Posted on: 21 de fevereiro de 2022 Posted by: michele Comments: 0

Há cerca de um ano uma nova semente da Teia dos Povos brotou no Rio Grande do Sul. Nos inspiramos na Teia da Bahia e de outros estados do nordeste para consolidar uma aliança local entre os povos indígenas, povo preto, pobre, coletivos de agroecologia e rebeldia. Gente de luta. Que muitas vezes é gente de rezo também. A espiritualidade presente nos povos e suas ancestralidades, em práticas não coloniais. A força das matas, das águas, dos encantados e encantadas. O reencantamento da vida. Que também é luta.

Nos animamos a ir para a V Jornada de Agroecologia da Teia dos Povos da Bahia que aconteceria em fins de janeiro. Mas os impactos das chuvas não deixaram. As enchentes e alagamentos adiaram o encontro, pois as prioridades se mostraram outras. Por algum tempo ficamos sem saber o que fazer: cancelar as passagens ou aproveitar a viagem para tecer. Foram anunciados mutirões descentralizados no período em que a jornada aconteceria, e o Assentamento Terra Vista abriu as portas para quem quisesse chegar. Assim que de improviso algumas de nós, atreladas a povos, coletividades e lutas, fomos desde o sul e levamos algumas sementes e vivências para compartilhar na Bahia, sabendo que o aprendizado seria grande.

Tivemos a honra de contar com a kujà (“pajé”) Kaingang Gá Teh (Iracema Nascimento) em nossa pequena e improvisada caravana. Aqui tecemos uma narrativa coletiva a partir de relatos pessoais da própria Gá Teh, de Marina Machado (Mar) e Cecília Goëy – que acompanharam de pertinho a trajetória da kujà em terras baianas – e de Michele, que cohabita o Território Junana (Maquiné, RS). Exercício de outras narrativas possíveis, desde nossos corpos, espíritos e corações. Não à toa, tecido por mulheres, em relatos poéticos e subjetivos, dando vida às memórias dessa trajetória que moveu nossas águas e encruzilhou caminhos, abrindo novas velhas e afetuosas possibilidades de vida, rezo e luta.

Mayá, Rita, Gá Teh, Cecília e Marina. Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Etinerâncias entre Terra Vista, Toré e Água Vermelha, por Michele Junana

Sexta feira, 28 de janeiro, dia em que chegamos no Terra Vista (eu e Jean de Território Junana + Helevi, que contribui com a Teia dos Povos desde São Paulo). Entramos num carro com Gabriel Kieling, do coletivo Etinerâncias, amigo de outras vidas, lutas e caminhadas, rumo ao toré na aldeia Pataxó Hã Hã Hãe – a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassú. No caminho, Gabi já contextualizava: o território é ocupado por vários povos, distribuídos por 54 mil hectares conquistados ao longo de 30 anos através de 396 retomadas.

54 mil hectares. 396 retomadas.

E uma forte liderança desse descomunal e quase inconcebível processo de retomada é cacique Nailton Muniz, anfitrião do toré junto à sua irmã Mayá e sua companheira Mocinha. E, logo de cara, no início do ritual, o cacique já deu a letra: são os três que conduzem o ritual, mas principalmente Mocinha, que é quem mais recebe os encantados, por isso seu envolvimento é maior. E Mocinha incorporou um caboclo brabo, que tira onda com o próprio cacique.

Estávamos atrasades, mas assim que chegamos, o ritual Tupinambá começou. Muita força, muito benção, muita cura e não vou me ater a descrever o indescritível. Após o ritual teve lanche e conversa na casa de Nailton e Mocinha. Quase todes que participamos do ritual dormimos por lá. Muita acolhida, muito afeto – e muitas histórias de luta. Nailton contou alguns causos dessa reconquista e de suas viagens pelo Brasil inteiro incentivando as retomadas de outros povos.

Ao centro, dona Mocinha, cacique Nailton e mestra Mayá. Ao redor, Helevi, Alana, Jean e Michele. Imagem: Gabriel Kieling | @etinerancias

Mestra Mayá, grande educadora, cantadora e rezadora, também tem muita história pra contar desse período, e muitas delas estão no seu livro recém lançado pela Teia dos Povos: A escola da reconquista. Ela escapou da morte, pela mão dos jagunços mandados pelos fazendeiros, com a força de seu rezo, a força de seu canto, a força de sua ancestralidade. E não foi só uma vez.

