Posted on: 1 de setembro de 2020 Posted by: Teia dos Povos Comments: 1

Celebramos o primeiro aniversário da pré-jornada de Agroecologia que firmou o encontro entre a Teia dos Povos e a Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto

Por Hamilton Borges*

Em 2019, já tínhamos consolidado nossa escolha política por uma atuação autônoma independente, baseada em acúmulo histórico quilombista. Estávamos situados num arco histórico de lutas do pan-africanismo por essência, que se revelou primeiramente por amor a nosso povo ao ponto de fazermos sacrifícios e ações concretas e coletivas, não essa interminável galeria de ostentação de personalidades preguiçosas, cheias de gula buscando o projeto mais rentável pra pagar suas contas.

Já não nos preocupava mais buscar uma unidade com grupos e pessoas que mostravam suas práticas contrárias a uma luta de fato, escolhas políticas que visavam lucro e sucesso pessoal em detrimento da organização e emancipação de um povo espoliado.

A centralidade na busca de terra e território, cultivada pela Reaja, floresceu em nós na primavera de 2019, quando fomos abordados por um mensageiro discreto, um embaixador cortês da articulação radical de luta por terra, em busca por unidade entre campo e cidade na luta política. Esse encontro resultou na oportunidade de acolher em nossa sede, Escola Winnie Madikizela Mandela a Pré-jornada Agroecológica da Teia dos Povos. Esse embaixador de mãos calejadas pelo duro trabalho na terra e com a mente aguçada pela construção cotidiana de unidade e emancipação de negros e negras era José Alves dos Santos Neto Chagas, ou apenas Neto Onirê, a quem desejo saudar, no mês que selamos nossa retomada de afetos, debates, divergências, luta e carinho entre pessoas que vivem a luta dura da política nacional.

Neto tem 31 anos, nascido na rua do Honório na cidade de Ipiaú, precisamente no terreiro de Durão das Matas de propriedade de sua avó paterna, Dona Ana da Conceição, cidade que ainda é sua base de produção, solidariedade, resistência e luta que irradia para outros cantos da Bahia. Em 22 de agosto de 2002, Neto entrou no Movimento Sem Terra (MST) indo morar no acampamento Carlos Marighella às margens da rodovia BA-120 que liga Ipiaú a Ibirataia. Sua mãe Maria Conceição, seu pai Antônio José, seu tio Antônio Augusto e seu avô paterno Marivaldo José, atualmente organizados no assentamento autônomo Claudemiro Dias Lima em Jitaúna, formam um núcleo familiar de homens e mulheres pretos e pretas com pertencimento e responsabilidade com a terra e as pessoas que vivem nela.

Essa genealogia familiar faz de Neto Onirê um homem centrado em seu território mas com um olhar que busca organizar, espalhar consciência e emancipação para outros territórios e para as metrópoles, as cidades encardidas por fumaça das fábricas que produzem o agrotóxico que leva para o campo a pobreza, a falta de trabalho, o afastamento dos trabalhadores e seus familiares de suas terras e de sua cultura e para as cidades modernas o veneno para mesa, o terror, de cidades em que as pessoas vivem espremidas em vielas, penduradas em escadões quando não estão dependentes das políticas placebo, corrupção e desonestidade.

Nosso segundo encontro com Neto, se deu num dia de sol. Ele chegou em nosso território urbano seguido por homens e mulheres munidos de ferramentas e sementes criolas, roupas de trabalho e ideias bem seguras que nos iluminavam em cada roda que formávamos para debater a conjuntura, a luta, a terra e o mal que o capitalismo, combinado com o ódio antinegro que impedia uma vida digna a pessoas pretas no Brasil. Ouvimos o general da batalha Joelson Ferreira que de Arataca nos trazia uma experiência de décadas de combate e a possibilidade de plantar e comer comida sem veneno, que podíamos nos nutrir de uma luta com autonomia alimentar, nos alertava para crise da água que já atingia Salvador, nos falou para lutarmos para conscientizar nosso povo das favelas que era preciso voltar para o campo, sair dessas casas de pombo em que nos jogaram. Joelson atiçou nossas almas.

Erahsto Felício e Pastor Cobra foram presentes que recebemos nesse mesmo dia de amor e espiritualidade, amor entre nós, não podemos desperdiçar nossa capacidade de amar, amando nossos inimigos que pisam em nossas cabeças, nosso esforço é por diálogo entre nós, recebendo em nossos corações pessoas que podem ampliar nossa capacidade de viver numa dimensão de felicidade e abundância. Eu iria conhecer Rebeca Vivas, reencontrar Mestre Lua e compreender definitivamente o nosso retorno a terra, ao plantio, a construção de alternativas para a cidade de alimentação viva e a possibilidade de ter terra para enfrentar o novo período sombrio que se apresenta.

Neto nos presenteou, mas Neto Onirê é presente, é atento e com uma capacidade enorme de articular vários territórios em torno de um propósito. Eu escrevi esse texto para você conhecer Neto, ele não se exibe, discreto ele passa seu tempo articulando coisas concretas para o povo.

Numa noite, em junho, as militantes da Reaja no comando e outros vários dispostos lutadores, atravessaram a Baia de Todos os Santos para receber de um caminhão baú, cerca de duas toneladas de alimentos, produzidos em Ipiaú e outras localidades. Essas duas toneladas de alimentos foram distribuídas pelos nossos núcleos de luta, para famílias necessitadas, mães desesperadas, familiares de presos, beneficiadas e beneficiados pela força da unidade e da solidariedade entre nós, que Neto, de forma amorosa e firme sempre articula e cela com uma unidade real.

Onirê é um titulo de Ogum , o Senhor da Sorte, sorte nossa que convivemos com Neto Onirê.

Hamilton Borges

Salvador, agosto de 2020

Sobre o autor*

Hamilton Borges é militante da organização Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, maloqueiro, quilombista e escritor de Salvador (BA). Ele é autor de livros como “Livro preto de Ariel”, “Salvador: cidade túmulo” e “Teoria geral do fracasso”.

1 people reacted on this

Leave a Comment