*Por Neto Onirê Sankara
O que é ancestralidade? Essa tem sido uma palavra muito utilizada pelas esquerdas hoje em dia. Uma busca rápida no dicionário nos revelará que ela se refere ao que veio antes de nós, ao nosso antecessor. Essa é uma resposta rasa que não alivia a sede de conhecimento e a sede de autoconhecimento.
Sob esta perspectiva gostaria de dar meu pitaco ao adicionar a minha experiência nesse diálogo sobre ancestralidade.
Começo saudando Exu, Laroiê Exu! peço licença ao orixá da comunicação do movimento do equilíbrio, guardião do ayê. Saudação feita podemos então de fato começar, penso que primeiro: a ancestralidade coletiva está ligada à comunidade e explico: qualquer ser vivo só existe pela junção de outros dois seres vivos e para perpetuação desses seres e de suas formas de existir é necessário a construção da Comunidade. Essa é a razão pela qual toda ancestralidade é coletiva, pois liga o sujeito a um coletivo.
Penso que o sentido de ancestralidade é diferente de árvore genealógica. Essa última por sua vez explica seu nascimento, fala do caminho, o de sua família, mas não liga à comunidade, não insere no mundo como parte do todo.
Bem, nesse Brasil resultado do estupro e da invasão das terras dos povos originários, fruto do genocídio de comunidades inteiras de povos originário, nesse país erguidos sobre a escravidão de povos africanos, árvore genealógica é uma piada! Pelo menos para 99% da população preta desse território.
Uma árvore genealógica feita por uma pessoa preta no Brasil vai parar na escravidão ou no massacre do povo indígena. Não há registro de nossa história e o que foi registrado oficialmente é a nossa dominação. Pergunte a qualquer brasileiro de onde vem o Santos, o Alves ou o Rodrigues do nome dele e ele certamente não saberá responder. Não sabe o que significa, de onde veio e o pior de tudo, esses sobrenomes são a prova e a marca que um dia alguém se disse dono de nossos corpos e de nossa vida.
Toda essa conversa é para afirmar a necessidade de recuperação e construção de nossa ancestralidade. E necessário deixar escuro, nítido, que me direciono aos meus irmãos pretos e minhas irmãs pretas, é com eles e elas que dialogo diretamente nesse momento por uma questão objetiva: é a eles e a elas que estou ligado ancestralmente e essa nossa comunidade, a esse povo que eu estou vinculado. É importante reafirmar ancestralidade como coletiva, comunitária. É um ato de descoberta que te liga a um coletivo, uma comunidade e te fortalece, permitindo s reconhecer como parte de algo muito maior que a escravidão, nos liga aos quilombos, as revoltas, as rebeliões, as festas, as vitórias, as celebrações, a cultura, a música, a religiosidade e nos leva a ter consciência da grandiosidade do nosso povo e de nossa sabedoria.
Ancestralidade é luta! Para nós pretos e pretas é impossível vivenciar nossa ancestralidade se nos negamos a fazer enfrentamento contra quem tenta negar a nossa existência.
Retirar do preto, da preta, o sentido de povo, de organismo coletivo, foi maior triunfo do capitalismo e de seu instrumento de dominação, a escravidão. De repente somos com folha seca ao vento sem destino sem raízes e ao olhar para trás só enxergamos a senzala, o tronco. Quando olhamos para o presente vemos a favela, a polícia e, ainda pior, enxergamos tudo isso de maneira individualizada, onde a solução parece ser tentar vencer sozinho. E aqui gostaria de trazer uma filosofia africana: Ubuntu, que quer dizer: “eu sou porque nós somos”. E com isso quero afirmar que só venceremos se todos vencermos, só seremos livres se todos se tornarem livres.
E por isso a nossa ancestralidade é um chamado a luta, porque ela nos fortalece ela nos torna parte de uma comunidade de um povo que é muito maior que a escravidão e que nunca se curvou. E a prova disso é que eu estou escrevendo e você lerá esse texto. Nossos ancestrais lutaram por sua liberdade e hoje nós podemos gozar de algum sentimento de liberdade, mas eles nos legaram a tarefa de organizar nosso povo para batalha final.