, frutos e sementes que já andavam sendo cultivadas “com muita fé e amor” em seu quintal. Sem pressa, mas com a firmeza e a licença dos encantados e daqueles que viveram e lutaram antes, a pré-jornada de agroecologia regou a terra que guarda raízes profundas de uma aliança negra, indígena e popular. O sonho de “reflorestar toda essa região” e revitalizar o “vale da soberania dos povos”, afinal, não é só de Rita. Essa luta, como enfatizou, “vai ser começada por nós”. O tempo é de plantar.
Notas:
i A área reivindicada, no entanto, é maior. Ela envolve também os municípios de Conquista, Itaimbé, Itapetinga,Canavieira, Itabuna, além dos já citados.
ii Carvalho, M.; Souza, A.; Souza, J. e Pedreira, H. (org.). “Mapeando parentes: identidade, memória, território e parentesco na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu”. UFBA, 2012.
iii Paraíso, M. “Os Pataxó Hãhãhãe do PI Caramuru-Paraguassu”. Revista Cultura: O índio na Bahia, ano 1, n. 1, 1988.
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