Texto por João do Vale da Comissão Pastoral da Terra | Arte por 1Dinelli
Essa é uma série de três textos sobre o projeto do governo federal de instalar centrais nucleares no sertão do Nordeste, em uma região-território de vários povos indígenas e comunidades quilombolas. O projeto do governo federal prevê seis reatores nucleares a serem construídos nas margens do São Francisco. Os povos estão atentos à ameaça do sertão nuclear e vão construindo suas redes de resistência para parar um projeto que pode violentar parte sensível do bioma caatinga e todos os seus seres. Você pode ler o primeiro texto desta série aqui.
Itacaruba…
… é uma cidade às margens do Rio São Francisco, no sertão de Itaparica, Pernambuco. É um dos melhores lugares do país para a observação noturna dos astros. Como fica no sertão, a região é tida pela narrativa nacional como um lugar atrasado, longe do que se espera por desenvolvimento. É também território ancestral de diversos povos e comunidades tradicionais – considerados pelo desenvolvimento seus principais inimigos. Estão em Itacuruba e nas regiões vizinhas seis povos indígenas: Pankará Serrote dos Campos, Tuxá Pajeú, Tuxa Campos, Tuxi, Tuxa de Inajá e Tuxa de Rodelas, este último na Bahia; e onze comunidades quilombolas: São Gonçalo, Tiririca, Ingazeira, Negros do Pajeú, Filhos dos Pajeú, Raízes do Pajeú, Negros de Gilú, Poços dos Cavalos, Borda do Lago, Enjeitado e Poço Dantas, além de pescadores, caatingueiros e outras tantas formas de organização comunitária que o Estado não dá conta de nomear.
Itacuruba é chamada de “Nova Itacuruba” porque a antiga foi extinta do mapa. Na década de 1980, durante o regime militar, a antiga cidade foi inundada para a construção da Usina Hidroelétrica de Itaparica. Gente expulsa, animais e plantas afogados para dar conta do projeto capitalista nacional – claro, geopoliticamente subordinado. Um trauma que nunca foi superado por grande parte dos moradores, a ponto de a pequena cidade estar entre os lugares mais afetados por depressão e suicídio do país.
Itacuruba é o lugar escolhido pelo governo federal para a construção da Central Nuclear do Nordeste, um mega empreendimento composto por seis usinas nucleares. A ideia do Estado é expulsar mais uma vez os povos de seus territórios e assim usar as águas do Velho Chico, já com sua capacidade hídrica comprometida, para esfriar seus reatores atômicos. O projeto é antigo, desde a década de 1980 já havia uma tentativa de instalação das usinas nucleares na região, mas ganhou força nos anos 2000 com a reconfiguração do plano nacional de energia e, agora, no atual governo, volta à tona.
Acidentes nucleares são comuns, na verdade, muito comuns. Os maiores foram o de Three Mile Island (1979, EUA), o de Chernobyl (1986, URSS) e o de Fukushima (2011, Japão). O acidente Chernobyl produziu 9.000 mortes, 200.000 doentes e um milhão de pessoas removidas de suas casas. Segundo cientistas, a região só poderá voltar a ser habitada daqui a 24.000 anos. Fukushima produziu 1.600 mortos, 160.000 pessoas evacuadas, 2.500 pessoas desaparecidas e mais de 30 mil refugiados nucleares – fora 1,04 milhão de metros cúbicos de lixo radioativo ainda sem destino.
O Rio São Francisco…
… passa por seis estados e 505 municípios usam suas águas. Um vazamento de radiação pode atingir – imediatamente – mais de 15 milhões de pessoas. A radiação vasada atinge, em média, um raio de 800 km de distância. Muitos países que até bem pouco tempo tinham a energia nuclear como principal fonte energética estão desmontando suas usinas, como é o caso da Itália, Suécia e França. O problema desses países será ainda o lixo atômico, que tem o potencial destrutivo muito maior que o de uma bomba nuclear e demora, no mínimo, milhares de anos para perder a radioatividade. Não será espantoso se esses países tentarem colocar o resto de suas usinas nos países periféricos.
A construção de uma usina nuclear nesta região, antes mesmo de qualquer acidente, já é um desastre: evacuação das áreas mais próximas, expulsão dos povos e comunidades de seus territórios, aquecimento das águas do Rio São Francisco e consequente mortandade da vida aquática, derrubada da caatinga e incentivo à mineração de urânio – que irá provocar destruição e contaminação em mais outros territórios. Isso, sem esquecer, que acidente nucleares são comuns, na verdade, muito comuns.
O Greenpeace, vez ou outra, faz ações para mostrar como usinas nucleares são inseguras. Em uma delas, na França, sobrevoou um reator nuclear com um drone que carregava uma bomba de mentirinha. Soltou a bomba lá de cima. Como era de mentirinha, não provocou nenhum problema. Mas poderia ser de verdade. Os militantes estão sendo perseguidos pelos poderes locais. Mesmo que usinas nucleares fossem seguras – o que, definitivamente, não é – a quantidade de energia produzida não vale a pena diante dos danos socioambientais e do valor do empreendimento.
Os países desenvolvidos escolheram a América Latina como zona de sacrifício
A instalação de usinas nucleares hoje busca países autoritários, onde não é possível a população participar do debate. É o que está acontecendo aqui. Praticamente tudo está sendo feito em segredo, o Estado esconde informações e já avança no campo legislativo para fazer as mudanças legais necessárias.