No dia seguinte pela manhã, depois de comer, tirar foto, cantar e prosear, partimos junto com Mayá pra terra de sua irmã Rita, em Água Vermelha (ainda dentro do Território Pataxó Hã Hã Hãe, apesar de levar mais de 1h de carro pra chegar), para participar do mutirão agroecológico convocado pela Teia dos Povos da Bahia.

Assim que chegamos, um ritual puxado pela pajé Rita, na Cabana da Jurema, começou. “É o chamado da espiritualidade”, comentou Gabi (que recém publicou com as mulheres do coletivo Etinerâncias o potentíssimo livro Redes de cuidado: revoluções invisíveis por uma vida vivível, a partir de suas andanças pelas Teias e outros movimentos). Chamado que ouvimos e praticamos no Território Junana, e que no meio ocidental (ou não indígena) parece desmembrado: ou se é espiritualizada ou se é politizada (e sentimos na pele como qualquer discussão política costuma ser rechaçada no meio “nova era”, e como é difícil espiritualizar as lutas políticas da denominada esquerda). Nas andanças de bem viver, sentimos que essas caminhadas não só são complementares como não estão separadas – e é isso que muitos povos corporificam com suas rezas e lutas (que são partes inseparáveis de um mesmo corpo).

Está (mais que) na hora da esquerda aprender a distinguir entre instituições religiosas de poder e a espiritualidade dos povos. E se permitir (re)encantar a vida e a luta.

Mayá e Nailton contam: são os encantados que guiam a luta política. Nesses 30 anos, nessas 396 retomadas para reconquistar 54 mil hectares de terra, eles seguiam (e seguem) as orientações das encantadas, dos encantados. A partir de sua ancestralidade.

Como diz Mayá em seu livro: “A gente pode estar com muita dificuldade com a luta. Quando a gente coloca o pé na terra, o ouvido na terra, quando sente o gemido da terra, escuta o seu chamado, a gente sabe como vai seguir os nossos passos, porque estamos ouvindo. Ela está dando direção pra gente. Foi feito este trabalho em nossas retomadas: o nosso escutar. Porque, quando a gente tenta escutar, sabe que caminho vai seguir. Se a gente não escuta, como vai saber em qual estrada temos que ir, qual o caminhar, como vai caminhar, com quem temos que caminhar? […]

Os nosso ancestrais foram quem nos deixaram essa missão. Caminhamos junto com nossos seres espirituais. É tanto que, quando vamos começar nossos trabalhos, lembramos do nosso ritual. É, antes de tudo, pelo nosso ritual que fazemos nosso trabalho. Dizemos também aos não-índios que eles também são capazes de se preparar com a força do sol, da lua, das estrelas, dos nossos pássaros, da natureza, pois são eles que nos dão firmeza.”

É preciso chamar, é preciso ouvir.

O encontro de Mayá com sua irmã Rita foi emocionante. A pajé Rita tem sofrido perseguição por intolerância religiosa dentro do próprio território – aquelas religiões que chegam desde cima e nos fazem esquecer de onde viemos, corroer nossa própria história; essas, melhor seguir combatendo. Rita teve que deixar sua terra junto a seus 3 filhos mais novos, e encontraram abrigo no assentamento Terra Vista. Esse mutirão veio fortalecer a presença de Rita nessa terra, demarcar mais uma vez esse território.

Pajé Rita. Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Encontro de grandes águas, por Marina Machado

Os motivos que nos conectam nessa luta são múltiplos, a cada passo engrandecem e fortalecem o percurso. Feito olho d’água, guardamos a esperança na observância do comover. Ver junto; ver a partir de muitas miradas; na movida, mover mo nos desde um sentido coletivo.

Manejada as correntezas dos imprevistos, cada um e cada uma movimentou suas águas, fundos, recursos, cascas e casas para fortalecer juntes nosso tecer em terras vistas. Feito força dum rio que nasce por motivos-raízes, feito braços dum rio que corre porque cresce na conexão com outros afluentes, a mini caravana da Teia dos Povos em Luta no RS desaguou num grande rio no sul da Bahia.

Gá Teh e Rita agradecendo a água que cai do céu. Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

No berço do chocolate agroecológico, na fonte da paciência de Mestre Joelson e ao pé da luta por terra, território e liberdade dos povos pelos povos, aterramos no Assentamento Terra Vista – Arataca (sul da Bahia). Um território referência de regeneração do solo, reflorestamento da mente e refazendo tudo a refazenda toda.

