Posted on: 26 de outubro de 2020 Posted by: Teia dos Povos Comments: 1
Cabocla da Independência da Bahia. Foto reprodução.

Ensaio da antropóloga Jade Lôbo para nosso portal.

Ciência aqui gira e também “vira” em corpos. Não há nada que eu tenha escrito de bom que não tenha nascido na cozinha e na minha experiência em com(unidade). Quando mexo minha panela revitalizo o axé e meus ancestrais sopram segredos em meus ouvidos contra as injustiças produzidas pelo colonialismo. Corro para o papel, o projeto colonial bagunçou Oris mas foi nas frestas e misturas contra-coloniais que nasceu a anti-gabriela, a anti-mulata e a cabocla.

Pois bem! Nem toda mistura produziu a chamada mestiçagem. Com as mãos na cintura dando de braços com pura sagacidade as caboclas fazem retomadas, arreiam ebô na encruzilhada, acendem velas e promovem giros epistêmicos. Elas baixam em corpos na Améfrica Ladina, mas também são a sua própria face. A resistência sempre existiu, veio das aldeias, veio dos quilombos, com os contragolpes e “voltas ao mundo” da capoeira. É o drible que deu nó em colonizador. A mistura que eu me refiro é afropindorama, é toda uma geração ancestral de África e dos povos originários do Brasil que se uniram em uma resistência. Diferente da mulata, enfeitiçada pelo colonialismo, um híbrido animalesco, ou da gabriela, personagem sem voz, hipersexualizada de Jorge Amado, a cabocla que baixa em corpos é certeira na luta contracolonial, é a face encantada e de resistência da mistura.

A cosmologia de nossos ancestrais reverberam em todos nossos afazeres do dia-a-dia. Ela vem de uma geração avó de ganhadeiras! São lavadeiras, quituteiras, feirantes, agricultoras, mães de santo, cacicas, curandeiras, marisqueiras, benzedeiras e artesãs. É na reza no colo de vó que me curo do nkindoki da branquitude e das mazelas do colonialismo. É lá que eu chorei e me curei. É no banho de folhas que acalmo minha cabeça do banzo que me entristece. É a vida ritmada, as folhas e os cantos ancestrais, cantos de África e Pindorama, que nos curam. As cantigas contracoloniais de nossa geração avó não nos adormecem, elas nos preparam para encarar a luta contra-colonial com mandinga.

Desde a escola escutei as primeiras ofensas. O que fazer com tanta dor? O que fazer com o trauma gerado pela colonialidade? É no espírito da comunidade me ensinado por minha avó que encontro a cura ancestral. Cresci em sua casa com mais 11 pessoas de minha família. Vovó que é marisqueira e feirante, criou seus 10 filhos com uma maestria afinada. Aprendi que casa cheia, panela grande, e crianças brincando na porta de casa, curam o banzo que o colonialismo me trouxe. Meus fenótipos são reconhecidos socialmente enquanto negros, mas também carrego meus ancestrais indígenas. E como não? Boa parte de meu bairro são de descendentes indígenas, mais ao sul de Ilhéus, em Olivença, são mais de 23 aldeias tupinambás sem contar as retomadas. De toda forma, o nome da minha avó paterna e sua história sempre deixaram muito nítido que também somos desta terra.

Então encanto e ressignifico “a volta da cabocla” que muito já foi usado pejorativamente em relação ao cortejo e de retorno da cabocla e do caboclo para a Lapinha em Salvador no dia da independência da Bahia em 2 de julho. Aqui, “Volta da Cabocla” é uma inspiração baseada em minha avó, quando aponta a astúcia de alguma pessoa ao driblar as dificuldades e surpreender uma terceira. Pois em pindorama estamos dando drible e contragolpe na branquitude! A volta é nossa retomada da terra mas também da cosmopolítica ao lado de nossas mais velhas, de nosso povo na luta contra-colonial.

A colonialidade desencanta nossa vida, bagunça Oris, produz racimos e desterritorializações. São plurais os mundos e cosmopolíticas em pindorama, mas o devorador de mundos, desterritorializador, derramou sangue nessa terra cantando um hino de suposta vitória evolucionista, não somente contra nós originários daqui e filhos e filhas de África, mas uma vitória perante a terra, os animais e suas leis. Eles estão enganados! Enganados estão aqueles que acham que nos misturamos e fomos domesticados. O projeto de mestiçagem como política de governo da branquitude produziu a colonialidade mas não fomos adormecidos.

O bom selvagem domado personificado na figura da moça Gabriela, cor de canela e cheiro de cravo, é o sonho civilizador do homem branco colonizador. Tolos! Nas bandas de cá, a que seria Gabriela, faz estripulias, lê livros, escreve e trás exu na garganta denunciando todas as falcatruas da branquitude. São muitas misturas e confluências afroindígenas na chamada civilização do cacau. Aqui se aquilomba uma encruzilhada afroindígena bantu-tupinambá. Olho ao meu redor não encontro uma Gabriela sequer. Qual é o oposto da visão da mestiçagem que fabrica o bom selvagem? São as retomadas e o posicionamento político contra-colonial que vivem 500 anos de contato e mistura afropidorâmica dentro do circuito quilombo-aldeia-favela.

A doce selvagem, que aparece romantizada na imagem do colonizador nada tem a ver com as mulheres de luta que comandam retomadas de terras, que honram seus ancestrais nos terreiros, ou com as mães nas favelas que driblam todos os obstáculos do capitalismo racializado e alimentam suas crias. As mulheres das bandas de cá sabem tocar atabaque e colocam seu corpo na frente da polícia se for preciso para proteger suas crias e seu povo. São caboclas, e também anti-gabrielas, anti-mulatas. Sou eu, minhas irmãs de geração e nossa geração avó e ancestral que sempre estiveram de calundu com o colonialismo/colonialidade e que jamais irão parar de lutar contra as injustiças sociais. A cada retomada e cabeça curada, nossas avós estarão rindo gritando “é a volta da cabocla!”

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