Se, de um lado, é preciso repudiar a ideia de sertão como lugar ontológico de sofrimento, do outro lado, é preciso reconhecer as marcas que transformaram esse lugar em um dos territórios com os maiores índices de pobreza do país, resultado do papel reservado pelo colonialismo-capitalismo ao sertão, que o colocou como uma zona de sacrifício. Se os países desenvolvidos escolheram a América Latina para ser essa zona de sacrifício, as elites dos países da América Latina escolheram quais seriam seus territórios internos para sacrificar. A região Nordeste, especialmente o semiárido, aparece como um desses territórios martiriais.
As movimentações do desenvolvimento chegam a esses espaços embaladas pelo discurso do “auxílio”, da “ajuda”, da “modernidade”. Em um primeiro momento, o conflito de mundos se dá em um movimento em que o agente colonizador aparece oferecendo ao que se deseja colonizar e/ou encobrir a redenção, seja ela espiritual, econômica, técnica ou cultural. É dito: é preciso – “vocês precisam” – se modernizar. Em um segundo momento, quando os povos oferecem resistência à dominação, o discurso da ajuda é deixado de lado, e a prática da violência aparece sem decoração. Portanto, falar em crescimento econômico, desenvolvimento e progresso no mundo rural é falar em desterritorialização, conflitos e mortes no campo, especialmente envolvendo povos e comunidades tradicionais.
Desenvolver é, na verdade, des-envolver
Um amigo, Carlos Walter, geógrafo comprometido com as causas populares, diz que, no caso Latino Americano, desenvolver é, na verdade, des-envolver, tirar o envolvimento das pessoas com seus territórios, com a natureza, destruir as autonomias.
Nessa guerra continuada, onde o Estado é o gerente do capital, a natureza é continuamente transformada em dinheiro.
Em um país com desastres planejados, o governo federal organiza mais um.
Haverá, todavia – como sempre houve – resistência.
Continua…
LEIA OS OUTROS TEXTOS DA SÉRIE “A AMEAÇA NUCLEAR”:
Eu entendo a posição de quem é contra a energia nuclear e concordo com alguns argumentos apresentados. Entretanto, outros argumentos são ruins. É verdade que o programa nuclear civil brasileiro é envolto em segredos e isso é muito ruim. Todo bom programa nuclear deve envolver a comunidade do local pré-selecionado em todas as etapas da vida do reator. É importante explicar os riscos e benefícios e, acima de tudo, obter a aprovação da comunidade.
O autor erra em afirmar que ocorreram 1.600 mortes decorrentes devido aos reatores de Fukushima. O acidente de Fukushima, ao contrário de Chernobyl, ocorreu devido a um tsunami. Este tsunami, decorrente ao quarto maior terremoto já registrado, teve ondas de 40m e viajou a velocidades de até 700km/h. Os reatores de Fukushima suportaram o impacto do terremoto e do tsunami. Só que o alagamento dos geradores de emergência resultaram na perda de energia no circuito de resfriamento e resultaram no acidente nuclear.
Outro argumento falso é o aquecimento das águas do Rio São Francisco. A água retirada do para a troca de calor no circuito secundário é devolvida ao ambiente com temperaturas próximas ou similares aos da entrada. Não existe risco de mortandade de peixes devido a essa troca.
Acidentes nucleares não são comuns, são raros. Existem 443 reatores nucleares em operação no mundo e mais 193 descomissionados no mundo. Somente 2 reatores sofreram acidentes de máximo dano. Somente um, Chernobyl, foi o resultante somente de falhas de projeto e operação.
Não existe atividade humana que não cause impacto no meio ambiente. Considere as energias “limpas”: Solar e Eólica. Ambas necessitarão de metais, nobres ou não, minerais de terras-raras e minerais não-metálicos. Estes minerais também serão retirados de um deposito mineral e processados, muitas vezes por processos intensivos em produtos químicos tóxicos e energia. Todas as formas de geração de energia tem problemas com o descomissionamento das unidades geradoras.
O rejeito das usinas limpas também causam danos, se não reciclados ou dispostos de maneira correta. A área nuclear, ao contrário de todas as outras formas de gerar energia, é a única que pesquisa desde a sua criação maneiras de dispor os seus rejeitos que minimizem ou eliminem os danos ao meio ambiente. O combustivel nuclear utilizado nas usinas nucleares, podem ser reaproveitados, diminuindo a quantidade de rejeitos gerados. O países como a França, Suécia e Finlândia possuem programas de gerenciamento de rejeitos considerados seguros pela comunidade cientifica internacional. E é um erro tremendo dizer que o rejeito nuclear tem o potencial destrutivo maior que o de uma bomba nuclear.
O ataque de mentirinha do Greenpeace poderia ser realizado de outras maneiras para qualquer fonte de energia. Não é incomum incêndios resultantes de instalações de paineis solares mal feitas, acidentes com turbinas eólicas ou rompimento de barragens. Como o autor cita o Greenpeace, é importante dizer que a organização possui conflitos de interesse. O Greenpeace é dona de uma empresa de energia na Europa que comercializa gás natural e é favorecida com o desligamento de usinas nucleares no continente.
Para terminar. É falso que a indústria nuclear busca países autoritários para a construção de novos reatores. Coréia do Sul, Finlândia, Argentina, Brasil, França, Reino Unido, Estados Unidos e Japão estão construindo novas usinas nucleares.
[…] A ameaça nuclear, parte I: a indústria de cercas A ameaça nuclear, parte II: Sertão, zona de sacrifício, zona explosiva. […]