O encontro dos rios parece tema poético, e não só é, mas também conta sobre o reencontro de lutas, gerações, tempos e seus ritmos. Os grandiosos rios de quem menciono o encontro são Rita Muniz Tupinambá e Gá Teh Nascimento Kaingang. A kujà Gá Teh acompanhou a juventude do Terra Vista rumo ao mutirão na aldeia Pataxó Hã Hã Hãe de Águas Vermelhas. Lá, território que integra 54 mil hectares de terras indígenas retomadas, a kujà encontrou a pajé, a mãe encontrou a filha, a parenta Kaingang encontrou a parenta Tupinambá, um grande rio encontrou o outro. Dentre os momentos de trova, rito, bênção e intimidade entre elas, todos vertiam zelo, cuidado e reconhecimento. Vê-las colhendo ervas, defumando a casa, banhando os cabelos no rio, entoando cantos ao redor do fogo, versando sobre família e saudades, moveu profundamente nossas noções de cuido, força, união e encontro.

Para além de redimensionar os lugares de inspiração e aprendizado, pudemos reforçar a importância de “como ver” formas de viabilizar esses potentes encontros entre lideranças e referências na luta pela vida dos povos. Muita água já rolou por aqui, pensava, enquanto capinava por entre as bananeiras do quintal de Rita. Muita água precisou correr pra que você chegasse até aqui, me diziam os montes daquele imenso vale verde. Águas Vermelhas, dizia a Mestra Maria Mayá Muniz, fazendo alusão ao tanto de sangue indígena que já banharam aquelas terras. Em coletividade, vivemos na prática do que acreditamos ser a correnteza tesa que nos co~moveu ao encontro das Teias dos Povos da Bahia e do Rio Grande do Sul. Fruto da união das forças dos povos indígenas e dos povos pretos, da luta campesina e da retomada das terras do povo pelo povo, a casa de Rita foi quintal, chão e teto para mais uma ação direta da Teia dos Povos. Onde o rito e o canto precediam e encerravam o ciclo de cada dia de trabalho na terra, as histórias contadas, as aulas aladas, as refeições preparadas, tudo vertia mais forte e coeso depois desse moiatá/mutirão.

Enxadadas. Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Encontros e encruzilhadas, por Cecília Goëy

Entre as enxadadas na terra, os cortes nas verduras, as machadadas na lenha, se faziam presente ali entre nós grandes sonhos, grandes horizontes, gestados a cada gesto, nutridos na miudez infinita dos instantes.

Sementes foram trazidas de longe, em oferenda ao que se movimenta e cultiva em outros ondes… Gá Teh trouxe suas grandezas de longe – e também de perto, a sensação de sempre casa que ela faz. Antes do encontro com entre Teias, Gá Teh esteve meia lua na casa de Jaçanã, pajé Pataxó da Aldeia Velha. Pra esse encontro, muitos seres colocaram seu apoio, carinho, dinheiro, axé, confiança, num sonhomomento germinado entre muites, que sabem e sentem que o reverberar desses encontros banham de bênção a terra inteira. Laroyê a dança sagrada, sapeca e malandra dos encontros, a imprevisibilidade das suas afetações e de seus poderes, tomando tudo que é de tomar espaço e vibra e vibra e vibra. Transcorrem encontros no tempo como o Itã de Exu, acertando um pássaro ontem com a pedra que arremessou hoje. Exu reinventa o passado e ensina que as coisas podem ser reinauguradas a qualquer momento. Os afetos dos encontros entre diferentes espaços e tempos é retomada da história. Retomar o passado. Retomar os efeitos.

Sentadas, as mestras Rita, Gá Teh e Mayá. Ao redor, escutas atentas. Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Pazciência é o que a terra ensina em seu cultivo. E saudando Ogum lembramos: paz também se faz com guerra, com combate, com coragem e com a criação das condições de possibilidade que a justiça, a autonomia, o amor e a vida se manifestem em sua resplandecente potência. Ogum forjou as ferramentas que trabalhamos e Ogum protege esse território. Tupã abençoa, cuida, brota e ilumina. Entre nossos pequenos passos, de pés que acarinham e são acarinhados por essa terra, seguimos as jornadas de quem veio antes, lembrando que somos ancestrais de logo adiante, que as crianças que fomos são também nossas ancestrais, que nossos medos e nossos desejos são nossas mestras, que a ousadia e a ginga é nossa temperança saborosa, e que há tanto tanto segredo, tanto mistério, que sabemos muito e não sabemos quase nada, mas ressoando com a força da vida na sua potência insurgimos indomináveis a cada despertar de crioula semente.

Encontro de parentes: relato da kujà Gá Teh

Gostei muito de conhecer esses meus parentes, principalmente as duas irmãs, a Rita e a irmã dela (Mayá Muniz), também meu parente, meu irmão Joelson. Foi muito lindo pra mim, foi muito bom, emoção atrás de emoção.

Esse meu irmão quando eu vi ele assim, de cara parece que eu tava vendo o meu pai, conversando sobre natureza e tudo isso. Meu pai sempre dizia também: “nunca desiste das coisas. Vamos mexer na terra, botar as mãos na terra, caminhar com os pés no chão na terra, sentir, e qualquer coisa que tu tirar tu bota de volta.” Esse meu irmão tá fazendo tudo isso. Não só por ele mas por todo mundo que precisa. Por nós aqui do sul.

Joelson perguntou se a mão diz alguma coisa da pessoa. Gá Teh disse que sim. Joelson estendeu sua mão. Gá Teh leu.Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Era o mesmo trabalho que meu pai fazia quando ele tava aqui na terra com nós. Muito glorioso demais, a presença do meu irmão com nós. Esse podia estar na academia, na formação dos jovens pra ser parceiro, pra trazer esses jovens pra terra. Pra trazer esses jovens pra sentir as folhas, ventos, o cheiro das coisas no mato, frutas, sentir isso. Escutar a voz do passarinho. Esses jovens precisam. Abraço, que se eu continuar contando vou ficar a tarde inteira.

Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Terra vista, por Michele Junana

Terra vista.

Pisada.

Tocada.

Sentida.

Reduto de vida boa

no sul da Bahia.

Terra vivida.

Fértil de cacau,

afeto,

organização coletiva.

Mulheres que plantam ervas,

destilam medicina.

Agrofloresta, cooperativa.

Chocolate. Autonomia.

Teia dos Povos.

Da vida.

Sempre cabe mais um,

mais uma.

Coração de mãe.

Acolhida.

Encontro de gentes,

vivências distintas.

Cada qual com seu ser,

seu fazer, seu saber;

sua história, sua luta, seu povo.

Trajetórias que se cruzam.

Complementariedade tecida.

Com a força dos ancestrais,

a bença das guardiãs,

a guiança dos encantados,

a reza das anciãs.

Terra vista.

Ocupada.

Reexistida.

Produzida.

Compartilhada.

Reflorestada.

Restituída.

Devir sem terra:

exemplo de reconquista.

Aprendendo com o mestre na agrofloresta. Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Foi muito rico estar no alojamento do assentamento Terra Vista e aprender com o generoso mestre Joelson, Solange, Gá Teh, Rita, seus filhos, a juventude do assentamento, Hosana, Giovana, Helevi, Brenda, Jean, Alass, Carol, Mar, Cecília, Kiuni, Etinerantes, Tiê, Clara, Clari, Solano e tantes outres. Andamos pelas agroflorestas, na Terra do Bem Virá, comemos muita fruta do pé, plantamos mudas, improvisamos sarau, conhecemos a fantástica fábrica de chocolates, a Arte da Terra das mulheres com as plantas medicinais (que produzem convivências, óleos essenciais, sabonetes e outras essenciais forças e delicadezas), tomamos muito banho de rio, oferecemos flores a Iemanjá e nos acolhemos com muito rezo, massagem, oráculos, leituras dos astros, das auras, conversas, comidas. Encruzilhar de vidas, que nos transformam, nos fortalecem para seguir tecendo nossos caminhos de bem viver. Com muita diversidade. Em comum. Como uma grande agrofloresta.

Ritual de encerramento do mutirão na Cabana da Jurema. Imagem: Alass Derivas | @derivajornalismo.

Relatos: Gá Teh (Iracema Nascimento), Marina Machado, Cecília Goëy e Michele Junana

Imagens: Alass Derivas (Deriva Jornalismo), cujo relato completo em textos e fotos pode ser visto aqui

Organização: Michele Junana

Leave a Comment